sábado, 28 de setembro de 2013

O Outono na ponta dos dedos

Sobre a mesa de madeira rústica um boião cheio de biscoitos, uma vela de cravo e canela a arder, e um envelope para cada uma: no interior, uma fotografia assinada pelo próprio, em jeito de oferenda pela escolha de imagem na sessão anterior. A João chegou com as suas próprias oferendas, kits com mimos para o corpo destas mulheres que somos nós, a precisar - não só de alimentar a alma com livros e textos - mas de mimosear a nossa pele.
A Rosarinho trouxe avelãs, que dispus numa tigela de barro.
Leram os seus textos, falámos sobre eles e acerca dos temas que se escondiam entrelinhas, deixando-nos perder, por instantes, em considerações sobre as nossas vidas.
Depois de uma pequena pausa para um chá com biscoitos e avelãs, saltámos para as personagens. Cada uma recebeu um rolinho com um desafio de escrita. Pareciam trocados, mas traziam malandrice, que é segredo nosso. No ar anda uma cumplicidade maior e o orgulho de uma humilde transformação, que se infiltra de sessão para sessão, a fazer crescer os textos e a libertar a ousadia.
Falámos dos filhos, do "Contracorpo" da Patrícia Reis, cujo exemplar acabei por emprestar a uma delas. Uma chuva repentina caiu copiosamente, agigantando a nossa consciência de conforto, enquanto espreitávamos, de vez em quando, as gotas escorrendo ao longo das vidraças e a gaze aquosa cobrindo o vale. Do lado poente, o arvoredo balançava, acompanhando a tempestade das palavras.
Fomos personagens falando sobre personagens. Rindo, palrando, soltando disparates. Acima de tudo, fomos mulheres.
O fim do curso aproxima-se, e sinto-me grata por adivinhar que isso as entristece. Nada mais compensador do que o sentimento de mútua entrega; de reciprocidade. Bem hajam, minhas meninas.

NOTA
Imagem: quadro de John Everett Millais (1829-1896), um dos fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita, que fez por recuperar o estilo "Quattrocento", da arte italiana, dando atenção aos detalhes, à efusão das cores e à complexidade das composições.
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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Vento

Logo pela manhã a casa foi invadida pelo assobio do vento, que não deixava que fossem abertas portas nem janelas. O pelo e as orelhas do cão, serra da estrela, esvoaçavam na ventania, do outro lado do vidro. Ele arfava, como sempre. Sempre o calor.
O corpo ainda sonâmbulo, sob a dormência da noitada; o cérebro em estado gasoso, esforçado, o pobre, tentando reunir as partículas.
Uma vizinha telefona, a pedir-me frascos de boca larga para as conservas de figos. Vasculho as prateleiras altas, os frascos empoeirados, saio ao encontro da ventania, rumo ao pinhal. Os cães da aldeia ladram, atordoados pelo rumorejar das ramagens, o rodopio das folhas de eucalipto. Regresso com uma tigela de "marmelada de pêra" e duas caixas de figos caseiros, da horta, acabadinhos de apanhar, antes que o outono os apanhe.
As horas são gastas ao computador, entregues à preguiça do corpo, aos esforços felizes de quem ama o que faz e revê os textos das alunas, gente crescida e talentosa que faz tantos quilómetros para ter sessões de escrita na Casa da Lua.
O fim da tarde evola os derradeiros átomos da minha vontade. Restam apenas forças para reaquecer um jantar, despachar a fome, cumprir com as palavras e deitar-me com um livro do valter hugo mãe.
O temporal morno continua o seu irado discurso, a fazer-se de mau, mas eu mal consigo escutá-lo: é, talvez, o seu lamento a encaminhar-me para um sono profundo feito de ventos que rodopiam, incansavelmente, entre as folhas secas.

