segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Será

Às vezes a nossa pena é uma varinha de condão. A tinta das palavras empurra a realidade e fá-la acontecer. Ou será que as palavras apenas se adiantam? Servirão elas para preencher um esboço que nos esperava, e tornar evidente o que antes era invisível? Serão as palavras uma desculpa para as nossas vontades?

domingo, 29 de novembro de 2009

A porta

Tantas vezes ensaiara aquilo, que agora que acontecia não estava certa de que fosse real. As queixas eram antigas como a poeira; os passos haviam sido repisados uma e outra vez, até o seu desenho se tornar em algo disforme, indistinto. Os gritos e os murros na mesa repetidos tantas vezes, que as vozes e as mãos tinham esquecido palavras, promessas, carícias. Aguardara o momento certo, mas tal como se espera o dia de gerar um filho na desventura, também esse tardava a chegar. E assim resolveu tornar-se mãe da própria vida, dona dos seus passos, emoldurá-los, encarcerá-los, se necessário fosse, para que não tornassem a fugir-lhe; mesmo sem ter como alimentar aquela vida autónoma sem autonomia, sem ter como alimentar o seu alimento. Mas de fome estava ela cheia. Fome de ser livre, de sofrer sozinha. Nos últimos anos andara submersa num sofrimento desencontrado, o diálogo era uma corda bamba, desfiando-se num ruído ensurdecedor, intolerável. Todos os dias dizia, Estou farta, farta, mas escolhia ficar, só mais umas semanas, como quem espera o próximo período fértil para conceber um filho. Andava estéril de vida, seca nos seus dias. O tempo ofendia-a, passando por ela com desprezo. A vida era dos outros, não sua. A felicidade deles magoava-a como o estalo de uma mão injusta, que se abate no rosto quando menos esperamos. Não fui eu, pensava ela, recordando as ofensas em criança. A carne a arder, o coração infantil em chamas de raiva. E tal como então se fechava no quarto, a chorar o agravo, assim fizera em mulher, durante aqueles anos, sufocando a voz na almofada, não fui eu, não fui eu. Desta vez fora ela. Fora ela a escolher aquele homem, aquela casa, aquela vida. Fora ela a conduzir-se até ali. E assim se penitenciara, adiando a partida. Protelando o fecho definitivo da porta. Saiu nessa tarde, grávida de susto. A cada passo, um precipício, a cada aceno lhe decepavam as mãos. Mas de passos cautelosos estava ela cheia, de mãos vazias estava ela farta. Sim, a incerteza tornou-se a certeza dos seus dias, mas as noites, essas, dormiu-as em paz. Jamais o silêncio fora tão belo, nem a solidão tão frágil. As manhãs seguintes iam-lhe dentro do peito, a cada vez que abria a porta da que era agora a sua casa.

Imagem: Nanã Sousa Dias

sábado, 28 de novembro de 2009

A dor e a insónia


2.58. A dor não me deixa dormir. Não, não é uma dor metafórica, uma figura de estilo, é uma dor real, física. A mão esquerda sobre labaredas, que me comem a carne. Os ovos verdes que fazia para o almoço saíram-me da pele: ao retirar o óleo não aproveitável da fritadeira, encontro o corpanzil do cão, encostado aos meus pés e, num movimento brusco para não me desequilibrar...o desastre. O óleo a ferver cai sobre a mão esquerda. Água fria abundante, clara de ovo. Almoço numa aflição constrangedora, as lágrimas correm, ofendidas com este fogo que me consume os dedos. O meu marido transformado em enfermeiro de serviço. Farmácia, pomada, compressas esterilizadas, ligadura. Nome de índio: pata branca. Pouco depois da meia-noite tentei dormir, depois de umas páginas da escrita maravilhosamente triste de Clarice Lispector. Impossível. Os analgésicos proporcionam-me um alívio momentâneo, mas horas depois volta o ardor na pele e a pulsação fervilhante da carne que queima. Não pude tomar nova dose e assim me obriguei a amigar-me desta dor nocturna e insone. Levanto-me, desisto do sono, e instalo-me no escritório, com o ventilador ligado, pijama, casaco de lã, roupão e manta sobre as pernas. Sim, o frio do inverno transforma-nos em velhos mendigos, que imploram um pouco de calor. 3.34 e eu aqui, entregue a esta dor ridícula, em vez de estar no conforto do edredão. O coração na ponta dos dedos, a pulsar. Uma dor que não é figura de estilo. A dor real não serve a literatura. Nenhum dos males do corpo é literário. Como cultivar a mente, quando o corpo domina? Quero escrever e tudo o que sinto é este sofrimento de chama, como se me derretessem os dedos com um maçarico. 3.48. Escrevo com o indicador direito. A mão esquerda aguarda que a dor se acalme. Caprichosa, ordena que lhe dê alívio, com nova quantidade de químicos. Não lhe faço a vontade. Oito em oito horas, dizem. O sono apodera-se de mim, o corpo implora-me que o leve para o aconchego da cama e eis que a dor retorna…4.01…4.07…4.14…

