«Um menino rico num colégio privado, a promessa de vida fácil. Um rapaz tornado marginal, desconexo, e de repente era vê-lo a ganhar um outro estatuto, a representar outra coisa. Já não era “O Guilherme”, era sim “O Guilherme que se matou”. Para sempre adicionado aquele cognome, aquele peso enorme, aquela sombra de ocaso, distendida à luz do poente, a agigantá-lo, a torná-lo imenso, maior do que todos nós. Não, já não era ele e a sua vida inconsequente, era alguém que fizera a mais exótica e misteriosa das viagens, para ir ter com o Nada, e nos deixara engasgados de arrependimento, com todos os insultos que largáramos sobre ele, no início do ano lectivo, até o aceitarmos. E ele a escrever na carta que ali, no grupo de teatro, fora feliz. E eu a pensar quão infeliz se pode ser, em surdina. Enganou-nos bem. Um actor de primeira, no palco da escola. Uma lição extracurricular.
Não parecia verdade, aquela notícia:
− O Guilherme morreu, matou-se…
Não, não podia ser, ninguém morre assim, com quinze anos. Ninguém escolhe morrer sem ter vivido.
Mas era vê-lo ali, no caixão, na Igreja da Madre Deus, sem deixar que fosse boato. Lenço de linho sobre a cara, por causa dos efeitos do tiro que os não-sei-quantos que tratam dos mortos não conseguiram disfarçar. Ou então não estava assim tão mal, mas a família não quis mostrar. Afinal, ele até era feio, dificilmente estaria melhor depois de morto. É crueldade, eu sei, era assim que o tratávamos, isto foi só para recordar a nossa imbecilidade. Idade imbecil. E na capela da igreja a Mãe em choque:
− O caixão é muito pequeno! Eu avisei que o caixão era pequeno, ele ainda está a crescer!
E o marido a agarrá-la, e a irmã mais velha a chorar, e as nossas colegas de turma também, todas a chorar por ele e por nós, a culpa escorrendo pelo rosto abaixo. E a Mãe junto dele, a indicar o comprimento das calças cinzentas:
− Olhem para isto, vêem? Estão curtas, vai ter frio! Vai fazer má figura quando chegar ao céu...»
(Vera de Vilhena, excerto do próximo livro)
Photo credits: Dave King
Fico na expectativa!...
ResponderEliminarVou ler. Eu sei vou. Para quando a publicação, Vera?
Ainda irá demorar. Obrigada!
EliminarPronto! Fico à espera....
ResponderEliminarMuito "forte" este registo. Promete! Parabéns e fico a aguardar a publicação do livro Vera.
ResponderEliminarMuito obrigada, olhe, também eu! Ainda tem um longo caminho a percorrer, até chegar às mãos dos leitores.
EliminarUfff! Que intenso! Fico na expectativa e quero reservar já o meu exemplar com dedicatória!
ResponderEliminarIrra, conseguiu mesmo deixar-me incomodado e isso é impagável!
Obrigada, Domingos, a escrita também cumpre esse papel, o de incomodar. Nem todas as histórias são felizes e os acidentes são, no fundo, o que faz uma história, mesmo quando acabam bem. Não foi o caso, aqui.Bem haja.
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