sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Escritelier

Este mês completo um ano de artesanato. Estreei-me com esta caixinha de uvas, lembram-se?, e a caixa de presente para o Nanã (que faz 65 anos amanhã!).

Bateu-me forte! Comecei pelas molduras barrocas, para decorar o escritório num género meio vintage/shabby chic/jane austen, com fotografias dos escritores que mais me marcaram desde a infância (projecto ainda incompleto, quando o cumprir, mostro, isto é uma amostra) 



E de repente estava a engendrar logotipos e a escrever para a Vanessa Bettencourt, há anos nos Estados Unidos, para me fazer três versões CASA DA LUA. Escolhi as fontes de letra e a arrumação do texto e enviei fotografias da própria Casa da Lua, onde vivo e trabalho. Estas são duas das três belíssimas ilustrações que a Vanessa criou. E porque compreende a minha alma, continua a ser a minha ilustradora preferida.




Segui para caixas variadas, pulseiras, tabuleiros, upcycling de baldes de iogurte grego (para ajudar a APA, além de marcadores de livros)

e sei lá quantas embalagens de açúcar de coco, que vou fazendo, literalmente, para dar e vender. Continuo a espantar-me com a minha sorte, a facilidade com que as peças saem das minhas mãos para as de quem me diz "Eu quero". Ao início eram as próprias clientes que comentavam "Olha que acho barato, devias pedir mais. E o teu trabalho, não conta?!" E, a custo, lá vou compensando os custos e pedindo um preço mais justo, mas sempre tentando que seja acessível.

 Vejo tutoriais, faço encomendas (um investimento considerável, mas que acho compensador); vou criando o meu portfólio e organizando uma espécie de stock de peças em bruto, que aguardam a sua vez, tal como um livro fechado e paciente, que um dia escolhemos ler e se nos revela, mesmo que meses ou anos mais tarde. As peças em bruto e os livros por ler são sempre um horizonte possível, um mundo por explorar. Encontro muitos elementos em comum, entre o artesanato e a escrita. Tenho um tabuleiro e duas caixas grandes que me foram encomendadas e que estão ainda por entregar (a minha amiga e eu já nos rimos, "Temos que nos encontrar!"). O que me aconteceu? Agora que as desembrulho e olho para elas, penso, “Já não as faria assim… e agora?” - apetece-me mudar tudo, fazer-lhes uma grande revisão, porque estamos sempre a transformar-nos e a Vera-artesã de hoje não é a mesma de há um ano. 

Algumas peças deixam-me mais realizada que outras. Tal como um autor com os seus livros. Também aí encontro um paralelismo.

Ao deitar-me, hesito entre pegar num livro e ver mais uns tutoriais. O foco neste novo “ofício” é tal, que chego a ralhar comigo, “Não pode ser! Para tudo há um equilíbrio, mulher, escolhe o livro!” E quando sucumbo à leitura nunca me arrependo. Porque livros serão sempre livros e deles não me livro. Mas esse diálogo interior acontece, por culpa deste novo vício. Paixão, vá. É insignificante. A Ucrânia foi invadida e eu a pintar flores e pássaros e libelinhas e cavalos-marinhos. Mas o mundo continua a precisar de flores e de pássaros e de libelinhas e de cavalos-marinhos, não é? Talvez mais do que nunca.


sexta-feira, 20 de março de 2020

Covid-19


Olá, mãe

Tenho tanto para lhe contar, a mãe não imagina. Não, não é uma força de expressão, nem a mãe nem nós poderíamos, até há três meses, imaginar as nossas vidas transformadas assim.
Está a ver aquele novo automóvel que o Nanã me ofereceu? Eu andava tão contente por enfim poder sair daqui, a dar as minhas voltas, não era? Olhe, foram algumas semanas apenas, agora já não posso. Quase ninguém pode, sabe? Estamos em guerra com um bicho invisível que nos mata, veja lá. De repente, andamos unidos, a reinventar os dias, fechados em casa. E não é só cá, é na Europa inteira. E em muitos outros países. A mãe havia de ver a praça de S. Marcos agora, uma Veneza deserta, uma Itália que ninguém reconhece.
O mundo está infectado.
- Mas que horror, isso parece coisa de filme! - Ou de "fita", diria a mãe, mas olhe que é bem real e nem fazemos muitas fitas, deixámos os governantes algo espantados, pela forma como nos antecipámos às suas ordens, fechando-nos logo em casa. Houve quem antes disso levasse todo o papel higiénico das prateleiras mas pronto, alguém que não entendeu que este vírus ataca o sistema respiratório, e não o digestivo.
- Então e agora, o que é fazem todo o dia? - perguntará a mãe com o seu sentido prático, Olhe, muitos fazem teletrabalho, que as empresas mandaram todos para casa; outros, não podendo, fazem bolos, jardinagem, croché, jogam ao Stop, à Batalha Naval, até ping-pong ao parapeito, vi eu nas notícias; cantamos à janela, publicamos folhetins, usamos e abusamos das videochamadas - eu explico, mãe, é aquela coisa de falarmos uns com os outros a ver-se a cara, lembra-se? Pena não haver videochamadas para o céu, mas a mãe aí está bem, a salvo e segura, que aqui na terra estamos a tentar evitar o inferno.
O Pai é que não anda a ligar nenhuma, sabe? Continua a ir ao seu cafezinho, sem máscara nem luvas. Imagino que a mãe iria fazer o mesmo, e nós, filhos, lá teríamos de nos zangar consigo também. Enquanto lhe escrevo o mais provável é o café ter fechado, fecham tudo, é o que nos salva.
As suas lojas preferidas cerraram as portas. Mas quem precisa de uma saia ou de umas botas novas, de um colar ou carteira, de uma blusa ou de ir ao cabeleireiro, se as semanas se passam em casa? Nós, mulheres, vamos todas ficar com raízes, vai ser um horror, a mãe vai odiar. Mas é que muita coisa perdeu a razão de ser.
Quem está na maior são os cães. Veja lá que têm privilégios sobre nós, é uma das poucas desculpas para sair à rua e têm os donos sempre ao lado. Até vi quem passeasse o cão com um drone. Quando pensamos que vimos tudo. Eles dizem "animais de companhia", mas deviam dizer "cães", não acha? Ninguém passeia gatos nem periquitos nem gansos nem sapos.
Estamos a fazer das vísceras coração para sermos felizes e aguentarmos isto até ao fim. E a mãe vai ver, quando este bicho se for embora, ou quando tivermos uma armadura para nos defendermos, havemos de nos vingar com beijos e abraços, vai ser uma marmelada pegada, matar a fome com carícias, alguém há-de inventar um símbolo qualquer para festejarmos essa nova liberdade, se não forem cravos talvez sejam girassóis ou malmequeres.
Mas olhe, o planeta há muito que não estava tão limpo, até respira melhor. E é isso que nós queremos todos, que nós e os nossos continuem a poder respirar por aqui mais um bocadinho.

