quarta-feira, 17 de abril de 2013

a escrita e a imagem II

Como ficou dito ontem, aqui vos deixo um conto que escrevi com a mesma imagem, e que nada tem a ver com o primeiro conto. A pergunta que se coloca, é: com esta imagem (ou outra qualquer), que história imaginam? Quantas histórias se esconderão atrás do que os nossos olhos vêem? A IMAGinação é que sabe!
Amanhã mostro-vos a terceira :)
© Rodney Smith

Noivos em fuga

A igreja estava cheia de convidados. Boquiabertos. Ainda ninguém se refizera do escândalo. Só os rapazolas riam ainda, inconscientes da gravidade da situação; apenas reviviam aqueles momentos inesperados que os haviam resgatado ao tédio: o tabefe, os gritos, o bouquet lançado ao altar-mor, pela noiva ofendida.
O noivo fugira antes do sim. A família da noiva estava desolada e pedira ao padrinho que fosse incutir algum bom-senso na cabeça do outro pateta, a cujo pai eles deviam tantos favores. A noiva fazia um drama intraduzível, cuspindo impropérios dignos do mais vil taberneiro; as mães tapavam os ouvidos às crianças; os velhos perguntavam, O que é que se passa? Eu ouvi bem o que ela disse? 

Enquanto isso, tentando chamar o amigo à razão, compor o ramalhete - não o bouquet, entenda-se, que esse não tinha salvação possível - o padrinho fora no encalço do fugitivo, que se havia embrenhado na floresta, gritando Não-Não-Não ininterruptamente. 
Vamos encontrá-lo aqui, num velho freixo decepado, de traseiro encaixado  a três metros de altura. O chapéu alto ainda na cabeça, como um enfeite de bolo nupcial fora do sítio. A postura lembrava um bonifrate, um boneco de trapos, soluçando e deixando tombar as suas lágrimas sobre a lavandula angustifolia, que perfumava as sombras com a sua tapeçaria lilás e tenra.
- Amadeu?
- Que é (soluço).
- Sabes que não podes fazer isto à Giovanna...Vá, anda lá, recompõe-te, apruma-te e volta comigo, que todos irão esquecer esta cena que fizeste. Casam-se, faz-se a festa, e os copos lavam tudo, vais ver.
- Não quero! Nem por todo o dinheiro do mundo! Giovanna? Que raio de nome! "Dádiva de Deus?!" Essa é boa...! Do Diabo, talvez!
- Bom, tenho de concordar que não é nenhuma Helena de Tróia, nenhuma Cleópatra, mas...
- Nunca! Estás a ouvir? NÃO CASO! Não caso com a verruga, nem com os olhos tortos, nem com  aquele nariz pingado. E o bigode? Tu viste-me o bigode?!
O padrinho conhecia o seu amigo Amadeu desde a infância. Também lhe conhecia as namoradas. Por isso sabia que não valeria a pena insistir. Era um mimado, um egoísta, incapaz de uma atitude altruísta para salvar a família da bancarrota. "Realmente foi malandrice...o photoshop é tramado...mais valia que esta farpela não fosse o tema da festa e que estivéssemos mesmo no séc. XIX, nos tempos em que as fotografias eram verdadeiras...", pensou.
- Muito bem. Vou voltar para lá e anunciar que o casamento foi cancelado. Eu invento uma desculpa qualquer, não te preocupes.
Quando, já virado de costas, se dirigia de regresso à pequena igreja, ainda escutou a voz do outro:
- Diz que eu tenho outra a quem amo perdidamente! 
Mal sabiam eles que, numa das filas de trás, entre os convidados, se encontrava Amásio, o homem que entrara na igreja tardia e sorrateiramente, e que se preparava para interromper a cerimónia no momento infinitas vezes ilustrado em filmes, Quem conhecer... blablabla... que fale agora ou para sempre se cale".
Aquela cena fora para eles, Amásio e Giovanna, absolutamente perfeita. Uma saída airosa, Giovanna tornando-se vítima, ao invés de fugitiva. O carro da fuga já estava lá fora, a postos. Agora bastava fazer um pouco de teatro e apanharem o comboio. E, consolado, Amásio brincou com os dois bilhetes que tinha no bolso das calças. 

2 comentários:

  1. adorei este conto. Para mim, o melhor e o mais criativo.

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    1. Muito obrigada, Angela, pela parte que me toca :) Não sei se haverá melhor ou pior, a intenção era apenas a de mostrar como uma imagem nos pode provocar o nascimento de um texto. A graça que encontro neste desafio esconde-se na diversidade de estilos, nos diferentes olhares. Fazer-nos pensar o que estará por detrás de tudo isto? O que irá acontecer? Quem serão estas personagens? A ficção também acontece assim: olhar e inventar uma realidade.

      Grata pela sua visita! :)

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