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quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Mãos de aluguer

Pregnant Woman, 1919, Otto Dix

Linha a linha, os dedos iam apagando e desbastando, para tornar mais leve a sentença, mais sensível a frase. No chão da página, uma saca de palavras inúteis, o peso do excesso que, antes do corte das sílabas, asfixiava o texto do seu cliente. Pagavam-lhe para que ajudasse a oferecê-lo ao mundo, o deixasse mais belo, sem rugas nem sombras, sem erro nem contradição, sem absurdo nem ressonância. Uma espécie de photoshop nas orações, de maquilhagem vocabular. De lápis na mão, não delapidava, antes cumpria o olhar do jardineiro, a perspectiva do som macio, para que dos ramos florissem aveludadas folhas. Às mãos do seu criador, o texto voltava mais hábil e veloz, pousando melhor na pele maternal.
Por vezes sentia o impulso de reescrever parágrafos inteiros, mãe de leite a amamentar o filho de outra. Ao apoderar-se da carne de outrem, enxertando-a com transfusões a partir das suas veias, transformava-se numa vampira invertida, vertendo o seu próprio sangue, a ferir e a transferir o gene da sua escrita. Contra si e contrassenso, dando mais, de mais se apossava. Eram mãos de aluguer a entregar, ao fim da gestação, um filho seu que não era seu.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Caindo

Sonhou que se deixava cair ali, uma rede de circo adiando a sua morte. Um trapézio costurado em calda de açúcar. A chuva interminável dos últimos dias bordara em cada fio um colar de pérolas. Operária de oito patas, bailarina cumprindo a coreografia ensinada a tantas gerações, era nas noites de um luar tímido, em fundos embaciados de azul-mar-alto, que a aranha gostava de tecer, a salvar os sonhadores. Naquele remate, uma gota em diamante de frágil equilíbrio, como bola de sabão ou pingente de cristal, suspendia o fio da realidade. Ao tombar no solo, alguém acordará, enredado em ilusões.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Infâncias

Legenda escrita pela minha Mãe, na fotografia
« (...) a Mãe recordou os anos que viveu perto do Largo do Rato:
− Foi onde passei alguns dos melhores tempos da minha infância.
A vista do meu quarto era fabulosa… em vez do Hotel Ritz havia um monte muito verde, onde pastavam ovelhas.
Tenho dificuldade em imaginar um rebanho ali, ou a paisagem verde. Parece coisa de séculos, naquelas gravuras antigas que vemos da cidade de Lisboa, no tempo do Terramoto, mas não, na infância da minha mãe havia ovelhas no centro de Lisboa.
− Para lá do monte e mais abaixo ficava a Rua Castilho, que naquela zona não tinha casas. Depois era o Parque Eduardo VII. Víamos Lisboa inteira do lado nascente, com o Castelo de S. Jorge e tudo.
− Devia ser bestial andar de bicicleta por Lisboa nessa altura.
− Ah sim, era tão diferente…
E os olhos ficaram sonhadores, pousados no relógio de parede, situado ao fundo da sala.
− Estava aqui a lembrar-me…em 43, tinha eu oito anos, o meu pai disse-me um dia, “vamos até à Baixa para a menina ver uma coisa”. Quando lá cheguei e vi as bicicletas, nem queria acreditar. Escolhi uma verde com campainha, uma Triumph. Essa bicicleta fez-me companhia até ele me ter oferecido a super Raleigh, já depois da guerra, e que fazia a inveja de todos os ciclistas meus amigos. Mas a bicicleta verde representou a liberdade. Em Lisboa, ao fim do dia, ia pedalar ali ao pé do parque.
Interrompeu para beber dois goles de chá Earl Grey sem açúcar. Achei cómico, a Mãe dizer “com campainha”. É claro que tinha campainha. E rodas. E assento. E volante. Vi a Mãe transformada em criança outra vez, os olhos brilhantes, apesar do corpo de garça-azul, ou pilrito-das-praias, saltitando de alegria na rebentação, enquanto ia revivendo os instantes mais felizes.»

(excerto de Entre Mulheres - diário de um lisboeta, p.115, Poética Edições, Setembro 2018)

quarta-feira, 21 de março de 2018

Ninguém via


Chegavam-me histórias sobre a perfeição de nós. Perfeitos enquanto dois. Completam-se, gostavam de dizer, com a certeza dos loucos, como se espiassem os dois corações, a editar-nos o pensamento, a pôr nas nossas mãos uma história ainda a cheirar a tinta, a alterar todos os pontos finais e reticências, cada momento que não vivemos juntos, compondo uma qualquer vida que não era a nossa. Sem nada saberem, rasuravam, mesmo assim, para que fôssemos perfeitos, a dor escrita em maiúsculas, no topo da página, invisível, de tão evidente. O tempo ia moldando a crença dos cegos, com o seu dom de persuadir, tantos anos lado a lado, só podem ser felizes, diziam. Ninguém via, no rasto das tuas mentiras, nos bastidores do meu sorriso, tudo o que lhes servia de sustentação. E por sustento eu tinha pouco mais que o suficiente para não morrer à míngua de gestos que lembrassem, vagamente, a felicidade que devíamos sentir. E cada migalha era uma refeição inteira, um manjar aproveitado até à última partícula, e muita água, para matar a sede e criar a ilusão de um amor cumprido. Só para que não estivessem tão errados, ninguém deveria ter tão pouca razão.