Roubei a imagem aqui:
http://olhardireito.blogspot.com/2009/01/fogo.html

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Nome de índio: Pata Branca


Estou de pata ligada. Óleo a ferver sobre a mão esquerda. Há sensações melhores. É nestas ocasiões que constato algo de tão simples quanto isto: se escrevesse no método tradicional, em papel e caneta, o antebraço quase inútil seguraria o caderno, e a mão direita correria livre e elegante sobre as linhas, escrevendo sem dificuldade. Assim, para publicar esta miserável mensagem do dia, vejo-me obrigada a saltitar com o indicador direito, da esquerda para a direita, de cima para baixo, à caça das letras, exasperando o músculo do braço, que não está habituado a esta inquietude. Benditos analgésicos.
Vou-me antiquar e fugir para o papel. Não há condições para a modernidade.
Ah, é verdade. Arrumei a casa. A partir de agora, todos os textos estão organizados por etiquetas, para facilitar as consultas.
Roubei a imagem daqui:

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O amor aos livros


Terminou hoje o Seminário de Promoção e Mediação da Leitura, sob a orientação de JOSÉ FANHA. Há coisas que se fazem "por amor, porque interesse não têm nenhum!" (é uma piada). Neste caso, o amor aos livros. Este foi um desses casos: com chuva, já noite caída, e até com futebol na TV, o público lá esteve, fiel, para a quarta e última sessão. Atrevo-me a dizer, sem qualquer exagero, que arrisquei a minha vida (ou, pelo menos, a do meu automóvel), para estar presente, pois tenho grandes e insolúveis dificuldades de visão e estou a modos que impedida de efectuar condução nocturna, muito menos debaixo de chuva. Pois lá cheguei sã e salva, sob o olhar atento do meu anjo da guarda, que não tem descanso. Pois lá cheguei feliz e inteira a casa, com o meu certificado de participação, assinado pelo Fanha e pelo presidente da Câmara. No caderno de notas, trouxe várias páginas de curiosidades e muitas e auspiciosas sugestões de leitura. O grupo despediu-se com um "até à próxima", na esperança de que estas iniciativas se repitam. Vale a pena trocar a segurança e o conforto do lar por um encontro com os livros. Aqui fica um agradecimento à Câmara Municipal de Mafra e ao José Fanha. Votos de boas leituras!
Em baixo têm o link para o blog deste professor, poeta, escritor e mediador cultural, que já conta, até à data, com três bibliotecas escolares com o seu nome, pelo contributo que tem dado à promoção da leitura junto dos mais novos, que contagia com o seu amor aos livros. O nome do blog diz tudo: "Queridas Bibliotecas".
http://queridasbibliotecas.blogspot.com/

