quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Salvação

                       
Este ano lectivo, em que o meu filho vai estudar os Maias, resolvi retirar esse volume da colecção que em boa hora recebi dos meus pais quando arranjei a minha primeira casa. Um dos melhores presentes que recebi. Quem me conhece, dá-me livros. Quase sempre. Os meus pais sabiam que eu amava esta colecção. A edição do Círculo de Leitores é boa, pois sendo já de 1981, está em excelente estado. Desde criança que nunca precisaram de me ordenar que lesse. Eu mesma surripiava das estantes dos pais, irmãos ou de quem fosse, os livros que chamavam por mim. Foi desse modo que, no início da adolescência e lá para o meio, li Os Maias com gosto, por duas vezes, durante as férias de verão. Quando, no 11º ano, eu e os meus colegas tivemos de ler o calhamaço que fazia parte do programa escolar, já eu falava entusiasticamente dos amores dramáticos de Carlos e Eduarda, do Ramalhete e do requinte com que o Eça descrevia pessoas e lugares. Muitos olhavam para mim como se eu fosse um alien. Uma vez que  não havia computadores nem internet e "dava um trabalhão ler quase setecentas páginas ou ir para as bibliotecas à procura de uma versão mais curta" (diziam eles), foi também com prazer que cheguei a escrever alguns resumos para dar aos amigos mais preguiçosos.
Ah, a colecção verde com os livros do Eça! As manhãs passadas com o meu pai, no café perto de Sesimbra, a ler, com um garoto e um bolo sobre a mesa! A despreocupação da época balnear, em que podia ficar assim, mergulhada num livro, sem pensar em mais nada...! Depois crescemos e nunca mais conseguimos fazer o mesmo. Não assim. A nossa mente divaga, foge das páginas, a pensar no arroz que está a cozer, na roupa que temos que engomar, naquele trabalho que nunca mais se confirma, nos telefonemas que temos de fazer, no familiar doente, no apelo de um amigo, na angústia de pagar as contas, nos prazos que temos de cumprir. 
Abro o livro que tenho aqui ao meu lado e, como marcador, encontro uma folha A5 grossa, já amarelada pelo tempo, escrita à máquina: é o índice da colecção de vinte volumes, que há trinta anos a minha mãe escreveu, para facilitar a consulta, uma vez que nas lombadas não consta o nome de cada obra, uma pequena falha do Círculo de Leitores, que temos de perdoar. Apenas as extremidades da primeira página ganharam um tom caramelizado: leio "A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete."
Enfio o nariz no centro do livro que não abria há tantos anos, mudando-o das estantes para caixas de cartão, das caixas de cartão para novas estantes, de casa em casa, e com ele assim, finalmente reaberto, aspiro aquele cheiro a velho, a mofo, que me transporta para a casa de Sesimbra - um cheiro que ele guardou para sempre, talvez para me obrigara a ser criança outra vez. Aspiro-o novamente, pois este cheiro que amo nunca me cansa e... o passado é uma tela que me passa diante dos olhos fechados. Há uma espécie de paz que me inunda o peito. Sinto gratidão por ele, por continuar igual a si mesmo, o mesmo cheiro, cada palavra no mesmo lugar, apesar de tanto caos. Por instantes já não estou aqui, deixei de ser esta mulher de meia idade, para tornar a ser a menina que podia passar horas e dias a ler. Nas margens, aqui e ali, há pequenas manchas acastanhadas. Tenho quase a certeza de que são salpicos muito antigos de café, uma migalha de bolo gordurosa, uma gota de garoto adocicado com um pacote de açúcar Nicola. 
Não são apenas as histórias que nos fazem viajar, as narrativas que se escondem dentro dos livros: muitas vezes são os próprios livros, o livro como corpo que também, tal como nós, vai sendo levado pela sua própria vida. 
Comecei hoje a minha terceira leitura d' Os Maias. Um passado dentro do meu próprio passado, num tempo em que pensar no futuro nos provoca tanto medo. É preciso retirar os livros das estantes. Sujá-los, relê-los, fazê-los viver, conhecer cada divisão da nova casa, andar nas nossas mãos. Todos precisamos de salvação. Até os livros.

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