domingo, 1 de março de 2020

branco-pérola



Este pequeno texto não tem grande pretensão literária, pois assim anda o meu espírito nos últimos meses. Não estou preocupada. Culpa zero, ao contrário do que é em mim habitual. Como um cão vadio que salta o muro e sempre regressa a casa, para junto dos donos, assim anda a minha veia. E se não voltar, adoeceu de vez, apanhada por um vírus qualquer, foi atropelada ou alguém a levou, pouco importa. Escrever sempre foi uma necessidade. O que fazer quando não a sentimos, senão deixar de escrever? Poderiam apontar-me o paradoxo, enquanto me lêem, mas não me refiro a estas pequenas confissões, falo do resto, dar andamento ao que me aguarda. Os livros terão de esperar. Ao contrário do meu amor pelos cães, ando neste estranho desapego.
Continuo especialmente dedicada à casa e à jardinagem, mal pego num livro, muito menos na pena e não tenho pena alguma.
Para celebrar o aniversário deste blogue empoeirado, venho partilhar convosco um presente que recebi em Fevereiro. A maior parte das pessoas verá nas imagens apenas um automóvel. Um carro fofo, vá, bem ao gosto vintage. Sobretudo para as senhoras. O carro é um mimo, não se resiste. Para mais com tecto panorâmico e em tom pérola.
Acontece que eu não conduzia há quase quatro anos. Dependia por inteiro de terceiros para sair de casa sobre rodas, sendo que vivo num lugar bucólico, é certo, mas bem isolado.
Enfim recuperei a minha liberdade e tenho agora o melhor dos dois mundos. Embora com limitações devido aos problemas de visão, posso pegar em mim e no meu "paneleirinho", como lhe chama o meu marido com carinho, e livrá-lo da rota dos supermercados, da engomadoria e da farmácia; posso mandar fazer bainhas numas calças, pôr um fecho-éclair num casaco e despachar todas essas tarefas domésticas, que nada possuem de criativo mas que têm de ser feitas. E também posso ir aos viveiros comprar terra e adubos, vasos, plantas, flores e sementes, ir ao café, ver montras, passear pelas ruas, almoçar com amigas ou simplesmente percorrer os poucos quilómetros que me separaram do mar, só para lhe dizer bom-dia, ouvir a rebentação, pôr os pés na areia...
E tudo ao meu ritmo, como se fosse dona do tempo.
A Primavera está a chegar e os meus dias já começaram a florescer.
Estou tão feliz com o meu novo amigo. Nunca pensei abraçar um carro, mas foi o que fiz, quando me trouxe de regresso a casa, pela primeira vez. É bom poder ir e voltar. E Ficar é um verbo que tem agora todo um outro significado. Escolher, como verbo Auxiliar. Amanhã vou vadiar um bocadinho também. Pode ser que, pelo caminho, me cruze com a minha veia.

sábado, 30 de novembro de 2019

O Escritor

Pergunto para me responder. 
Ser Escritor. Envolverá uma escrita feita a ritmo constante? E se alguém estiver um, dois, três anos sem compor um parágrafo de literatura... perde o título? Não é um escritor, por ser capaz de viver sem escrever, apesar de um talento inato ou trabalhado? Será necessária essa constância de produtividade, a mente organizada de forma racional, sentar-se à secretária ou seja onde for, para escrever como quem vê nisso um ofício, com disciplina e horário? Será esta arte desobediente a regras, indiscutivelmente ligada à Musa, para que surja verdadeira Literatura? Será possível escrever um poema de cabeça fria, trabalhá-lo como carpinteiro limando arestas e polindo superfícies? Obterá assim o escritor uns versos, ao invés de Poesia? Para um escritor será premissa conseguir pagar as contas através dos seus livros? E se tiver escrito e publicado um título apenas, ainda que reconhecido como obra-prima, poderá considerar-se um imenso escritor? E se alguém, nunca tendo publicado – por jamais o tentar, ou jamais conseguir –, guardar vários manuscritos em absoluta sombra, resmas de folhas preenchidas, um bom punhado de originais escondido do mundo… será como a árvore a cair na floresta, cuja queda ninguém escuta? E se a produção de escrita for imensa e a pessoa publicar e vender sem dificuldade, embora o produto desse trabalho frenético seja de valor literário nulo ou quase nulo, será um Escritor, ou um produtor de textos? E quem escrever apenas guiões e argumentos para novelas, séries e/ou cinema, será um escritor menor? 
Corre muito por aí, no meio literário, que sê-lo é uma condição, não uma profissão. Nesse caso, onde poderemos nós arrumar escritores como Balzac, Agatha Christie ou Nicholas Sparks? Que escreviam/escrevem deliberadamente para vender? Por vezes soa-me a: «Só poderás ser escritor com uma condição: tem de ser para ti salvação, terapia, uma inevitabilidade, o oxigénio que respiras.» E se respirarmos sem escrever? O oxigénio está nas árvores, nos oceanos, na Dor, na Arte dos outros, no céu, no silêncio, nas várias formas de amor, na vida... E a escrita pode ser uma sofrível fotossíntese de tudo isso. Da minha parte, vou tentando não me levar, nem ao que escrevo, demasiado a sério. Embora por vezes me seja salvação. Nunca na condição de me ser condição. Mas um chocolate quente junto à janela, quando está frio, também me salva.
(Imagem: "The romanticizing of a writer" (clique no link para ler artigo)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Mãos de aluguer