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Já não há futuros assim

- Quando formos adultos e casarmos…
Tu interrompias-me, com um trejeito de amargura que me deixava triste. Uma amargura impossível para alguém que ainda não viveu. Porque não acreditas em nós, no futuro? Respondias-me que te magoava de mais, que, se ainda estávamos juntos, era apenas por gostares tanto de mim. Como se esse amor não tivesse nada a ver e fosse uma doença que tivesses de tratar. Não vês que éramos duas crianças? Que eu não sabia gostar melhor de ti? Mas gostava, com o corpo todo. E os corpos, esses, usámo-los bem, para contar a nossa história. Para provar um ao outro, para nos provarmos e experimentarmos tudo o que havia a experimentar com as bocas, as pernas, os braços, as mãos. Tu eras já uma mulher quando notei o volume sobre a tua t-shirt amarela, lembras-te? Escondias o corpo que se ondeava, envergonhada com as formas redondas que não tinhas como esconder, no calor do verão. Eu maltratava-te, com a minha falta de jeito, mas éramos o par de namorados mais famoso do colégio. Invejavam-nos. Suspiravam por um amor assim, tão cheio de ânsias, lágrimas e escândalos.
Já não há futuros assim. Porque eu acreditava que, por mais desajeitados que fossemos, iríamos aprender juntos a arte de viver. Porque me entraste na pele, atravessaste todas as minhas células e ficaste aqui, no núcleo de mim. Fui sendo várias pessoas, agigantando-me, aprendendo a ser o que não sabia ser contigo. Hoje a carne não é a mesma, tem história, tem tempo. Mas quando lhe pergunto se ainda te conhece, diz-me que está contigo todos os dias, sem que eu saiba, cúmplice daquele outro bocado de matéria, feito de válvulas atravessadas pelo sangue, aquele pedaço pulsante para cima do qual atiram as culpas do amor. E esse, o coração? Esse ri, espantado com a minha inocência, por ver que entreguei ao tempo a responsabilidade de te arrancar do corpo. Como se ele, o tempo, fosse aspirador que aspirasse a ficar com a nossa história, sorvendo-a, camada por camada, até conseguir ver os nossos dias numa tela de cinema, porque fomos um filme invulgar, irrepetível. Não, o tempo não conseguiu penetrar-me como tu. Continuas aqui, no núcleo do que sou, na carne, na memória. Entras-me nos sonhos com o à-vontade de quem pertence à casa, com a destreza de quem nunca chegou a sair. E a cada vez que te visito, sempre me espanto e digo para comigo: parece que foste ontem. Que faço eu com este nosso futuro mais que perfeito, que tenho dentro? Não, não te mexas. Não saias do meu corpo, por favor, mas não entres na minha vida. Deixa estar assim, este amor sublime na distância, sem a vulgaridade dos dias, como quem ama o mar ao longe. Não me digas a verdade, não me recordes. Hoje eu sei, juro-te que sei, pois o tempo, finalmente, passou por mim também. Deixa-me viver a vida dos outros, a vida que se espera de nós, e voar para dentro de ti de vez em quando, para te fazer criança outra vez. Deixa que sejamos reticências, onde tudo cabe, até o futuro que poderíamos ser, mas que não seremos nunca. Estamos presos num castelo de gestos infantis, que erigimos num tempo sem muralhas. Fui ponte levadiça e deixei-te entrar. Encerrei-te dentro de mim para sempre.Por isso deixa estar assim. Deixa que o fosso da vida corrente se afaste de nós, para continuarmos reis do nosso castelo. E serás um Passado sempre presente, pois se abalássemos dessa fortaleza elevada em direcção à planície, que faríamos nós dessa paisagem? Para quê trocar um refúgio de memórias, pelo refugo dos dias? Quando a amargura do tempo tenta arrancar-me o desejo, o desejo mais profundo, lembro-me de nós. E torno a pegar nos braços, chamando por ti, para construirmos juntos um novo castelo. Perdoa-me, sim? Por insistir em construir, dentro de mim, todos os futuros que desperdicei.
(publicado no blog “A DEVIDA COMÉDIA", por MIGUEL CARVALHO, 23 Novembro 09)
http://adevidacomedia.wordpress.com/2009/11/23/

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Desculpa, vida

Estou neste dilema. Sinto esta vergonha de me descrever quando escrevo. Se me coloco fora de mim mesma, o texto que aparece soa-me falso, carregado de artifício, como a maquilhagem ridícula de um palhaço pobre. Se transformo em palavras o que arranco do peito, sou plagiadora da minha própria vida, pois roubo o que sou aos dias que vivi, copiando as memórias, como menina mal comportada na escola, que copia pela vida do lado. Como se insistisse em escrever longas cábulas, que me transformam numa batoteira. Assim não vale, não brinco. Estou a brincar comigo mesma, abusando de mim. E que direito tenho eu? E se a minha vida se virar contra mim, ofendida pelo plágio? Outro remédio não terei senão pedir-lhe desculpa e explicar que estou parca de ideias, que me vi forçada a beber da minha existência, para convencer os outros, que também vivem as coisas que têm dentro e que andam à procura de espelhos nas palavras. Porque um espelho nos devolve o que somos e não sabemos dizer.
Se me resguardo, o texto não tem sabor; se me permito a sofreguidão da franqueza, nasce esta culpa de me despojar da vida, a cada vez que me conto. O plágio. A cópia de mim mesma, disfarçada de palavras. Desculpa, querida existência, mas o que vivo insinua-se à descarada. Não tenho como resistir. Não sei muito, não sei mais do que isto, pois a carne das minhas palavras é fraca. Não me ensinaste a ignorar-te. Era preciso ter vivido muitas vidas, para estar exausta de viver e dar-me ao luxo de desprezar-te; de desperdiçar emoções e pensamentos. Ir buscá-los fora de mim, como quem esquece uma camisola velha num armário e sai à rua para renovar o guarda-roupa. Tudo novo, a estrear. Impessoal, sem cheiro nem alma. Não, afinal não quero. Gosto do conforto das roupas velhas, que já têm o meu cheiro, a minha forma, a minha vida agarrada. Desculpa, vida, fizeste-me assim. Devia ter aprendido melhor a fingir que vivo. Inventar. Mas quando vivo não tenho como esquecer que vivi. E as palavras alinham-se, como comadres alcoviteiras, segredando-me a existência, sem pudor. Sou plagiadora dos meus dias e ando neste desconforto de não conseguir calar a minha voz. Desculpa, vida. Guarda-te, se quiseres. Esconde-te, e eu vou tentando fingir que vivo, prometo, mas não posso fugir à voz que te vai buscar.

