Já que não me é dado salvar para todos nós o mundo, que parece cada vez mais sem salvação, tento salvar o meu. Os dias decorrem enquanto faço por cumprir algumas resoluções mais ou menos íntimas. Das menos, procuro recuperar a dignidade da casa, dar-lhe várias horas do meu dia, e tempo é um privilégio de que disponho, nesta carruagem sem carris. Quanto ao frágil corpo, vou tentando devolver-lhe algum recorte, regressar às caminhadas que, além de tostarem ao longo da estrada os excessos ingeridos por culpa do frio e da gula, possuem o benefício de servir de terapia e desbloqueio. A preguiça parece ter-se afastado, dando tréguas à culpa. Só falta o corpo ser capaz de acompanhar a nova disposição.
O trabalho continua a cair-me no colo e só posso sentir gratidão. Trabalhar é urgente. Pagar as contas, construir uma pequena estufa de ervas aromáticas, plantar novas petúnias nas floreiras vazias, trabalhar, trabalhar, a fim de conquistar o milagre de sobrar alguma coisa, tempo e moedas para que possamos fazer algo mais do que trabalhar. Dar fim ao próximo livro. Apreciar o alívio que isso traz. Falta-me a batuta para reger as horas, chegar ao final do dia com o condão da escrita por derramar. Para já, o tempo faz batota comigo, finta-me, prepara as suas armadilhas. Mas hei-de domá-lo, subjugá-lo à minha vontade, hei-de ser maestrina dessa orquestra composta por semanas, dias, horas, minutos, como partituras de um calendário.