Dedico este texto à P.S. Que o fim lhe seja Recomeço.

sábado, 10 de março de 2018

A casa

«Uma velha muito velha vivia numa casa escondida no coração da floresta, onde a luz mal conseguia entrar. Sobre a casa pairava um nevoeiro esverdeado com laivos de ouro, que as lanças do sol formavam ao trespassar os ramos do arvoredo, enquanto a lua não chegava com a sua túnica de prata. 

Durante o dia o silêncio era rei desse lugar. Apenas o vento se escutava, silvando, a fazer dançar o tédio dos salgueiros e a tristeza dos ciprestes. Durante a noite, porém, os ruídos surgiam, feitos de bichos alados, rasteiros e marinhos; muitas patas e antenas e dentes e pelagem coberta de imundice.

Nessas horas, em que a lua era soberana, as trevas revelavam tons argênteos. Cristais de gelo e uma poalha azul-cobalto acariciavam a folhagem, inundando a floresta de murmúrios ocultos na sedução do frio, como tímida flor nascendo, por miragem, num manto de neve.

Assim se comportava o jardim selvagem ao redor da casa da velha, escondida na floresta onde a luz mal se atrevia. Estranho comportamento esse, tão contrário às leis naturais, não fosse a floresta o cenário verdadeiro da história que aqui se revela, tal como aconteceu.»
(© VERA DE VILHENA, em construção)

sexta-feira, 2 de março de 2018

Desistência

Roubei a imagem aqui
«Cúmplice, este mundo sempre acomodou gente acomodada. Mulheres que ameaçam, ao ritmo da sua raiva, Olha que eu vou-me embora, não aguento mais isto, sempre quero ver como te safas sem mim, mas ficam, vão ficando, e os anos passam e o medo cresce, à medida que o corpo se enruga e o futuro se contrai, na flacidez dos sonhos por cumprir. Não é amor, é desistência. O rancor e o azedume a invadirem o lugar da paixão. A acusação guardada em todos os silêncios, Olha bem, lembra-te da tua fome, de como eu era bela e vê agora como estou, vê o que fizeste de mim, como se ele fosse o autor de cada oportunidade desperdiçada, cada golpe sofrido nas arestas do tempo. E também ele se reforma, ciente de que o mercado da carne mais fresca tem agora uma clientela com a idade dos seus filhos, uma outra geração amadurecida, de leitura impossível, a vibrar em festivais de música estranha, lugares e tendências que são outros, o tónus muscular excitável dos miúdos, em desafio, tanta vida por viver enquanto eles, da noite para o dia, são tratados por ‘senhor’ e o riso delas é trocista ou assim parece, como quem reage, Tenha juízo, não vê que é um velho. Não, nem sempre é amor, é sentir o pulso à hora tardia num caminho sem retorno, seguro e sem abismos, persistir na desistência, menos que renúncia, a ver se iludem a solidão, Já que aguentei até aqui, não vou sair agora, fico-me com esta, que me conhece do avesso e me atura mesmo assim, já nos sabemos de cor, não há surpresas. Nem o cansaço lhes permite a presunção. Por isso ficam. Permanecem juntos como se fosse amor, a ungir a liberdade, a fingir, a fugir à trabalheira de encaixotar os tarecos, procurar casa, fazer contratos de água, luz, gás, e comprar móveis, lençóis, frigoríficos e colheres de pau. Para escapar à incerteza que habita os recomeços tardios, no anoitecer das suas vidas.» 
(em construção) 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Fontes

Caligrafia de Jane Austen, em carta enviada à irmã, Cassandra, 1796
 – Ó vô, é verdade que quando eras novo as pessoas escreviam mesmo?
Sentado na poltrona, o velho pousou os óculos sobre a mesa de apoio, virou a cabeça e respondeu:
– O que é isso de escrever mesmo? Tu já sabes escrever, que eu vi.
– Sim, já sei, pois, mas só com a ponta destes dois dedos – e dizendo isto espetou os indicadores sapudos, que ainda tinham covinhas e refegas, como se fosse tirar macacos mas não tirou – eu digo assim com a mão toda, escrever a sério, num papel.
O velho fez por se lembrar onde vira, pela última vez, uma caneta que ainda tinha um resto de tinta na carga. Já devia ter secado. Afinal, ninguém usava essas coisas, e há muito que atirara aquele objecto inútil para o fundo de uma das gavetas da secretária. Enquanto vasculhava, o neto insistiu:
– E é verdade que na escola vos obrigavam a escrever as letras grandes e pequenas, com as voltinhas todas, como aquelas fontes do Word 3000, a imitar o antigo?
Divagando devido à idade avançada, o velho não soube a que fontes se referia ele, se eram de água cristalina ou fontes de informação e conhecimento. Se era uma fonte de problemas, de chocolate ou de champanhe. A saliva cresceu-lhe na boca e fez-lhe sede. Talvez ainda restasse uma cerveja no frigorífico. “Tenho de ir comprar mais”, murmurou o velho.
(excerto de um pequeno conto escrito hoje)