Foi hoje


Um filho é a coisa mais verdadeira que se tem. Ser mãe é perder a paz para sempre, mas vale a pena. Parabéns, filhote, pelos nossos
14 anos juntos.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Clarice Lispector

Ando a descobrir esta autora brasileira, que me deslumbra. Deixo aqui um micro-conto, na íntegra, para que se deslumbrem comigo.

"Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objecto - é para lá que eu vou.
À ponta do lápis o traço.
Onde expira um pensamneto está uma ideia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.
Na ponta dos pés o salto.
Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.
Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. se continuam mágicas. Realidade? Eu vos espero. É para lá que eu vou.
Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? Ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.
É para o meu pobre nome que vou.
E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta?, a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos negros e ninguém saber.
À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento?, que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.
Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.
Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira do teu corpo? Eu estou à beira do meu corpo. E feneço lentamente.
Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós."
(CLARICE LISPECTOR, in "É Para Lá Que Eu Vou", in "Onde Estiveste de Noite")


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Desencontrada do corpo

Olhou para a fotografia tirada na festa e para o top ousado, que deixava ver os ombros nus. Estou mais magra, pensou, feliz. Depois olhou-se com olhos de realidade e o que viu desfez a ilusão: aquele corpo franzino mostrava a sua idade. Era o esqueleto que se anunciava e a carne que se despedia; era o corpo a preparar-se para baixar à terra. E aquele brilho na sua pele era feito de produtos, de cremes, de artifícios. A pele já não brilhava só por brilhar, como antigamente. Aquelas rugas finas que começavam a amarrotar-lhe os olhos lembravam-lhe as pontas dos dedos, quando era criança e se deixava ficar demasiado tempo no banho. Era como se a vida que já passara por ela fosse essa água leitosa, quase fria, que ela tentava recuperar, abrindo a torneira da água quente, para renovar o banho. Para reviver e alongar aqueles minutos de intimidade. A vida era aquela banheira, onde se balançava, fazendo a água oscilar, para cá e para lá, divertindo-se a cada vez que, no seu entusiasmo, a deixava derramar-se sobre o chão de mármore. Evocava o acto sensual de mergulhar a cabeça na água tépida e sentir o cabelo pesado, que dançava em todas as direcções, como as algas ou os corais que via nos documentários da televisão. E então sentia-se sereia e estudava os ombros que se arredondavam e o tronco que se tornava violoncelo.
Já não sentia o peso do cabelo sobre os ombros, mesmo que continuasse a usá-lo comprido. Para onde fora o peso do seu cabelo, que hoje mais não era do que uma nuvem de algodão? Estaria já a subir ao céu, sem o saber? Estariam os anjos à sua espera, tornando-lhe o corpo assim, leve, para lhe facilitar a viagem? Tudo aquilo era tão prematuro, tão cheio de maldade. Andava desencontrada do corpo e não conseguia convencê-lo a comparecer ao encontro dela, por mais que o tentasse. Parecia-lhe murcho, amuado, cansado da vida. Mas ela ainda não se cansara. Porquê, então, aquela pressa em partir?

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Chico: Nos bastidores das canções


No blog da Revista "Os Meus Livros" (OML), dei com esta notícia feliz:
"O livro de Wagner Homem sobre as canções de Chico Buarque chega antes do Natal e não apenas em 2010, como estava previsto. Eis o comunicado da Dom Quixote.
“Inicialmente previsto para ser editado apenas em 2010, a Dom Quixote, correspondendo ao apelo de inúmeros leitores e admiradores da obra de Chico Buarque, decidiu antecipar para dia 30 de Novembro, dia em que chegará às livrarias, a publicação do livro ‘Histórias de Canções – Chico Buarque’, de Wagner Homem, lançado pela Leya Brasil no passado mês de Outubro.
‘Histórias de Canções’, como o próprio nome o indica, fala-nos das circunstâncias em que foram compostas e trabalhadas as músicas do compositor brasileiro. Trata-se, no fundo, de uma compilação de episódios, uns alegres e divertidos outros nem tanto, que, por assim dizer, escancaram a intimidade do popular cantor durante o seu processo criativo. Através deles, o leitor poderá ficar a conhecer quem foi a musa inspiradora de canções como Beatriz, Carolina ou Cecília. As letras das músicas e a correspondência trocada, entre outros, com Vinicius de Morais, durante o período em que ambos trabalharam juntos na célebre música Valsinha, também constam deste volume. No total, são 26 capítulos que abragem o período compreendido entre 1964 e 2008.”
Aqui fica uma sugestão para o sapatinho.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O dossier cor-de-rosa