Pregnant Woman, 1919, Otto Dix

Linha a linha, os dedos iam apagando e desbastando, para tornar mais leve a sentença, mais sensível a frase. No chão da página, uma saca de palavras inúteis, o peso do excesso que, antes do corte das sílabas, asfixiava o texto do seu cliente. Pagavam-lhe para que ajudasse a oferecê-lo ao mundo, o deixasse mais belo, sem rugas nem sombras, sem erro nem contradição, sem absurdo nem ressonância. Uma espécie de photoshop nas orações, de maquilhagem vocabular. De lápis na mão, não delapidava, antes cumpria o olhar do jardineiro, a perspectiva do som macio, para que dos ramos florissem aveludadas folhas. Às mãos do seu criador, o texto voltava mais hábil e veloz, pousando melhor na pele maternal.
Por vezes sentia o impulso de reescrever parágrafos inteiros, mãe de leite a amamentar o filho de outra. Ao apoderar-se da carne de outrem, enxertando-a com transfusões a partir das suas veias, transformava-se numa vampira invertida, vertendo o seu próprio sangue, a ferir e a transferir o gene da sua escrita. Contra si e contrassenso, dando mais, de mais se apossava. Eram mãos de aluguer a entregar, ao fim da gestação, um filho seu que não era seu.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Jacob, who else?

Não conheço ninguém que celebre a vida com tanta alegria como este miúdo. O talento e o estilo inconfundíveis de Jacob Collier.
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terça-feira, 24 de setembro de 2019

Ladys in Lavender

Duas das minhas actrizes preferidas, num dos meus filmes preferidos. Ouro sobre...lavanda.




segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Contra o meu silêncio

À medida que a idade avança - e no mês passado completei cinquenta anos -, tendo para uma sinceridade maior. Como se não houvesse tempo a desperdiçar e escrevesse agora apenas para mim, diários sem maquilhagem nem vestidos de seda que façam os outros dizer "que bonito". A confessar a simplicidade dos meus dias, se eles forem simples; a tristeza, se forem tristes; a solidão se forem sós; a alegria, se forem felizes; o tédio, se nada forem. Em vez de me calar se nada tiver, escreverei que nada tenho. Tudo menos o silêncio multiplicado que paralisa e adormece.
Por hoje digo que o Outono chegou. O corpo desistiu de se acobrear. Acobardou-se, amuou. As toalhas, os fatos de banho e os grandes lenços de praia foram lavados e guardados, mal chegando a recordar o sabor do sal ou a rebentação das ondas. Foi um Verão muito mal aproveitado, mas também ele tem culpas, que chegou com atraso. Ainda não foi desta que pintei os muros da minha casa. Em breve as chuvas e temporais, pintar para quê? Agora é tarde. O jardim de vasos também aguarda. Uma espera que já criou raízes. Para começar, as escadas de madeira da piscina desmanchada levaram vasos com plantas. Agrada-me o efeito, a planta da Bé a crescer e a avançar como um longo cacho de uvas brancas, a espinhosa do meu irmão, vinda do Algarve de mota, com ele, a dar as primeiras  flores. Espero que não cometa suicídio, ao descobrir que veio das terras quentes para a zona Oeste, das mais húmidas do país. As poucas floreiras permanecem vazias. Os sacos de terra fertilizada, os vasos, plantas, treliças, ervas, arbustos, flores trepadeiras e todo um pequeno universo de jardinagem chamam por mim, nos viveiros.  O investimento não foi possível. Ainda não. Mas tenho o conforto e o ânimo de um projecto por cumprir. Um prazer adiado. Como escreveu Jorge Luis Borges, "a verdade é que vivemos a adiar tudo o que é adiável". E a terra pode esperar.