À Bé

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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Chuva

A chuva regressou, enfim, cerimoniosa, no sangue correndo-lhe ainda uma essência estival, como quem pede licença para anunciar o tempo das castanhas. Presenteou a terra com novos aromas, deu outro viço às folhas sedentas, que não chegaram a matar o cúmulo da sua sede. As espreguiçadeiras e a piscina foram abandonadas e olham para mim tristonhas, maltratadas, conscientes de verem interrompido o seu reinado, perdido para céus pardos, ventanias que invadem as tardes e viram do avesso as varetas dos nossos guarda-chuvas. 
É tempo de arejar as roupas de malha, de guardar os linhos e os algodões. A pele vai ganhando o tom amarelado que nos lembra a distância dos dias de sol e nada poderá impedir que novamente escondamos o nosso corpo sob camadas e camadas de camisolas e casacos, as botas engraxadas, as gabardinas junto à porta, a lenha pronta a arder, na grande cesta da lareira. 
A criançada regressa aos liceus, tolerando e agradecendo o atraso na colocação de professores, que lhes dá uns dias extra de férias. Mas em breve todos terão nos braços os novos manuais, os novos horários, os novos "stores", as novas disciplinas.
Sim, a primeira chuva vem lavar-nos do verão, como quem nos desperta; como quem censura ócios e vaidades, pressentindo que algures, sob a pele ainda bronzeada e os figos maduros, já espreitava a saudade.

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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

António Ramos Rosa

Mais um poeta que partiu, deixando-nos mais pobres... é um dos exemplos de puro talento, um homem que, por questões de saúde, nem chegou a terminar o ensino secundário....no entanto, isso não o impediu de ganhar inúmeros prémios literários e de ser respeitado e acarinhado por muitos. Deixo-vos com um simples aperitivo, um poema, como não poderia deixar de ser...

"É por ti que escrevo que não és musa nem deusa 

mas a mulher do meu horizonte 
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia 
Por ti desejo o sossego oval 
em que possas identificar-te na limpidez de um centro 
em que a felicidade se revele como um jardim branco 
onde reconheças a dália da tua identidade azul 
É porque amo a cálida formosura do teu torso 
a latitude pura da tua fronte 
o teu olhar de água iluminada 
o teu sorriso solar 
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte 
nem a túmida integridade do trigo 
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis 
para a oferenda do meu sangue inquieto 
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol 
que quer resplandecer em largas planícies 
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso." 

(António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto')


Para saber mais sobre António Ramos Rosa, clique AQUI 


sábado, 21 de setembro de 2013

Escrita a 8 mãos

Mais uma sessão matinal de escrita criativa cá em casa: Outono na ponta dos dedos. Uma manhã de sol e bastante vento, para estes lados. Recebi as minhas alunas de avental. Duas de nós meteram as mãos na massa, tendendo bolinhas para os biscoitos que foram a cozer. A Rosário trouxe amêndoas. Tive de por um pacotinho de lenços sobre a mesa. A escrita pode ser uma terapia. Talvez o seja sempre. Escondemo-nos dos outros para escrever, mas também nos revelamos ou escondemos na escrita. Vieram autores à conversa, Mia Couto, Laura Esquivel, Joanne Harrys, Romain Gary, Albert Spinoza.
A João interrompeu a realização de um exercício para retirar os tabuleiros do forno. Quando desci com as fotografias do Nanã na mão, a casa já se inundara de perfumes doces. A meio da sessão houve chá earl Grey, aromatizado com bergamota, para acompanhar os biscoitos feitos com amor, sim. 
A 2ª pessoa do singular foi rainha de quase todos os textos. 3 poemas de Russel Edson sobre a mesa, a mostrar que a poesia pode ser assim, infantil, surrealista, desconcertante.
O tempo voou como folhas secas ao vento. Obrigada por tudo, meninas escrevinhadoras.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Russel Edson

Uma vez um homem encontrou duas folhas
e entrou em casa
segurando-as com os braços esticados
dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram
então vai para o pátio e não cresças na sala
pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore
e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono.

Russel Edson

(Tradução de José Alberto Oliveira)

domingo, 15 de setembro de 2013

Marty Knapp

Estranhamente familiar para mim, a história deste homem: as suas opções na fotografia, o percurso da sua paixão...só lamento que nem todos estes "druidas" admiráveis, que existem pelo mundo, sejam reconhecidos de igual modo, como merecem.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Guerra Junqueiro




O melro, eu conheci-o: 
Era negro, vibrante, luzidio, 
          Madrugador, jovial; 
          Logo de manhã cedo 
Começava a soltar, dentre o arvoredo, 
Verdadeiras risadas de cristal. 
E assim que o padre-cura abria a porta 
          Que dá para o passal, 
Repicando umas finas ironias, 
          O melro; dentre a horta, 
          Dizia-lhe: "Bons dias!" 
          E o velho padre-cura 
não gostava daquelas cortesias. 