Hoje abri um velho dossier que andava fechado há muitos anos e que arrastei comigo pelas várias casas onde fui morando. Nele guardo ainda alguns “pontos” (testes) de filosofia e de português dos tempos de colégio, poemas, cópias de cartas, desabafos em tom de diário, primeiros exercícios de escrita a até uma primeira tentativa de romance (autobiográfico, é claro…)! Fiquei pasmada com a data, pois nem me recordava desse esforço patético de "livro": 1 de Setembro de 1986: tinha 17 anos. Coitadinha, como eu escrevia mal! Mas existe algo de muito certo nisto de confirmar que antes escrevíamos mal, cantávamos mal e fazíamos…eeeh.. uma série de coisas mal (risos). Pelo meio de muita ingenuidade adolescente, encontrei um comentário maduro, a propósito do erro de cair na tentação de escrever uma obra maior do que a nossa modesta experiência de vida: “Não posso de maneira alguma entregar-me a uma história, sem saber como lidar com ela. Seria o mesmo que trazer para casa um estranho”.
De resto, muita exclamação, muita reticência, muita interrogação. Como somos emotivos, apaixonados e patetas, antes de crescermos... E que saudades...!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Mau génio

Tinha chovido a noite inteira e o temporal não me deixara dormir em paz. A minha vida andava em banho-maria, tudo pendurado, sem seguimento nem solução; os problemas a multiplicar-se, como ervas daninhas. Estava farta. Hoje não faço nada, não quero saber, pensei. Fico em casa, que se lixem. Resolvi dedicar-me às arrumações. Com o mau humor com que eu estava, seria o dia ideal para me ver livre de um monte de tralhas e arranjar espaço. Isto vai, isto vai, isto vai…tudo fora. Por algumas horas, mais não fiz do que executar os gestos de uma pessoa normal, medíocre. Como a pessoa que eu era até esse dia. Quando remexia numa pilha anónima e caótica, coberta de poeira e teias de aranha, encontrei uma lamparina e puxei-lhe o lustro, com fúria e um sorriso algo sarcástico, confesso. Um génio saiu, como não podia deixar de acontecer, e postou-se à minha frente. Não, não fiquei toda contente, pelo contrário. Quando o gajo apareceu, senti um cheiro horroroso, como o de alguém que não toma banho há que tempos e achei insultuosa aquela invasão de propriedade. Ok, era um génio, porreiro e tal, mas podia ter-se lavado antes, ou não podia?
- Porque me libertaste... - disse ele.
- Sim, sim, já sei, três desejos.
- Eeh...não. UM desejo. Apenas um.
- Então, mas… não eram três?! Aaii…
- Eeeh...não. Deve estar a confundir-me com outra história qualquer.
- E que merda é essa de começar as frases todas por “eeeh…..”? Não vê que isso é irritante? Que é isso do “eeeh…”?!
- Eeeh…
Respirei fundo.
- Ok, deixe lá. Bom, quantos desejos são, afinal?
- Eeeh…um.
- Mas isso é uma vigarice, ouviu?! Como é que esperam que uma pessoa concentre num desejo só tudo aquilo que quer da vida, diga-me lá?! É sempre a mesma coisa! Uma pessoa farta-se de trabalhar, o dinheiro não chega para nada, não vale nada, espremem-nos até ao tutano com leis idiotas, impostos e o diabo a sete, e quando chega a hora, não há nada para ninguém! As reformas uma miséria, a corrupção está em todo os lado, a começar por cima, a justiça é o que se vê, a educação…
Eu ia lançada, ficaria ali a resto do dia a descarregar a minha fúria naquele idiota, mas ele interrompeu-me:
- Olhe, desculpe, mas não tenho o dia todo. Afinal, o que é que vai ser?
O estúpido falava como se eu estivesse à frente do balcão de uma pastelaria. Era mesmo de amador, aquilo, o raio do génio era mesmo mau. Foi então que tive um instante de clarividência, uma verdadeira epifania:
- Ai é? Então já sei! Quero que TODOS os meus desejos se realizem.
Irritado, o génio rosnou, lançando os braços ao ar, em desespero, e fugiu a voar. Assim, sem um adeus.
Nunca ninguém se tinha lembrado dessa? Azarinho, temos pena. Até hoje, o tipo nunca mais me apareceu. A bem dizer, não me faz falta nenhuma. Para mau génio, basto eu.