sábado, 21 de setembro de 2019

Coisas do campo

Vai fazer 13 anos anos, desde que me mudei para o campo, perto do mar da Ericeira. Embora ainda sinta a síndrome do isolamento, muito devido a não ter o meu próprio carro (augura-se, daqui a poucos meses, a solução para esse velho problema, façam figas!), continuo feliz com esta decisão. O privilégio de aqui viver não se nota apenas no que é mais evidente - o ar puro, o custo de vida mais barato, a facilidade em estacionar à porta de casa sem garagem (transformada desde logo em oficina), a beleza natural que me rodeia, a cozinha espaçosa, a lareira etc - mas também no que é subjectivo, no ritmo a que se respira (o ar limpo), na interação pessoal, na simplificação de rotinas e num espírito de entreajuda que não é comum numa grande cidade como Lisboa, onde nasci, apesar de existirem alguns bairros, antigos e recentes, onde esse espírito felizmente sobrevive.
Assim, é normal telefonar para a junta de freguesia a perguntar se a Tânia tem envelopes de autor, com a barra encarnada e taxa de envio especial, para eu enviar um livro pelo correio (que também ali funciona).
- Tenho poucos, mas eu guardo um para si.
E nessa tarde lá vou eu. Estacionamos perto do coreto e da igrejinha, ouve-se um tii-ron! uma sineta com sensor, a avisar quanto a quem entra, e a Tânia lá está, com o meu envelope. Trocamos cumprimentos, aproveito para levantar dinheiro na caixa multibanco, também instalada do lado de fora do pequeno edifício branco e modesto, e o livro segue.
Chego a casa e recebo um telefonema da vizinha, que vive no pinhal em frente, a perguntar se eu quero figos e limões. De oferta, claro. Às vezes, um outro vizinho, gente da terra com quem apenas me dou para um bom dia e boa tarde, deixa-me um balde cheio de ameixas, das encarnadas, carnudas e sumarentas, que não se encontram nos supermercados. Ou vagens de ervilhas ou de favas.
- A vizinha depois atire o balde para lá! (da cerca)
Ao fundo, pastam duas ovelhas. Estão bem longe, não me arrisco a acertar-lhes  com o balde. Como diz a personagem do Calceteiro, interpretada por Ricardo Araújo Pereira, e pronto, a minha bida é isto.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Culpas e desculpas

Nas notas biográficas autorizadas que circulam por aí, sobre esta que vos escreve, o texto acaba com a frase "Mantém o blogue...e  o site....". E como hoje tive de enviar uma pequena biografia para uma revista que há-de publicar um novo texto meu, de ficção, dei-me conta de que já chega de silêncio, é preciso alimentar a máquina sem a desculpa de que somos pequenos e pouco lidos, não nos resta tempo, as redes sociais levam tudo, nada temos para dizer, blablabla. Ou se tem ou não se tem. E a ter é preciso dar-lhes  de comer,  como se fossem animais de estimação. Pelo menos água, caramba, para não morrerem à sede. Por isso aqui venho tirar o pó a este canto e deixar-me de suspiros. A tristeza anda de costas largas, bem sei, às vezes sinto-me presa por um fio, um sentimento de "p'ra quê?" em relação a tudo, mas a preguiça leva com uma boa parte das culpas. Pedem-me um texto e eu escrevo-o. Se tiver um prazo, melhor ainda. Mas com a minha própria "casa" está visto que faz jus ao ditado Em casa de ferreiro espeto de pau. Mas o que vem a ser isto? Quase dois meses, a sério? Shame on me. É certo que ninguém se rala, mas mesmo assim.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Saudade

O dia de hoje tem um sabor ambíguo. A minha Mãe, que nos deixou há seis meses, faria hoje 85 anos. Fiquei com o nome dela: “Não me lembrava de nenhum em especial e sempre gostei do meu”, justificou-se um dia à terceira filha, a mais nova de cinco filhos num plano de quatro. Troquei-lhe as voltas. O cordão umbilical também, duas voltas ao pescoço, já a revelar a minha falta de jeito e total ausência de sentido de orientação no mundo que, encolhendo os ombros, lá me acolheu. Completa-se também um ano da publicação deste meu romance, o primeiro. Chamei-lhe «Entre Mulheres» pelo facto de o protagonista ter, na sua órbita, um conjunto delas, que deixaram a sua marca: avós, criadas e empregadas externas, mulher, mãe, filha, cunhada, namorada e outras tantas, que vão compondo o manto das suas memórias e planos, por vezes tecidos à margem da sua percepção e ingenuidade. Enquanto reescrevia esta história, apercebi-me de que uma força interior me obrigava a incluir muitas das memórias da minha própria mãe, reflectidas na Maria José Munro, mãe do protagonista. Mal sabia eu que três meses depois do lançamento iríamos receber a notícia da sua doença e que, outros três meses mais tarde, estaríamos a chorá-la. A herança que nos deixou foi imensa, daquela que não se pode entregar numa loja de penhores e a que poderemos sempre recorrer em silêncio, na hora de perguntar: O que faria a minha mãe? O que diria, nesta situação? As saudades são incalculáveis, um sentimento com que vamos aprendendo a viver. E a diluir. Nem que seja escrevendo. Um beijo até si, Mãe.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Caindo

Sonhou que se deixava cair ali, uma rede de circo adiando a sua morte. Um trapézio costurado em calda de açúcar. A chuva interminável dos últimos dias bordara em cada fio um colar de pérolas. Operária de oito patas, bailarina cumprindo a coreografia ensinada a tantas gerações, era nas noites de um luar tímido, em fundos embaciados de azul-mar-alto, que a aranha gostava de tecer, a salvar os sonhadores. Naquele remate, uma gota em diamante de frágil equilíbrio, como bola de sabão ou pingente de cristal, suspendia o fio da realidade. Ao tombar no solo, alguém acordará, enredado em ilusões.

domingo, 30 de junho de 2019

Guillermo Mordillo

Fica a sua arte e inteligência, o seu irresistível sentido de humor, que marcaram gerações. Que eu saiba, pelo menos duas. Estas figuras redondinhas a ganhar vida em cenários tão diversos, com humor por vezes subtil. Conheci-o a partir dos fascículos do Tintim, dos meus dois irmãos mais velhos. Adeus, querido Mordillo.