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Terra seca

Encouraging Women in Their Journey of Faith
O chão queima, não consigo pousar, diz um anjo. A terra murcha, à sede, a ameaçar-lhe as asas com o hálito febril. O solo já coberto de anjos caídos como folhas secas. O choro deles vai compondo serpentinas invisíveis - hoje há vento, dizem os cegos - e só alguns conseguem ver: sonhadores  furtivos caminhando sobre o manto estaladiço, em busca de sonhos quebrados que possam bordar, no tecido do tempo, e usar ao peito; sonhos em segunda mão, flores remendadas na lapela gasta de um mendigo. Talvez um dia sejam, também eles, anjos na terra. Talvez seja possível pousar num amanhecer, sem se tornarem cinza. 

quarta-feira, 17 de maio de 2017

A culpa


«Um menino rico num colégio privado, a promessa de vida fácil. Um rapaz tornado marginal, desconexo, e de repente era vê-lo a ganhar um outro estatuto, a representar outra coisa. Já não era “O Guilherme”, era sim “O Guilherme que se matou”. Para sempre adicionado aquele cognome, aquele peso enorme, aquela sombra de ocaso, distendida à luz do poente, a agigantá-lo, a torná-lo imenso, maior do que todos nós. Não, já não era ele e a sua vida inconsequente, era alguém que fizera a mais exótica e misteriosa das viagens, para ir ter com o Nada, e nos deixara engasgados de arrependimento, com todos os insultos que largáramos sobre ele, no início do ano lectivo, até o aceitarmos. E ele a escrever na carta que ali, no grupo de teatro, fora feliz. E eu a pensar quão infeliz se pode ser, em surdina. Enganou-nos bem. Um actor de primeira, no palco da escola. Uma lição extracurricular.
Não parecia verdade, aquela notícia:
− O Guilherme morreu, matou-se…
Não, não podia ser, ninguém morre assim, com quinze anos. Ninguém escolhe morrer sem ter vivido. 
Mas era vê-lo ali, no caixão, na Igreja da Madre Deus, sem deixar que fosse boato. Lenço de linho sobre a cara, por causa dos efeitos do tiro que os não-sei-quantos que tratam dos mortos não conseguiram disfarçar. Ou então não estava assim tão mal, mas a família não quis mostrar. Afinal, ele até era feio, dificilmente estaria melhor depois de morto. É crueldade, eu sei, era assim que o tratávamos, isto foi só para recordar a nossa imbecilidade. Idade imbecil. E na capela da igreja a Mãe em choque:
− O caixão é muito pequeno! Eu avisei que o caixão era pequeno, ele ainda está a crescer!
E o marido a agarrá-la, e a irmã mais velha a chorar, e as nossas colegas de turma também, todas a chorar por ele e por nós, a culpa escorrendo pelo rosto abaixo. E a Mãe junto dele, a indicar o comprimento das calças cinzentas:
− Olhem para isto, vêem? Estão curtas, vai ter frio! Vai fazer má figura quando chegar ao céu...»

(Vera de Vilhena, excerto do próximo livro)

Photo credits: Dave King

segunda-feira, 11 de julho de 2016

A borboleta

Durante o dia, na cidade parisiense, as horas eram de calor. Trinta graus centígrados. O rio Sena enchia-se de insectos alados, lagartas metamorfoseando-se em festa, num presságio da alegria vestida a três cores - não da parte dos futuros derrotados, com as da bandeira francesa, mas vinda dos outros, muito outros, com o verde-esperança e o vermelho-cravo, cor da paixão, da liberdade, da Igualdade e da verdadeira fraternidade.
Uma borboleta desembaraçou-se do seu casulo, despediu-se dos amigos alados e disse que ia ao estádio ver o jogo.
- Eu também vou! Eu também vou! - disseram outras borboletas já a noite caía, depois de as ondas de calor fazerem estalar os casulos, na cidade que efervescia, na perpectiva da vitória, tão perto, já tão perto, a bater as asas, flap-flap-flap.
E eis que, poucos minutos após o início da batalha, o cristo na terra, herói de tantos, é apanhado à traição por dois soldados francos, que anularam todas as hipóteses de o bravo capitão continuar. Os portugueses ficaram de coração destroçado, mas não mais do que o próprio Cristiano, inconsolável, chorando, sentado no relvado, sem glória. Foi nesse momento, cheirando o sal que escorria pelo rosto bronzeado do bravo jogador, que a borboleta pousou - não, não era uma traça, era uma gorda borboleta nocturna, soube o narrador de fonte segura, por parte dos defensores da ciência e das bizarrias do mundo natural - e como todos sabem que as borboletas trazem milagres, foi para todos evidente: aquele pequeno ser vivo era o Éder, digo, o éter da vitória, Eusébio reencarnando:
- Não desesperes, meu amigo, está escrito que, aos 109 minutos da partida, os franceses terão de engolir cada palavra de escárnio (esta é da autoria da borboleta, que o Eusébio não conhecia palavras finas, só sabia jogar à bola) - pede uma meia elástica, faz mais uma tentativa, que fica sempre bem a um herói, mas depois vai para ali e concentra-te no teu papel de capitão, qual realizador dirigindo os seus actores. Já não precisas de provar seja a quem for o que vales.
E o capitão foi.
E aos 109 o milagre aconteceu: não o golo, que esse foi justo e merecido e estava escrito nas estrelas, mas o de um herói improvável, a mostrar ao mundo que as vitórias são colónias de organismos vivos, unidos, múltiplos, imprevisíveis.
Consta que, após a sua morte, a borboleta será canonizada e sepultada no Panteão Nacional.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Uma janela para o mar