O cura era um velhote conservado, 
Malicioso, alegre, prazenteiro; 
Não tinha pombas brancas no telhado, 
          Nem rosas no canteiro: 
Andava às lebres pelo monte, a pé, 
          Livre de reumatismos, 
Graças a Deus, e graças a Noé. 
O melro desprezava os exorcismos 
          Que o padre lhe dizia: 
Cantava, assobiava alegremente; 
          Até que ultimamente 
          O velho disse um dia: 

"Nada, já não tem jeito!, este ladrão 
          Dá cabo dos trigais! 
          Qual seria a razão 
Por que Deus fez os melros e os pardais?!" 

          E o melro entretanto, 
          Honesto como um santo, 
          Mal vinha no oriente 
          A madrugada clara, 
Já ele andava jovial, inquieto, 
Comendo alegremente, honradamente, 
Todos os parasitas da seara 
Desde a formiga ao mais pequeno insecto. 
E apesar disto, o rude proletário, 
          O bom trabalhador, 
Nunca exigiu aumento de salário. 

Que grande tolo o padre confessor! 
         Foi para a eira o trigo; 
          E, armando uns espantalhos, 
          Disse o abade consigo: 
"Acabaram-se as penas e os trabalhos." 
Mas logo de manhã, maldito espanto! 
          O abade, inda na cama, 
Ouvindo do melro o costumado canto, 
          Ficou ardendo em chama; 
          Pega na caçadeira, 
          Levanta-se dum salto, 
E vê o melro, a assobiar, na eira, 
Em cima do seu velho chapéu alto! 

          Chegou a coisa a termo 
Que o bom do padre-cura andava enfermo; 
          Não falava nem ria, 
Minado por tão íntimo desgosto; 
E o vermelho oleoso do seu rosto 
Tornava-se amarelo dia a dia. 
E foi tal a paixão, a desventura 
(Muito embora o leitor não me acredite), 
          Que o bom do padre-cura 
          Perdera  o apetite! 

Andando no quintal, um certo dia, 
Lendo em voz alta o Velho Testamento, 
Enxergou por acaso (que alegria!, 
          Que ditoso momento!) 
Um ninho com seis melros, escondido 
          Entre uma carvalheira. 

E ao vê-los exclamou enfurecido: 

"A mãe comeu o fruto proibido; 
Esse fruto era minha sementeira: 
          Era o pão, e era o milho; 
          Transmitiu-se o pecado. 
E, se a mãe não pagou, que pague o filho. 
É doutrina da Igreja. Estou vingado!" 

E, engaiolando os pobres passaritos, 
          Soltava exclamações: 
          "É uma praga. Malditos! 
Dão me cabo de tudo esses ladrões! 
Raios os partam! Andai lá que enfim" 

E deixando a gaiola pendurada, 
Continuou a ler o seu latim, 
          Fungando uma pitada. 

Vinha tombando a noite silenciosa; 
E caía por sobre a natureza 
Uma serena paz religiosa, 
          Uma bela tristeza 
Harmónica, viril, indefinida. 
          A luz crepuscular 
Infiltra-nos na alma dorida 
Um misticismo heróico e salutar. 
As árvores, de luz inda douradas, 
Sobre os montes longínquos, solitários, 
Tinham tomado as formas rendilhadas 
          Das plantas dos herbários. 
Recolhiam-se a casa os lavradores. 
Dormiam virginais as coisas mansas: 
          Os rebanhos e as flores, 
          As aves e as crianças. 

Ia subindo a escada o velho abade; 
A sua negra, atlética figura, 
Destacava na frouxa claridade, 
          Como uma nódoa escura. 
E, introduzindo a chave no portal, 
          Murmurou entre dentes: 

          "Tal e qual tal e qual! 