segunda-feira, 24 de junho de 2019

De mãos atadas

Um silêncio sem luz. Uma escuridão que é minha. Voluntária. Os meses deste ano, pela metade, no condão espesso de me encontrarem muda. Só em pensamento as palavras migram, sem a mínima intenção de pousar. Quanto maior a dor, mais implode e fere, resistindo a diluir-se na melhor receita que aprendi. A liquidez da escrita, a corrente de uma narrativa inventada, para fugir noutros mundos.  Noutras vidas. Tento recordar a mim mesma que importa. Que importa? Não. Não. Afasto os jogos linguísticos, o cinismo, a amargura da indiferença. Pelo que me lembro, a escrita é terapia. Está visto, não sinto  a urgência de me salvar, talvez queira sofrer tudo o que me é devido, sem batota, guardando os dedos. As palavras de mãos atadas. Apertem bem, não vá a dor fugir.
Leio, releio e reescrevo o que não é meu. O meu trabalho: os textos dos outros. Todos os dias. Dezenas de horas a cada semana, os meses passam e nada de mim. Então e eu? Já me posso mexer daqui? Libertar-me?
Desatei hoje os primeiros nós, as palavras ainda entorpecidas, dormentes, o que me salva sem circular como devia.
Para quando, de novo, o sangue a correr-me nas veias?

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Gastão

Mal se encontram palavras para explicar a tristeza de perder um amigo de 4 patas. As fotografias - alguns dos inúmeros momentos captados ao longo destes 10 anos, na sua companhia -, foram tiradas pelo dono, meu marido, e por mim. A música é um tema original composto pelo próprio (dono), há 2 anos: Passo de Gastão: a linha do baixo a lembrar os passos pesados e bamboleantes deste cãozarrão incrível, que por vezes lembrava um pequeno urso, outras um belo lobo de orelhas arrumadas em baixo. Ficam as memórias. Mas a tristeza de o seu tempo ter chegado ao fim é imensa. Pela casa, em cada canto, nos gestos da nossa rotina, está a força da sua  ausência. Este novo e estranho silêncio, a que teremos de nos habituar. Hoje o carteiro passou e fez falta, a imponência da tua indignação, Gastãozola, o teu corpanzil a correr de um lado ao outro da casa, a ralhar com aquele homem atrevido, que regularmente aqui passa de mota, grande parte das vezes para deixar contas e recados oficiais antipáticos; tinhas toda a razão, pois tão raro é hoje em dia chegar pelo correio algo gentil para a alma, como cartas manuscritas, um postal, um presente, um livro. Guardavas a nossa casa, uma sentinela atenta, mas pousavas a cabeçorra sobre a mesa de jantar ou nas nossas pernas, a pedir 'pãozinho', a palavra mágica. A 'manita di plata', a namorar o petisco. Os olhos castanhos enormes, para cá e para lá, a explicar: 'é aquilo ali que eu quero, ali, ó'. Uivavas sentado no cimo das escadas do terraço, só porque sim, e eu chamava-te 'cãotor'. Uivavas em casa quando o dono começava a estudar saxofone, para te juntares em dueto, às primeiras notas. Além da mania de sacar guardanapos, que mastigavas e comias, gostavas de roubar o nosso chinelo do pé ou ir apanhar o sapato mais à mão, para mostrar que estavas contente por nos ver de manhã ou por entrar em casa - ninguém te ensinou esse truque, era uma arte só tua. Nos anos vividos em todo o teu esplendor, entravas em casa a atirar com a porta, para desatar a correr escada- acima-escada-abaixo, a contornar os móveis como podias, e lá vou eu outra vez galgando degraus e reaparecendo para nova corrida, alegria pura de viver. Adormecias naquela posição como que de corpo desarticulado, uma espécie de coreografia do Lago dos Cisnes, e fazias-nos sorrir e enternecer quando, à nossa passagem, esticavas a patorra para nos deter ou pedir festas e massagens. Quando fazias asneira, de pouco ou nada servia ralhar contigo: a personalidade era muita em ti, parente de lobo; olhavas impávido, como quem explica, 'roubei porque te distraíste, não tenho culpa'. Um dia foram 3 farinheiras de uma feijoada; noutro, um pedaço de queijo da serra. Como larápio tinhas bom gosto, é preciso admitir. Pela casa novelos do teu casaco em constante renovação, com o passar das estações. Vou varrendo a casa e despedindo-me de ti. Por muito tempo ainda darás um ar de tua graça em recantos mais escondidos, em mantas de lã, nas nossas peúgas e camisolas, em todas as peças de roupa. Um serra da estrela de pêlo comprido: um compromisso e uma batalha perdida. E agora olha, vou perdendo os vestígios de ti, a cada dia. As memórias agarro, essas não me fogem. 
Eras bonito e elegante, com o teu 'casa-cão', assustador para os intrusos e meigo com os amigos da casa. Perfeito, portanto. 
 Adeus, querido Gastão. Obrigada pelos anos que nos deste.
Música e execução: Nanã Sousa Dias

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Prémio Camões

Ao contrário da minha reação quanto ao Nobel dado a Bob Dylan, em 2016, fico feliz com o Prémio Camões atribuído a Chico Buarque. Este sim, tem feito muito pela língua e literatura lusófona. Considerando a sua vasta obra poética e de prosa, a mestria nos jogos de palavras, no efeito poético, no poder narrativo, na riqueza de vocabulário, sensibilidade, enfim, tanto haveria a dizer sobre a sua escrita, é mais que merecido. Muitos parabéns, Chico!