Paralisada junto ao abismo, como borboleta de vestido transparente na iminência da morte, incapaz de resistir à luz. Assim estava Luísa, na madrugada de cinzas, uma réstia de sol a iluminar-lhe o cabelo, o ombro e o braço esquerdo, a pedir:
- Não o faças, não vás ainda, olha para trás, vira-te, para tudo há retorno, menos para a morte.
Mas Luísa tem os olhos presos na ondulação do mar que chama por ela, não conhece o caminho de regresso. 
Os vidros da enorme janela viram coisas que não deveriam ter visto, partilharam com ela o reflexo dos seus olhos de vidro e para sempre a fizeram infeliz. Para sempre. Se ela não se virar. O homem ali está. O Arrependimento nos olhos. O arrependimento mais verdadeiro que um olhar sincero pode reflectir.
Ela sente o corpo a oscilar, antes da queda. E na oscilação do seu tronco revê a superfície de fogo soprado, nascida da areia, talvez a mesma areia no fundo daquelas águas prestes a devorá-la. E quando é capaz, enfim, de ver o reflexo do homem que ama, Luísa vira costas ao mar e enfrenta aquele que lhe cravou uma espada no coração. Nada dizem. O silêncio fala por ambos. Ela sabe, sabe do seu arrependimento e das razões reunidas pelo universo, todas as razões do mundo para lhe darem perdão.
Por fim, Luísa fecha a janela. Nunca pensou que tornaria a ser capaz de fechar aquela janela, a deixá-la entreaberta para o mundo. O sol a dizer-lhe, Não vás ainda. Aquele mar de cobre sob o céu de cinza torna então à sua beleza triste, porém sem morte. Ainda resta lugar para o amor e o perdão.
Nada mais se escuta do que o rebentar das ondas e o murmúrio de um beijo.


© Vera de Vilhena, inédito

sábado, 2 de julho de 2016

O jardim de inverno


Naquela manhã estranhamente fria para a estação, Luísa foi conhecer, enfim, a casa abandonada onde nascera e vivera a sua trisavó Anna. Dizia-se que o fim da sua vida naquela casa fora infeliz, encerrada, ano após ano, vítima do ciúme do segundo marido, um homem que a tratara com todo o carinho até ao dia do casamento, para logo revelar a sua natureza brutal. Anna era vista tocando harpa junto à janela, os longos cabelos soltos, camisa de noite com pequenos folhos e laços, os olhos reflectindo uma tristeza que não parecia deste mundo. A filha que teve do primeiro marido morto, que tanto a amara, fora levada à sua revelia para uma casa de família, adoptada como se não possuísse outro passado: aos olhos do padrasto, era sujo, o sangue correndo nas veias da inocente, fruto de um amor odioso, que ele não pretendia ver recordado, a cada dia.

Quando saíam ambos, para os salões, em vão os poucos amigos tentavam fazê-la regressar, reaquecer-lhe o sangue, provocar em Anna um sorriso, mas a jovem mulher jamais se recompôs do erro daquela união com o Diabo.