Guisados com arroz são excelentes."           * * * * * * 
          
Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos 
Tinham o brilho meigo, aveludado, 
Do sorriso dos mártires, dos justos. 
Um eflúvio dormente e perfumado 
Embebedava as seivas luxuriantes. 
Todas as forças vivas da matéria 
Murmuravam diálogos gigantes 
          Pela amplidão etérea. 
São precisos silêncios virginais, 
Disposições simpáticas, nervosas, 
Para ouvir falar estas falas silenciosas 
          Dos mundos vegetais. 
As orvalhadas, frescas espessuras, 
Pressentiam-se quase a germinar. 
Desmaiavam-se as cândidas verduras 
Nos magnetismos brancos do luar. 
.................................................. 
.................................................. 
E nisto o melro foi direito ao ninho. 
Para o agasalhar, andou buscando 
Umas penugens doces como arminho, 
Um feltrozito acetinado e brando. 
          Chegou lá, e viu tudo. 
Partiu como uma frecha; e, louco e mudo, 
Correu por todo o matagal; em vão! 
Mas eis que solta de repente um grito 
Indo encontrar os filhos na prisão. 

"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho, 
Todo tremente, murmurou então: 

"Foi aquele homem negro. Quando veio, 
Chamei, chamei Andavas tu na horta 
Ai que susto, que susto!, ele é tão feio! 
Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta 
E esconde-nos debaixo da tua asa! 
Olha, já vão florindo as açucenas; 
Vamos a construir a nossa casa 
          Num bonito lugar 
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas 
        Para voar, voar!" 

          E o melro alucinado 
          Clamou: 

                         "Senhor! senhor! 
É porventura crime ou é pecado 
          Que eu tenha muito amor 
          A estes inocentes?! 
Ó natureza, ó Deus, como consentes 
Que me roubem assim os meus filhinhos, 
          Os filhos que eu criei! 
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos, 
          Quanta noite perdida 
          Nem eu sei... 
          E tudo, tudo em vão! 
          Filhos da minha vida 
          Filhos do coração!!! 
Não bastaria a natureza inteira, 
Não bastaria o Céu par voardes, 
E prendem-vos assim desta maneira! 
          Covardes! 
A luz, a luz, o movimento insano, 
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa 
          Encarcerar a asa 
É encarcerar o pensamento humano. 
A culpa tive-a eu! Quase à noitinha 
          Parti, deixei-os sós 
A culpa tive-a eu, a culpa é minha, 
          De mais ninguém! Que atroz! 
          E eu devia sabê-lo! 
Eu tinha obrigação de adivinhar 
Remorso eterno! eterno pesadelo! 
................................................. 
Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera 
          Ser abutre ou fera 
Para partir o cárcere maldito! 
E como a noite é límpida e formosa! 
          Nem um ai, nem um grito 
Que noite triste!, oh, noite silenciosa!" 

E a natureza fresca, omnipotente, 
          Sorria castamente 
Com o sorriso alegre dos heróis. 
          Nas sebes orvalhadas, 
Entre folhas luzentes como espadas, 
          Cantavam rouxinóis. 

          Os vegetais felizes 
Mergulhavam as sôfregas raízes 
A procurar na terra as seivas boas, 
Com a avidez e as raivas tenebrosas 
Das pequeninas feras vigorosas 
Sugando à noite os peitos das leoas. 
A lua triste, a Lua merencória, 
          Desdémona marmórea, 
Rolava pelo azul da imensidade, 
Imersa numa luz serena e fria, 
          Branca como a harmonia, 
          Pura como a verdade. 
E entre a luz do luar e os sons das flores, 
Na atonia cruel das grandes dores, 
          O melro solitário 
Jazia inerte, exânime, sereno, 
Bem como outrora o Nazareno 
          Na noite do calvário! 

Segundo o seu costume habitual, 
          Logo de madrugada 
O padre-cura foi para o quintal, 
Levando a Bíblia e sobraçando a enxada. 
          Antes de dizer missa, 
O velho abade inevitavelmente 
          Tratava da hortaliça 
E rezava a Deus-Padre Omnipotente 
          Vários trechos latinos, 
Salvando desta forma, juntamente, 
As ervilhas, as almas e os pepinos. 