domingo, 5 de maio de 2019

The Durrells

Hoje, no Dia da Mãe, regresso a este meu canto para partilhar convosco uma série imperdível, a passar aos Domingos na RTP2. Haverá sempre mil pretextos para dizer ou pensar: A minha Mãe ia adorar isto. Um abraço apertado, Mãe, onde quer que esteja. Vejo, encanto-me e rio com cada episódio e olho para o lado, como se tivesse, pousado no ombro, um anjo qualquer, que lhe leva notícias daqui.

sexta-feira, 1 de março de 2019

10 anos

Querido blogue,

Ironicamente, já que vocês são uma espécie de concorrentes, fica sabendo que foi o facebook a lembrar-me de que hoje completas 10 anos. Deves estar ofendido comigo e não te censuro. Nem sempre te dei atenção. Não veio qualquer mal ao mundo por causa disso, tens de admitir. No princípio, obrigava-me a escrever diariamente - numa primeira tentativa de nomear-te, com a presunção de ser dona do meu ânimo, escolhi a designação nulla die sine linea, mas depressa me avisaram de que o nome já existia...claro. Se não escrevesse, ao menos não deixar de partilhar algo que valesse a pena, um filme, um ilustrador, uma canção, um fotógrafo, um poema, uma entrevista, um livro... Pequenas narrativas ou prosas minhas originais, nascidas em ti, foram surripiadas, transformadas em verso, para serem publicados no Fora do Mundo (Poética Edições, 2014). Não te zangaste. Contigo partilhei também, em 1ª mão, as minhas Filosofices, uma brincadeira pueril quanto à fonética  das palavras, desafios da imaginação, um toque de humor e loucura. Em certos momentos da vida, ao longo da última década, mal me lembrei de que existias. Votei-te ao desprezo, traí-te, abandonei-te à fome, o corpo tão magro e miserável, coitado. Ainda assim, moribundo, resististe.  Sobram-te uma dúzia de leitores que, sem conta no facebook, ainda te visitam. Espreitam e estranham o meu silêncio, "Não tens lá ido", como quem faz uma censura velada, com carinho, a quem se recusa a visitar um velho parente. Dez anos, para um blogue, é muito. Como eu, envelheceste. Perdeste paixão, vigor, elasticidade; andas de articulações doridas, angustiado com o teu futuro, sofrendo de uma insistente falta de vontade. Não sei como este fundo, a tua pele, não passou ainda a rosa-velho, sinceramente. Anyway, como diriam os americanos, olha, não prometo cuidar melhor de ti de hoje em diante, tu sabes que entre nós não há dessas coisas, há franqueza e verdade. Se tiver alguma coisa para te dizer, digo. Já bastam os filtros enganadores que se usam por aí, de alegria, o corpo em paraísos privados, dias glamorosos, relações perfeitas, a mascarar a tristeza, a solidão e a incerteza com fotografias que mentem, como os advérbios de modo. Contigo, não. És um bom ouvinte, sabes ficar calado, à espera que passe o monólogo da minha indiferença. E nisto, olha, passaram dez anos. Ando muito apagada, tu sabes. Preciso de recuperar a minha luz, mas é um processo de cura que só eu posso fazer. Tem paciência. E já agora, parabéns. 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Infâncias

Legenda escrita pela minha Mãe, na fotografia
« (...) a Mãe recordou os anos que viveu perto do Largo do Rato:
− Foi onde passei alguns dos melhores tempos da minha infância.
A vista do meu quarto era fabulosa… em vez do Hotel Ritz havia um monte muito verde, onde pastavam ovelhas.
Tenho dificuldade em imaginar um rebanho ali, ou a paisagem verde. Parece coisa de séculos, naquelas gravuras antigas que vemos da cidade de Lisboa, no tempo do Terramoto, mas não, na infância da minha mãe havia ovelhas no centro de Lisboa.
− Para lá do monte e mais abaixo ficava a Rua Castilho, que naquela zona não tinha casas. Depois era o Parque Eduardo VII. Víamos Lisboa inteira do lado nascente, com o Castelo de S. Jorge e tudo.
− Devia ser bestial andar de bicicleta por Lisboa nessa altura.
− Ah sim, era tão diferente…
E os olhos ficaram sonhadores, pousados no relógio de parede, situado ao fundo da sala.
− Estava aqui a lembrar-me…em 43, tinha eu oito anos, o meu pai disse-me um dia, “vamos até à Baixa para a menina ver uma coisa”. Quando lá cheguei e vi as bicicletas, nem queria acreditar. Escolhi uma verde com campainha, uma Triumph. Essa bicicleta fez-me companhia até ele me ter oferecido a super Raleigh, já depois da guerra, e que fazia a inveja de todos os ciclistas meus amigos. Mas a bicicleta verde representou a liberdade. Em Lisboa, ao fim do dia, ia pedalar ali ao pé do parque.
Interrompeu para beber dois goles de chá Earl Grey sem açúcar. Achei cómico, a Mãe dizer “com campainha”. É claro que tinha campainha. E rodas. E assento. E volante. Vi a Mãe transformada em criança outra vez, os olhos brilhantes, apesar do corpo de garça-azul, ou pilrito-das-praias, saltitando de alegria na rebentação, enquanto ia revivendo os instantes mais felizes.»