Luísa tranca a porta do automóvel, embora esteja absolutamente só, como se temesse a invasão de alguns espíritos que sobrevoam o lugar amaldiçoado. Nas mãos traz a grande chave que trancava a sua trisavó no jardim de inverno, no cimo do rochedo onde fora plantado o palácio: corria pela aldeia que o desaparecimento súbito do marido ciumento não se devera a abandono. Nunca mais fora visto nem o seu corpo encontrado. Mas também ninguém se importara. Anna morrera num hospício, na cidade mais próxima, junto do oceano de ondas sempre em fúria. No último momento de vida, desencarnara gritando:
- Quero voltar! Quero voltar!
Mas ninguém sabia para onde queria ela voltar, para o seu palácio não poderia ser, onde a infelicidade era um corpete colado ao corpo, a asfixiá-la, e até porque há muito Anna nada dizia que fizesse sentido e ali se foi, na cama suja de um hospício, o crucifixo junto à cabeceira, o padre saindo com ar transtornado, como se tivesse sido o receptáculo da mais terrível das confissões.
Não se vende, o palácio, por mais que baixem o preço. Talvez sejam os uivos e gemidos de Anna a desencorajar os compradores, dizem, escarnecendo, os que negam a teimosia dos fantasmas.
A mulher sente uma estranha paz, ao abrir a porta do jardim de inverno, cujas paredes de vidro despedaçado deixam ver as copas das árvores e o mar furioso, a perder de vista. Ao canto, a velha harpa, que ali ficou em silêncio. Voam pássaros, a resgatar memórias da mulher prisioneira.
Luísa aproxima-se do vidro circular, pintado com pavões de cores suaves e sente. Sente e é capaz de ver: alguém ali respira e não é ela, que traz a respiração em suspenso. O vidro a ficar embaciado provoca-lhe um arrepio. Enfim, Luísa reconhece a imagem dos velhos retratos a tomar forma: é o rosto de Anna reflectido na vidraça, a sorrir-lhe, feliz, como quem reconhece, no rosto de Luísa, a própria filha. De repente tudo se aquieta, os ramos das árvores, o voo e o canto dos pássaros, do riacho ali perto, coberto de pedras e musgos; tudo é silenciado, a fim de receber o eco esquecido regressando, em surdina, até formar uma sequência inconfundível de sons, tantas vezes escutados pelas árvores centenárias…
É então que a harpa recomeça a tocar uma peça, há muito interrompida, de Gabriel Fauré: Une Chatelaine en sa Tour.
Anna bem gritara que queria voltar.


© Vera de Vilhena, inédito

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Diálogo entre dois unicórnios-bebés

- Mano, vieram dizer-me que não existimos.
- Como assim, não existimos?
- Que foi este lápis que nos pintou e que somos um animal mitológico.
- O que é isso, mitológico?
- É quando parece que é verdade, mas afinal é invenção.
- Ah, como as histórias.
- Eh...não, as histórias existem mesmo, estão escritas, as pessoas lêem-nas, falam e escrevem sobre elas.
- Então, mais me ajudas, também estamos aqui ou não estamos? Não estás a falar? Não te estou a ouvir? Não estão pessoas a ler sobre nós, a ver-nos, a desenhar-nos, com este 12/0 Silver Ultra Mini Angula não-sei-quê?
Sim, lá isso...
- Então é porque existimos tanto como as histórias.
- Pois é. Então não somos aquela palavra, mitológicos?
- Isso não sei, só sei é que me está a dar a fome. Vamos comer?
- Vamos! Ainda bem que desenharam ervas e flores.
Annie Stegg Fine Art

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Dois irmãos

Entretidos a dispersar os cardumes, eu e o meu irmão trabalhávamos os músculos das pernas, sem saber; o nosso chapéu, a sombrinha, era mantermos a cabeça molhada todo o dia e, para isso, íamos ao banho constantemente. A praia era mesmo ali, a poucas centenas de metros do cais de abrigo, o que era perfeito para desafios a nado:
– Agora até ali ao «Rosinha»!
– Esse é qual? Não estou a ver…
(O meu irmão sempre foi míope e na praia, como retirava os fundos de garrafa, não via nada).
– Ali, aquela chata encarnada e azul! – Apontava eu – o último a chegar é um peixe podre!
Escalávamos rochas à caça de caranguejos e mexilhões – com canivete e tudo –, e, volta e meia, lá tínhamos um encontro com uma alforreca, um peixe-aranha ou um casalinho de namorados que aí tinha ido para estar à vontade, antes de virem uns putos desmancha-prazeres. Com imagens adequadas a maiores de 18, os pés escaqueirados pelas rochas ou a pele a arder, com a carícia das alforrecas, nem por isso ficámos traumatizados. Agora têm um pesadelo, metem-nos logo no psicólogo. 

(excerto do próximo livro, em pré-publicação)

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Cabeças

«Fiquei de lá passar às oito. Quando cheguei a casa eram ainda cinco.
 Tinha a intenção de escrever um bocado, como tenho feito ultimamente, mas...zero. Peguei num livro interrompido do Hemingway e nem assim fui capaz de me concentrar; podia beber um whisky para descontrair, mas era demasiado cedo e ela não gosta do cheiro; acabei na minha passadeira: quatrocentas calorias. Apressei-me a cortar o cabelo no centro comercial, daquelas casas em que não vêem pessoas, só “cabeças”, tipo matadouro: cheguei a ouvi-las dizer:
– Ó Isabel, não me marques mais cabeças, que já tenho o Domingo cheio! Pra qu’é que serve a agenda, pá?!
Ou esta frase “riquinha”:
– Porra, pá, tantas cabeças por dia, uma pessoa té nem tem tempo de ir mijar! E estou cá cuma larica que nem me aguento!
Isto enquanto esfregava a minha. E com força, como se eu não a lavasse há uma semana.
– Estou a ser bruta? Você diga!
(Que sim, que estava a magoar um bocadinho).
– Ai, o senhor desculpe, mas é que aqui a gente ao fim de semana é isto.»
(ainda "em obras de (re) construção", mas para breve). 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Casa