E já de longe ia bradando: 

                                 "Olé! 
          Dormiram bem? Estimo 
          Eu lhes darei o mimo, 
Canalha vil, grandíssima ralé! 
Então vocês, seus almas do Diabo, 
Julgam que isto que era só dar cabo 
          Da horta e do pomar, 
E o bico alegre e estômago contente, 
E o camelo do cura que se aguente, 
Que engrole o seu latim e vá bugiar! 
Grandes larápios! Era o que faltava 
          Vocês irem ao milho, 
          E a mim mandar-me à fava! 
Pois muito bem, agora que vos pilho 
Eu vos ensinarei, meus safardanas! 
Vocês são mariolões, são ratazanas, 
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura 
E, nas manhas, um melro nunca chega 
Às manhas naturais de um padre-cura. 
O melhor vinho que encontrar na adega 
É para hoje, olé! Que bambochata! 
Que petisqueira! Melros com chouriço! 
          E então a Fortunata 
Que tem um dedo e jeito para isso! 
Hei-de comer-vos todos um a um, 
Lambendo os beiços, com tal gana enfim, 
Que comendo-vos todos, mesmo assim 
Eu fico ainda quase em jejum! 
E depois de vos ter dentro da pança, 
          Depois de vos jantar, 
Vocês verão como o velhote dança, 
Como ele é melro e sabe assobiar!" 

Mas nisto o padre-cura, titubeante, 
          Quase desfalecendo, 
Atónito de horror, parou diante 
          Deste drama estupendo: 

O melro, ao ver aproximar o abade, 
          Despertou da atonia, 
Lançando-se furioso contra a grade 
          Do cárcere. Torcia, 
Para os partir os ferros da prisão, 
Crispando as unhas convulsivamente 
          Com a fúria dum leão. 
Batalha inútil, desespero ardente! 
Quebrou as garras, depenou as asas 
          E alucinado, exangue, 
          Os olhos como brasas, 
Herói febril, a gotejar em sangue, 
Partiu num voo arrebatado e louco, 
          Trazendo, dentro em pouco, 
Preso do bico, um ramo de veneno. 
E belo e grande e trágico e sereno, 
Disse: 
          "Meus filhos, a existência é boa 
Só quando é livre. A liberdade é a lei, 
Prende-se a asa mas a alma voa 
Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" - 

E mais sublime do que Cristo, quando 
Morreu na Cruz, maior do que Catão, 
Matou os quatro filhos, trespassando 
Quatro vezes o próprio coração! 
Soltou, fitando o abade, uma pungente 
Gargalhada de lágrima, de dor, 
E partiu pelo espaço heroicamente, 
Indo cair, já morto, de repente 
Num carcavão com silveiras em flor. 

E o velho abade, lívido d'espanto, 
          Exclamou afinal: 
"Tudo o que existe é imaculado e é santo! 
Há em toda a miséria o mesmo pranto 
E em todo o coração há um grito igual. 
Deus semeou d'almas o universo todo. 
Tudo que o vive ri e canta e chora 
Tudo foi feito com o mesmo lodo, 
Purificado com a mesma aurora. 
Ó mistério sagrado da existência, 
          Só hoje te adivinho, 
Ao ver que a alma tem a mesma essência, 
Pela dor, pelo amor, pela inocência, 
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho! 
Só hoje sei que em toda a criatura, 
Desde a mais bela até à mais impura, 
Ou numa pomba ou numa fera brava, 
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura! 
............................................................ 
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava" 

E quedou silencioso. O velho mundo, 
Das suas crenças antigas, num momento, 
Viu-o sumir exausto, moribundo, 
          Nos abismos sem fundo 
Do temeroso mar do Pensamento. 
E chorou e chorou A Igreja, a Crença, 
Rude montanha, pavorosa, escura, 
Que enchia o globo com a sombra imensa 
Dos seus setenta séculos d'altura; 
O Himalaia de dogmas triunfantes, 
Mais eternos que o bronze e que o granito, 
Onde aos profetas Deus falava dantes, 
Entre raios e nuvens trovejantes, 
Lá dos confins sidérios do infinito; 
Esse colosso enorme, em dois instantes 
Viu-o tremer, fender-se e desabar 
          Numa ruína espantosa, 
Só de tocar-lhe a asa vaporosa 
Duma avezinha trémula, a expirar! 
................................................. 
................................................. 
E, arremessando a Bíblia, o velho abade 
Murmurou: 
                "Há mais fé e há mais verdade, 
          Há mais Deus concerteza 
Nos cardos secos dum rochedo nu 
Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza, 
A única Bíblia verdadeira és tu!..."