sábado, 14 de novembro de 2009

Banhos de lua


Sonhei que me banhava num lago lunar. Sem o sol que as iluminasse, as águas eram cor de prata e escorriam pelos meus dedos como gotas de mercúrio. Mergulhada nesse liquido de cinza, com a barriga voltada para o céu de um negro perpétuo, erguia os meus braços e remava, deixando o corpo cortar o espelho prateado. Ao meu redor, só o silêncio. Mudos, os bagos de prata deslizavam pelos meus pulsos, de regresso à túnica argêntea e macia. Ergui-me, enterrando os pés na areia cintilante, que refulgia no meio da escuridão. Cingi o corpo saciado com um véu cor de sangue, que irradiou o calor de que eu carecia, para amornar a pele. Quando despertei e abri os olhos, a brancura dos lençóis quase me ofuscou. O rosto estendia-se ainda num sorriso onírico, pois na memória trazia a consciência de ter flutuado nas águas mudas de uma estrela, cujas areias, que se desprendiam do fundo, eram partículas tão distantes do meu mundo. Ali não havia terra: apenas um mar de prata, a ternura da noite e o meu lenço escarlate.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Longe do deserto

Compus uma mensagem.
Guardei-a numa garrafa cristalina
E aguardei a maré.
Um dia ela partiu,
Pelo mar adentro,
E eu esperei
Como mulher de pescador,
Perguntando
Chegará ela a bom porto?
Tornar-me-ei viúva desta missiva de socorro?
Mais não tive do que a luz ténue de um farol.
Enfim a notícia chegou, toda feita de vento
E empurrada pela brisa fresca
Inicio uma nova viagem.
Vale a pena lançar mensagens ao mar
Deixar que passem os sóis e as luas;
Existe uma armada dentro de nós,
Que aguarda o dia  de zarpar
Em direcção aos nossos desejos
E levar-nos para longe do deserto.
(VERA DE VILHENA)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Prémio PT de Literatura



Nuno Ramos, célebre artista plástico brasileiro, estreou-se na ficção e arrecadou logo o primeiro prémio, com o romance intitulado "Ó".
Entre as dez obras finalistas encontravam-se oito romances, um livro de contos e um de poesia. Os portugueses Gonçalo M. Tavares (que já ganhou este prémio em 2007, com "Jerusalém”), António Lobo Antunes (que ficou em segundo lugar na edição 2008, com a obra “Eu Hei de Amar uma Pedra”), Inês Pedrosa e José Luís Peixoto faziam parte dos candidatos finalistas.
António Lobo Antunes não esteve presente...
Lamento que os nossos queridos Inês Pedrosa e José Luís Peixoto não tenham recebido nenhum dos três prémios, mas outras oportunidades virão.
Para mais informações, espreitem o blog "Ciberescritas", da jornalista Isabel Coutinho, aqui:


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Em suspenso


Tenho a vida pendurada. Nada se anula nem confirma. Nada avança.
A correspondência não é correspondida, como carta de amor sem resposta. As pernas e os braços murcham-me, sem alimento que os animem, ressequidos, revoltados, pelo desconserto do silêncio. Quando irei conseguir mover-me e regressar ao mundo dos vivos?

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Rua Sésamo


40 anos de Rua Sésamo!
Hoje descobri que eu e a Rua Sésamo temos apenas 3 meses de diferença! Também eu fiz 40 aninhos este verão.
Que nostalgias que esta série me traz... lembro-me de que eu tinha o hábito de me sentar à frente da TV a ver "O Barco do Amor", o "Espaço 1999", a "Galáctica",  "Uma Casa na Pradaria", ou os "Looney Tunes" com uma vergonhosa pilha de bolachas "torradas", da Triunfo, acasaladas, que eu recheava de doce de morango ou de framboesa. Por isso, em honra da Rua Sésamo, me chamavam de Monstro das Bolachas. E com toda a razão, diga-se. Quando ele atirava para dentro da boca as bolachas inteiras ou aos pedaços, deixando cair bocados à sua volta (mal empregados!), e fazendo grunhidos, tipo MNHAM!MNHAM!GRRNHAAUM!, aguava-se-me a boca. Não foi por acaso que a primeira coisa que aprendi a cozinhar foram os biscoitos. Com chá Earl Grey a acompanhar. Hmmm. Pronto, agora tenho de ir lanchar. Já fui. Mas deixo-vos um dos meus heróis de infância. E digam-me lá se as bolachinhas dele não eram tão apetitosas...?