Uma velha muito velha vivia numa casa escondida no meio de uma floresta, onde a luz mal conseguia entrar. Sobre a casa pairava um nevoeiro esverdeado com laivos de ouro, que as lanças do sol formavam ao trespassar os ramos do arvoredo, enquanto a lua não chegava com o seu vestido de feiticeira.
Durante o dia o silêncio era rei daquele lugar. Apenas o vento se escutava, silvando, a fazer dançar o tédio dos salgueiros, a tristeza dos ciprestes que rodeavam a casa de musgo. Durante a noite, porém, os ruídos surgiam, feitos de bichos alados, rasteiros e marinhos; com muitas patas e antenas e dentes e pelagem coberta de imundice.
Nessas horas, em que a lua era soberana, as trevas revelavam tons de prata. Cristais de gelo e uma poalha azul-cobalto cobriam a folhagem, inundando a floresta de segredos que se escondem na sedução do frio, como tímida flor nascendo, por miragem, num manto de neve. 
Assim se comportava o jardim selvagem que rodeava a casa da velha, escondida na floresta onde a luz mal se atrevia. Estranho comportamento é certo, tão contrário às leis naturais, não fosse a floresta o cenário verdadeiro da história que aqui se conta, tal como aconteceu. 
Do lado onde o sol se deitava estendia-se um pântano de águas lamacentas cor de caramelo de leite, habitado por crocodilos, rãs e serpentes, e onde dormiam espectros de afogados e esqueletos de velhas embarcações naufragadas, que as correntes do rio haviam empurrado até àquele fim de mundo sem saída. Um tempo houve em que o pântano era outra coisa, que não aquele tristonho composto de terras peganhentas e infectas. Agora a chuva limpa, vinda dos céus, não caía ali, como se uma imensa abóbada de humidade e calor sobrevoasse o que agora mais não era do que um lamaçal, fruto de uma qualquer maldição: que maldição seria essa?
(conto juvenil em construção, 2015) 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Tardes em naftalina