(excerto de Entre Mulheres - diário de um lisboeta, p.115, Poética Edições, Setembro 2018)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Adeus, Mãe

Talvez um dia consiga escrever. Hoje não, Mãe. Ainda não.
Sesimbra, 1976

Lisboa, Marquês de Tomar, 1972

Sofia, eu, Mãe, Neca e Milú, Sesimbra 1977

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Luta

Olho para os livros, que me aguardam, e nada mais tenho que tristeza. Uma quase culpa, sem culpa. Para onde escorrem as  minhas horas? O que fazem do corpo, sem mim? O meu estragou-se. Quem me dera o tempo em que ler era liberdade, não esta luta, batalha perdida. Esta impossibilidade do corpo. 
Roubei a imagem aqui

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Mary Poppins

E porque é Natal e precisamos de magia, aí está, com estreia marcada para amanhã, a nova versão de Mary Poppins. Como resistir?

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Memória


Se todos registássemos a nossa memória, fosse em diários, contos, prosa literária ou não, ela não se perderia, com a passagem das gerações. Imaginem o testemunho histórico da intimidade e da época dos nossos, o arquivo que as famílias ganhariam, se todos deixassem escrita e publicada a sua infância, juventude, meio e fim de vida, a sua perpectiva sobre acontecimentos, as suas emoções e sentimentos mais verdadeiros para com irmãos, pais, tios, avós, amigos…
Ficaríamos a conhecer bem melhor a personalidade, os valores, hábitos, manias, receios, dificuldades, ambições, fantasias e conquistas de cada membro da nossa família. Seria tanto, o que acrescentaríamos, para nos compreendermos melhor! Uma janela maravilhosa para o passado, até chegarmos a nós. Aos nossos genes. À nossa herança. Para que não se desse o esquecimento, a alienação das memórias que dão sentido ao tempo que escorre e nos escapa. A qualquer instante poderíamos consultar um determinado ano, acontecimento, década, as indignações, as alegrias, confissões, devaneios, ironias, historietas, tanto do que viveram os nascidos antes de nós, da nossa árvore.
Hoje em dia é fácil e barato publicar, em pequena tiragem. Nas estantes poderíamos ter – não os álbuns de fotografias que, decididamente, estão a cair em desuso, nesta era digital, em que passámos a partilhar a vida virtualmente, dias que aparentam ser perfeitos, na sua superficialidade, em gavetas que daqui a não muito tempo serão impossíveis de arrumar. Tê-la-íamos, pelo contrário, nas nossas estantes de casa, nos livros de memórias em papel. E a possibilidade de reeditar um, cinco, vinte novos exemplares, à medida do desejo dos descendentes. À medida da sua curiosidade.
Não, as redes sociais não mostram vidas verdadeiras. Não revelam quem somos, apenas aquilo que escolhemos revelar. Que memória verdadeira existe na imagem de um prato de comida, um sorriso fotogénico ou um belo pôr-do-sol? Tudo é externo. A parte de fora de nós. Para as gerações que virão, o mais importante será conseguir ler desse dia – em que comemos aquela refeição, sorrimos para a selfie ou caçámos a paisagem – como nos sentíamos, em que pensávamos, se chorámos nessa mesma tarde, quem tínhamos ao nosso lado que não se vê, onde morávamos por essa altura, que lugares, sabores e afectos ficaram por cumprir.


sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Maria


Hoje, no Dia Nacional do Mar, deixo-vos com um poema que o protagonista do meu novo romance escreveu, na varanda da sua casa, enquanto pensava em Maria, uma bela mulher, muito ligada ao mar.
(Para ler com uma valsa)
Maria
Ao mar iria,
Mas o mar ia mareá-la.
Sem ti,
Ela sentiria
Um lamento que vem agitá-la.
No rosto grita a lágrimas
Secá-la, ela recusa.
Quer o sal que a enviúva
Salvador do seu desgosto.
Por ela chama o pescador
Ao ver as ondas de uma mulher,
A brisa leva-lhe os desejos
E a veste em espuma de beira-mar.
Pesca a dor nas tuas mágoas
E emudece a saudade vã;
Que só a idade do teu ofício,
Enredada em sacrifício,
Em mãos vazias sabes calar.
(in «Entre mulheres - diário de um lisboeta», pp.200-201, Poética edições, 2018)


quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Textura

Já subi e desci muitas vezes os degraus que dão acesso à cave, na minha casa, e embora esta parede e este tecto estejam aqui há 13 anos, nunca os tinha visto. Refiro-me a ver. A parede tem uma colecção de vassouras "velhas", entre aspas porque foram compradas e nunca usadas, e esta forma redonda, quase feminina do tecto abaulado sempre me passou despercebida. Esteve ali, desde que foi feita pelo construtor, sem que eu me tenha detido nos degraus e estendido o braço, para lhe tocar com a palma da mão, a sentir-lhe a textura. É fria e ligeiramente rugosa, mas senti-la deu-me um estranho conforto. Muitas vezes assim é a nossa vida: coisas e pessoas que sempre estiveram ali, mas nas quais mal reparamos. Hoje notei-lhe a presença, toquei-lhe e logo este recanto ganhou outro significado. A partir de hoje é mais minha, passou a fazer parte de mim, não está só ali. Conquistou a sua razão de ser. Imaginem a quantidade de tesouros que temos, sem que houvesse oportunidade de se fazerem possuir por nós. 


quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Foi preciso isto

Resultado de imagem para whatsapp 
5nunes. De repente, os cinco tornam-se outra vez irmãos. Embora arrumados em pontos distintos no mapa, a geografia deixou de ser um entrave e os cinco inauguraram uma intimidade que não tinham, desde os tempos vividos sob o mesmo tecto. Foi preciso isto.
WhatsApp. O que se passa convosco? O que é feito? Como têm vivido vocês, em todos estes anos? Foi preciso isto. Os filminhos-tour vão mostrando as casas de um e de outro, cada refúgio, tudo o que é mais precioso, na vida de cada um, na tentativa de recuperar a distância perdida, Vejam a pessoa em que eu me tornei, com a personalidade já por todos conhecida, como quem se confirma: vejam, é assim que eu vivo, esta foi a vida que escolhi. Os sofás, as molduras, os filhos, as efemérides e colecções, os vasos com ou sem flores, o panorama da janela, os móveis, a herança e, até, o futuro próximo: isto vai ser assim, aqui gostávamos de fazer assim… e de repente estamos – não só a mostrar o presente – mas a partilhar os desejos do futuro. Foi preciso isto.
De repente, a irmã mais velha faz a confissão há muito esperada, já esquecida, da parte das irmãs mais novas, sem expectativas: gostaria imenso que todos os meus irmãos me tratassem por tu. E pelo meio do diagnóstico que ninguém deseja viver, há esta coisa singela – Tratem-me por tu –, como quem sente a urgência de encurtar distâncias, esquecer as coisas pequeninas e celebrar a palavra Família, sendo mais irmãos; estando juntos à mesa, ainda que apenas com a ponta dos dedos, nos telemóveis, a mostrar que a intimidade de uma imagem vale por mil palavras de circunstância.
Foi preciso isto. A nossa mãe teve um pesadelo esta noite. Sonhou que decorava montras com vestidos lindos e que, uma vez prontas, vinha alguém e destruía tudo. Agora fazia aqui falta um psicólogo, ou assim, para interpretar que montras serão estas. As coisas bonitas, na vida da Mãe. Juventude, Beleza, Saúde, Glamour, Aventura, Felicidade, Futuro. Foi preciso isto, para sentirmos, enfim, que o Futuro está a ficar cada vez mais apertado. E que chegou uma força estranha e inevitável, para destruir tudo.
Mas será que veio para destruir tudo?
WhatsApp?
O que têm feito?
Estamos juntos, nesta montra feita de belas coisas, para ver a construção das nossas vidas.

Dedico este texto aos meus quatro irmãos e aos meus pais. 

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Claras resoluções

Esta noite tomei uma decisão quanto à geografia da escrita e do trabalho ao computador. Agora que está aí o frio e a chuva, o escritório, com a sua excelente luz natural, vai ficar reservado para a escrita tradicional, a organização de papelada, o arquivo de correspondência..., e o meu portátil veio comigo para o quarto. É quase um pecado, escrever e trabalhar assim a qualquer hora do dia, enfiada na cama. Agora é que eu me desgraço de vez. 
Estou a tentar habituar-me a funcionar sem rato, o que para já é frustrante, mas quanto menos objectos, melhor. Ainda vou descobrindo a função de uma ou outra tecla que, para mim, eram ainda um mistério. "Guardar imagem como"? Ali está, na fila de baixo, do lado direito do teclado, entre "alt gr" e "ctrl", não fazia ideia que este sinalzinho de menu servia para tal. Que outros mistérios haverá por desvendar? Pernas dobradas em /||\, para apoio, o foco de leitura virado para o teclado, o alimentador junto à mesa-de-cabeceira e Internet fibra (mudança recente), que agora me permite ligação à rede com bom sinal, aqui no quarto. Veremos quanto tempo dura esta minha resolução. Sou perita em desfazê-las, como quem bate claras em castelo mas, para já, é definitivo, para os meses frios que se avizinham. Que interesse tem esta mensagem num blog? Absolutamente nenhum. É o que temos hoje. Cansaço. Preguiça. Sono. Mas com conforto. Lá isso. Dentes já lavados, basta pôr de lado o computador e escorregar, para dormir. É o que vou fazer já de seguida. Bater sonhos em castelo. Boa noite.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

A mala encarnada

Retiro o pó à mala encarnada, esquecida debaixo da cama. Lembro-me da frase de Helen Hunt em As Good As It Gets, ao retirar a sua do cimo de um armário: a mala chocada por ser usada, enfim, saindo quase a medo, pouco audaz, habituada à previsibilidade segura daquele recanto escuro, sem vida.
A lista mental: pijama, roupa interior quente, camisolas, escova de dentes, cenas de toilette, botas, perfume, gotas dos olhos, anti-alérgico, livro, caderno, canetas, óculos vários, telemóvel, carregador e, à última hora, cachecol, gorro, luvas. Afinal, é a Serra da Estrela, usar uma t-shirt enquanto preparo a modesta bagagem, para uma só noite, não impede que me aguarde o Inverno, em Manteigas. 
À noite, no quarto de hotel, assisto, sem surpresa, ao discurso de vitória de Jair Bolsonaro. Utiliza a palavra Liberdade. Mudo de canal, para ver qualquer outra coisa.
Na manhã seguinte, é aproveitar a distância percorrida para passear: uma visita a cães serra-da-estrela bebés (e a vontade de trazer todos), uma prova de licor de mirtilo, a compra de chinelos e um casaco de lã, típicos da serra. E um queijo. Não podia faltar o queijo.



O carro a serpentear montanha acima, o frio a subir connosco. 0º. -1º. -2º. Uma fotografia junto à pequena lagoa. O frio, o frio na pele, na carne, nos ossos. Ainda ontem era Verão. 
Um almoço de truta grelhada junto à janela. O aconchego da encosta verde e de um céu bem azul, salpicado de ovelhas. O sol a bater na vidraça.
No regresso, a chuva. A tarde agora mais curta, a luz a sumir tão antes da hora, triste, a acompanhar o desalento deste fim prematuro. 
Chego a casa e sinto que o Inverno também chegou aqui. E é logo na manhã seguinte que estreio as peças trazidas da serra.
Conformada, a mala voltou para debaixo da cama, sem expectativas.