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Luas

Existir é como ser uma lua. A valsa que nos faz rodopiar pode tornar-nos leves, leves, ou atordoar-nos; pode iluminar o nosso caminho, ou lançar-nos para a escuridão; pode ensinar-nos novos passos, maltratar-nos, ou fazer-nos sentir a embriaguez de um carrossel desgovernado. À nossa volta dançam outros pares, que enfeitam o salão com vestidos de cor diversa, sorrisos sinceros, sorrisos falsos. E é nesse palco que teremos de encontrar o nosso par, aquele que dá um sentido à nossa dança. A mão certa, os passos, o ritmo, o corpo, os olhos. Lá fora, a lua é cúmplice dessa dança que se eterniza, que começa no canto, em quarto crescente, até nos iluminar por dentro, como se houvéssemos engolido a lua cheia e soubéssemos, por fim, para onde vamos. O brilho da prata não é duradouro, e assim nos vemos atirados para o óxido da noite, que nos retira o equilíbrio e quase nos deixa cair. É urgente, então, ficarmos descalços, repousarmos os membros junto dos que nos amparam a queda, respirar fundo e esperar que a luz retorne aos nossos pés.

domingo, 8 de novembro de 2009

Novo livro de Paul Auster + AUTORIA

Hoje terminei de ler "Leviathan", de Paul Auster. Estou viciada neste autor, que não pára de me surpreender. Saíu o seu décimo quinto romance (haja tinta no tinteiro, safa!). Vou já incluí-lo na minha carta para o Pai Natal...



SINOPSE OFICIAL
"Sinuosamente construído em quatro partes entrecruzadas, o décimo quinto romance de Paul Auster começa em Nova Iorque, na Primavera de 1967, quando o jovem aspirante a poeta Adam Walker conhece Rudolf e Margot, um enigmático casal francês. O perverso triângulo amoroso que rapidamente se forma, conduz a um chocante e inesperado acto de violência cujas consequências serão irreversíveis.

Três narradores contam uma história que se desloca no tempo, de 1967 a 2007, e no espaço, à medida que viaja entre Nova Iorque, Paris e uma ilha remota nas Caraíbas.
"Invisível" está imbuído de fúria, de sexualidade desenfreada e de uma busca implacável por justiça. É uma viagem através das fronteiras sombrias entre verdade e memória, criação e identidade. Uma obra inesquecível pela mão de um dos nomes cimeiros da literatura dos nossos dias."
NOTA MINHA: Já agora, aproveito para deixar aqui a minha perplexidade quanto à anarquia que abunda no que respeita à Autoria:
1 - Quando se utiliza uma  citação, TEM DE CONSTAR o nome do seu criador;
2 - Quando se utiliza uma imagem artística, TEM DE CONSTAR o nome do seu criador;
3 - Quando se utiliza uma qualquer imagem desconhecida que surripiámos do Google ou de outro banco de imagens, TEM DE CONSTAR, pelo menos, o link de onde foi retirada;
4 - Quando se faz um "copy-paste" de um texto, como esta sinopse que usei hoje, tem de ficar entre aspas e/ou em itálico.
Quanto mais navego na internet, mais me espanto com essa anarquia que reina no universo cibernético. É caso para recear: daqui a uns anos, como iremos saber quem escreveu o quê, quem disse isto, ou quem fotografou aquilo, por exemplo?
É URGENTE RESPEITAR A AUTORIA, ANTES QUE A VERDADE SE PERCA PARA SEMPRE. Uma mentira, repetida muitas vezes, acaba por se tornar verdade...