De Raquel Serejo Martins

My Old Home, © Ana Cristina Dias
«O calor insuportável, o acordar antes do despertador, a noite feita de um sono solto, intermitente, o sol já inflamado, o céu vazio de nuvens, de pássaros, o vidro da janela morno, quase quente, os pés descalços pelo chão do quarto, pelo mosaico da casa-de-banho, o seu rosto no espelho, os olhos lembram berlindes.
Oferece-se um sorriso, o sorriso matinal possível, breve e azul, o cabelo despenteado lembra-lhe sempre as mesmas palavras da mãe, passa um pente por esse cabelo.
Precisa de água como um peixe precisa de água, desesperadamente.
O banho da manhã incapaz de arrefecer o corpo, de levar pelo ralo, o calor dos lençóis colado ao calor do corpo.
De olhos fechados, tenta esquecer a noite debaixo do chuveiro, afogar o cansaço.
Esquece o presente e em consequência chega tarde ao trabalho.
Não se esquece da garrafa de água, o calor obriga-a a circular pela cidade sempre com uma garrafa de água, como se a garrafa de água uma garrafa de oxigénio, como se o seu corpo dentro de um fato de mergulho.
A viagem para o trabalho uma epopeia.
Epopeia nenhuma, nem furos nos pneus, nem falhas nos travões, igual, igual o caminho, talvez mais rápida.
Na rádio ouve notícias de cidades a norte submersas em água por causa de chuvas diluvianas. O mundo em desequilíbrio perfeito.
Com dificuldade arruma as mãos no volante, os olhos na estrada.
As ruas quase vazias. Os semáforos numa sincronia rubra a obrigar os carros a parar.
Procura e encontra um espaço para estacionar sob a sombra de uma árvore.
Um jacarandá, uma sombra azul e parca.
O asfalto sem a habitual dureza a prender-lhe os saltos dos sapatos, os passos, quase a vontade.
Custa-lhe caminhar. No corpo um peso para lá do peso do corpo. Abraça-se, precisa verificar, o fato de linho, leve, não de borracha.
Custa-lhe respirar. O ar insuportável, irrespirável.
Senta-se à secretária, vinte minutos depois da hora em que era suposto sentar-se à secretária.
A secretária como se um boião de aquário.
Na secretária um pisa-papéis em bronze em forma de peixe.
A manhã passa, sem languidez, análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes, telefonemas, uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Depois a tarde, as horas rubras da tarde, do calor maior, o silêncio sob a ausência de silêncio, as palavras em voz baixa, melodias vagas de rádios, deslizar de cadeiras, dedos sobre teclas e botões, cabeças a pensar, sem tempo para divagações, apenas conclusões.
Do ponto de vista das lâmpadas presas ao tecto lembram os membros de uma orquestra a afinar os instrumentos, a azáfama da tarde, formigas no lufa-lufa do carreiro, ninguém em sentido contrário, a cidade um formigueiro, indiferente ao papa-formigas.
A tarde, passa como a manhã, sentada à secretária.
Sentou-se pontualmente à secretária.
As horas do dia indistinguíveis.
No escritório uma temperatura de frigorífico garantida por um aparelho de ar condicionado com dez anos de garantia.
A tarde passa entre análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes, telefonemas, mais uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Até que uma assinatura no fim de uma página, a faz reparar na data, transforma o dia, de abstracto a concreto, um dia de Julho.
Uma tarde de Julho.
Julho quase no fim. Mês de pêssegos e alperces.
E fecha os olhos, cinco segundos, o tempo de um respirar, uma tarde inteira dentro de cinco segundos, imagina-se na casa dos avós, o corredor sem fim, um labirinto em linha recta, dezoito metros de corredor onde tudo podia acontecer, ela a pedalar um triciclo pelo corredor, a alegria dos pés fora do chão, os riscos paralelos de três rodas no soalho.
E no corredor um armário, O armário do corredor, quatro portas, quatro chaves de ferro forjado, a pega em forma de coração, um gigante, como se um mostrengo a atormentar o tormentoso Cabo.
Um armário como se um castelo fechado a quatro chaves, na torre de vigia, num sono vigilante, o gato da casa, a prestar vassalagem unicamente a si próprio, desinteressado do trânsito do corredor.
Demorou a conquistar o armário.
Demorou quatro dias a abrir as quatro portas.
Dentro do armário encontrou roupas da avó, o vestido de casamento, dois vestidos de festa, vestidos de noite, escuros como a noite, talvez para que os corpos se confundam com a noite, vestidos decotados nas costas, polvilhados a lantejoulas, um brilho falso de estrelas.
Não consegue imaginar a avó de lantejoulas.
A avó sempre de avental, branco, alvo, imaculado, se um ramo de rosas brancas e um véu, lembraria uma noiva feliz no cume de um bolo de amêndoa e ovos.
A avó de avental à hora do chá, sempre chá preto com dois gomos de limão, acompanhado com uma cigarrilha que fumava numa elegância plácida.
A avó dizia It’s tea time e com pontualidade britânica preparava o chá.
Nunca percebeu se a avó falava a língua de Virgínia Woolf e de Mrs. Dalloway, ou se sabia apenas frases feitas, palavras soltas.
Há coisas que nunca teve coragem de perguntar.
Lembra-se, sempre que a avó a repreendia, o que acontecia com uma frequência mais do que suficiente e que a insatisfazia bastante, que começava os reproches não pelo seu nome próprio, em riste e completo, Sara Luísa, como sempre faziam os pais, mas com o prefixoyoung lady, que em pequena a reduzia à sua condição de ignorante.
Depois cresceu, ficou maior do que a avó, também começou a fumar, as mesmas cigarrilhas amargas, que quem sai aos seus não é de Genebra.
Lembra-se de um tempo, ridículo e breve, em que se sentiu uma big woman, em que pensou que o tamanho era medida suficiente para descurar as consequências das suas acções e omissões.
Depois cresceu mais, os outros dizem que cresceu, dizem que ficou comedida nos gestos e nas palavras.
Não nos pensamentos.
Nos pensamentos não permite que a incomodem.
Em consequência mente. Mente sem pudor sempre que é preciso. Protege-se.
Empenha-se em cultivar pensamentos esdrúxulos, difíceis de medrar, adubados a palavras de poetas assassinados, regados a água de chuva, gosta de andar à chuva, mesmo em dias de Inverno, a água canalizada de chuveiro, que mais não pode fazer quando não chove, a copos de whiskey, que em simultâneo a preservam de constipações e lhe desafinam o fígado.
Dentro do armário lençóis de linho, cobertores de lã e um cheiro a naftalina misturado com alfazema, sabão azul e sol de Verão, um cheiro, também somos feitos de cheiros, que desde então procura, sem nunca encontrar, sempre que abre a porta de um qualquer armário.
Dentro do armário o seu corpo.
Dentro do armário um barulho de búzios.
Dentro do armário uma gaivota e uma cegonha, o ninho da cegonha, a torre da igreja onde a cegonha fez o ninho, a igreja, os sinos a tocar, uma procissão, uma banda e um maestro com pinta de pirata disfarçado de almirante.
Dentro do armário um piano de cauda, dois pinguins, um tigre, uma girafa azul, um índio e dois cowboys, dois pares de patins, uma princesa, sete anões, um lobo mau, três peixes-voadores, um bando de andorinhas, um espantalho, um balão de ar, uma baleia, uma fada madrinha, um submarino, uma costureira perita, um polícia sinaleiro, um carro de bombeiros, um pião, uma amiga imaginária com um vestido vermelho igual ao seu, a quem contava todos segredos, que não gostava de sopa, agora gosta, de dormir sesta, que sabia escrever o seu nome com todas as letras, contar até 38, que já perdeu quatro dentes, quase uma mão cheia de dentes. Cuidado que morde!
Dentro do armário corridas em patins, as duas de mãos dadas, impossível cair, magoar os joelhos, partir o nariz.
Dentro do armário podiam apanhar um avião para Paris.
Viste a Sara?
Onde é que está a Sara?
Escondia-se do mundo.
Escondia-se pelo gosto simples de se esconder, de desaparecer.
Um dia abriram uma porta, abriram todas as portas, uma a uma à vez.
O seu corpo sem respirar dentro do armário, o seu corpo a girar como a chave girava na fechadura da porta. O seu coração no peito entre o tamanho de um botão e de uma baleia.
Dentro do armário não está!
Divertia-se com a preocupação das vozes, dos passos em volta à sua procura.
Mas onde é que se enfiou a Sara?
No buraco de uma agulha!
Sara!
Sara!
E não sabe dizer quantas vezes deu por si, em casa de estranhos, uma vez num museu, um castelo mobilado a preceito, a enfiar sorrateiramente o nariz porta dentro de armários com mesmo um aspecto suspeito, mas vestidos de noiva, nem lençóis de linho, nem cobertores de lã.
O vigilante com o dedo indicador a tocar-lhe no ombro, uma insistência de campainha de prédio de dezoito andares, um labirinto em linha recta onde tudo podia acontecer.
Ela a desfazer-se num sorriso sinónimo de pedido de desculpa pelo seu comportamento atrevido, ela de olhos no chão, nos atacadores dos sapatos, à espera de uma repreensão que invariavelmente começaria com as palavras young lady… enquanto reprime a vontade de o interromper com a pergunta: Desculpe, por ventura sabe onde é que está a Sara?»
(Roubei aqui)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Corpo dormidor