("O Melro - A velhice do padre eterno", GUERRA JUNQUEIRO)

Blogue do ilustrador AQUI

Obrigada, Rosarinho :)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Sting

Há pessoas que envelhecem. Há outras que crescem, amadurecem. O Sting é um caso raro: alguém que parece ter o caminho iluminado: está lindo, em forma, mas não é vaidoso. Tem pouca voz, mas canta lindamente. E compõe cada vez melhor, entregando os seus álbuns mais recentes a fulanos que são mestres em tirar o melhor partido do seu trabalho, com arranjos maravilhosos. Sting tem vindo a contar a sua história e a tendência é um regresso cada vez mais profundo às raízes escocesas e ao Norte de Inglaterra: o Mar é um elemento muito presente. Vejam esta pequena reportagem do seu novo trabalho. Obrigada, P.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Lisboa

Um povo e uma Lisboa vistos pela lente de quem tenta mostrar-nos um lado quase invisível. Vejam, que vale a pena.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Urbano Tavares Rodrigues

Porque já tenho saudades da revista Egoísta e do Urbano...

Texto de Urbano Tavares Rodrigues, in Egoísta Natureza.

"As vozes da Natureza

A transparência do orvalho gemia no meu esquecimento de mim, tornava-me todo eu atenção ao saltitar das rãs amanhecendo na clara alegria do tanque grande.
O meu sangue cantava na ondulação das folhas da figueira.
Agora estou nascendo a toda a volta de mim no riso verde das searas, na brisa que se quebra contra a rude atalaia, sobranceira ao rio com seu açude e seu moinho árabe, e sacode as franjas de silêncio nos altos choupos onde as cegonhas fazem ninho, nos pegos de eu nadar quando a Páscoa aquece as águas.
E ouço os meus segredos mais secretos no gemer das oliveiras e chaparros, meus tão íntimos parentes. E a ternura das sombras estende-se, para lá do rio e das suas narcejas, pelos ermos da Deveza de São Brás até ao Guadiana.
A frescura do silêncio cai um instante sobre as lavradas e as folhas onde o meu ser se recria.
Comecei muito cedo a ouvi-las, as vozes da natureza.
Conheço-as desde que tenho memória de mim. Depois houve a doença, que me impedia de sair do «monte» e, quando melhorei um pouco, conseguiram que eu fizesse a primeira comunhão, mas nunca acreditei naquele inferno que me pintavam e continuei a fugir de casa e embriagar-me de luz, a correr ao lado dos rebanhos de vacas e ovelhas nesse meu regresso à natureza, de que me sentia pertença.
Foram o azul profundo das noites estreladas e o que o vento e as nuvens diziam aos meus ouvidos que fizeram nascer em mim palavras que depois naturalmente começaram a escrever-se.
Da pobreza e do sofrimento dos trabalhadores que me rodeavam só mais tarde me apercebi e senti a necessidade de lhes dar voz por entre as vozes da natureza e pela estrada da vida fui andando com eles no pensamento e nos actos.
Nas ruas de Lisboa e de outras cidades onde não entra o sol de Inverno, tapado por altos edifícios, experimentei a saudade profunda dos descampados alentejanos, das vozes do rio e da tristeza dos homens, dos seus cantares. Levei-os comigo para França e para o mundo, para as aulas que dei e até para as prisões onde os meus ossos enregelaram.
O livro é palavra de combate, mesmo quando não parece sê-lo, se apenas nos mostra os homens nas suas fainas e penas.
Assim continuarei sempre a escutar as vozes da natureza e a dar delas notícia."

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Debussy

Venho pedir desculpa a este blogue, votado ao abandono nas últimas semanas, e também aos leitores que fazem o favor de segui-lo. A partir de hoje já reúno condições para lhe dar vida nova, uma transfusão de palavras e coisas frescas, nestes dias quentes, tão bons.
Deixo-vos com uma das músicas que muitas vezes me fez companhia, ao longo destes dias, em que andei mergulhada numas centenas de páginas que precisavam da minha atenção. Adorava ser daquelas pessoas que fazem mil coisas ao mesmo tempo, mas não sou capaz. Vocês são?
Fiquem com Debussy, numa peça que amo desde que sou criança. Dá-me uma imensa paz e transporta-me para lugares mágicos. E estamos a precisar de magia nas nossas vidas. No Youtube têm a descrição de todos os autores das obras utilizadas. Assim, sim. Ninguém o faz, ao compor estes vídeos. Não é o caso, felizmente. Enjoy.