Dormiu como há muito não dormia. Sem ruídos nem consciência, sem recordação das mudanças de pose daquele corpo dormidor, na sessão onírica em que apenas a escuridão observa o seu repouso. A vida arrumando-se em silêncio, timidamente, as horas cumprindo um papel rasurado, amachucado em desperdício. Ainda a urgência de uma noite que lhe dê protecção, o consolo de um azul-estrelado, a dar fim ao eclipse que lhe deixa, no rosto redondo, um tímido beijo de luz.
Noite Estrelada, van Gogh

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O escritor-fantasma

Ali, preto no branco, estava a lista de autores, obras e discursos escritos na sombra, durante décadas. Todas as provas, deixadas em testamento. Foi um escândalo mundial. Aquilo envolvia até um prémio Nobel. A coisa acabou em suicídios em série, demissões, tribunais, sátiras sem fim. Morto, o escritor-fantasma já não precisava de ganhar a vida. Ainda que tarde, lá conseguiu a sua fama. E foi sem dificuldade que a viúva arranjou editora para os contos e romances que o infeliz marido guardava, há tanto tempo, na gaveta, desolado com tantas cartas de recusa que diziam sempre o mesmo, sem qualquer criatividade, e com a frieza de uma circular:
«Apesar da inquestionável qualidade da sua obra, lamentamos informar que a mesma não se enquadra no nosso plano editorial.»
Ainda hoje o seu espectro paira pela casa. As resmas de papel, guardadas no gavetão da secretária, têm vindo a desaparecer misteriosamente. 

terça-feira, 29 de setembro de 2015

6 anos depois

«Entraste-me na pele, atravessaste todas as minhas células e ficaste aqui, no núcleo de mim. Fui sendo várias pessoas, agigantando-me, aprendendo a ser o que não sabia ser contigo. A carne não é a mesma, tem história, tem tempo, tanto tempo. Mas quando lhe pergunto se ainda te conhece, diz-me que está contigo todos os dias, sem que eu saiba, cúmplice daquele outro bocado de matéria, feito de válvulas atravessadas pelo sangue, aquele pedaço pulsante para cima do qual atiram as culpas do amor. E esse, o coração? Esse ri, espantado com a minha inocência, por ver que entreguei ao tempo a responsabilidade de te arrancar do corpo. Como se ele, o tempo, fosse aspirador que aspirasse a ficar com a nossa história, sorvendo-a, camada por camada, até conseguir ver os nossos dias numa tela de cinema, porque fomos um filme invulgar, irrepetível. Não, o tempo não conseguiu penetrar-me como tu. Continuas aqui, no núcleo do que sou, na carne, na memória. Entras-me nos sonhos com o à-vontade de uma visita que é já da casa, com a destreza de quem nunca chegou a sair. E a cada vez que te visito, sempre me espanto e digo para comigo: pareces que foste ontem.»
(VERA DE VILHENA, blogue, 29 setembro 2009)