sábado, 7 de novembro de 2009

Dilemas de um carrasco


Não se podia dizer que o futuro morto fosse figura popular na aldeia, pois até se preparava já um festim para comemorar o feliz acontecimento. Sentia-se um clima de alívio no ar – as senhoras bamboleavam-se mais à vontade pelas ruas, os cavalheiros passeavam agora de peito inchado e cabeça erguida, as crianças arriscavam trazer os seus brinquedos favoritos para a calçada e até os cães pareciam zombar dele, passando defronte à pequena janela de grades, a ladrar e a abanar as caudas, como quem diz, Anda vá, tenta dar-me agora um pontapé a ver se consegues!
O carrasco é que não estava feliz com o trabalho. Encontrava-se num terrível dilema, desde que fora chamado para a tarefa – é que o malandrim em questão estava enamorado da sua filha – e essa era talvez a única coisa pura que conseguira construir no seu coração de pedra. Desgraçadamente, também esta se deixara seduzir por aqueles doces olhos de gazela, e pelas palavras de poeta que haviam arrancado moedas de prata às damas mais abastadas e carentes de afectos. Até que num dia como outro qualquer, fora apanhado e condenado por mil pequenos crimes que tantos haviam ofendido. E agora não havia como fugir à fatalidade. Fernando Casco, um dos mais conceituados carrascos do país, tinha que dar uma ajuda técnica e moral na hora do enforcamento do hipotético genro. Enquanto pendurava, com a ajuda de um colega, as braçadas da densa corda que iria apertar o gargalo do homem, desabafava com os seus botões, Dava dez mil réis para poder estar, a esta hora, sentado à sombra do meu alpendre, em Coimbra, a beber uma caneca de sidra!
Mas ninguém lhe adivinhava os pensamentos. Dele nada mais se esperava do que um coração engelhado por todas as vezes que o sino tocara pelos condenados. Fernando Casco não passava de um instrumento de morte. Na sua cegueira, o povo não se via como o verdadeiro carrasco: homens, mulheres, crianças e velhos que, indignados com o engano de uns olhos negros e mil palavras de açúcar, torciam as mãos impacientes, à espera que se fizesse justiça.
Fernando Casco nem sequer odiava o homem. E esse ódio daria imenso jeito, para mitigar a sua culpa. Mas não. Suspirava por terminar a tarefa e voltar para a sua casita, encontrar o ombro maciço da mulher e pousar nele o rosto estrangulado de tristeza:
– Pronto, Nandinho, foi só mais um dia de trabalho. Deixa-te estar aí sossegado, que eu preparo-te um grogue bem forte e umas fatias de broa, para te regalares, anda!
No quarto, a filha iria chorar, revoltada, enquanto a mãe a tentaria consolar:
– Tens de compreender, filha, que é o trabalho do pai… se ele se recusasse, como iríamos nós pagar as contas? A vida está tão cara…

imagem: http://alertaamarelo.blogs.sapo.pt/arquivo/670161.html

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

"A" maiúsculo


Um Amigo com “A” maiúsculo é aquele que, mesmo com a vida feita num 8, encontra forças para entortar um pouco mais os seus dias, de forma a ajudar-nos. É por isso que, mesmo quando a nossa própria vida anda amarrotada, podemos respirar fundo e sentir a ventura de ter amigos assim, que nos engomam os dias, tirando os vincos aos nossos problemas e deixando-nos a existência mais macia. São aqueles que falam pouco sobre o significado da amizade, de tão ocupados que andam a dar-lhe sentido e a escrevê-la com todas as letras. Obrigada, Rita. Por tudo.
foto: Nanã Sousa Dias

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Papelarias

Amo os lápis, as aparas
Rolinhos cinzentos de borracha velha
Folha branca, lilás, vermelha,
Rolos de cartão, clipes e réguas

Nas gavetas do armário
Agasalho cartões de Natal
De uns anos para os outros, são demasiados
Cartões de visita em papel vegetal
Transparências, envelopes, artigos usados

Acarinho pincéis, colas, aguarelas
Elásticos, fita adesiva e agrafadores
Na escrivaninha, junto à janela
Agrafo alegrias, amigos, amores

Pesponto e arquivo os dias de Outono
Colo etiquetas, folhas secas, odores
Encho de flores as notas de infância
Rabiscos ariscos de uma criança
Num tempo arrumado em separadores

Em tampos de vidro, madeira e ardósia
Escondo os laços, sebentas e velcro
Delírios amachucados, amarelecidos
Tinteiros, cartuchos, canetas de feltro

Nos bolsos a alma das papelarias
Cinzas e negros, azuis, prateados
Em cadernos dourados escrevo os dias
Embrulho presentes, futuros, passados.

(VERA DE VILHENA)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Trapézio de cristal

Seguro entre os dedos
O vidro macio e cortante
Delicado, inconstante,
Como os íntimos medos
Balanço-me num refúgio glacial
Um brinquedo nas minhas mãos de menina
O movimento é natural
Como da parra nascer a uva e a vindima
Vejo os outros, do alto,
Alcanço o horizonte
Mas tudo é engano, tudo é falso
Tudo seca na minha fonte
Tudo é frágil
Se de meu trapézio de cristal
Irei cair, um dia, volátil
E rasgar a alma em fragmentos
De arrependimento.
(VERA DE VILHENA)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O sentido do frio

Quando nos preparávamos para receber o S. Martinho com a familiaridade de quem não saiu do verão, eis que o Outono nos envolve no seu manto frio. Sinto sempre algo de primitivo no gesto de agasalhar o corpo, talvez por concluir que toda a inteligência humana, com a sua evolução industrial e tecnológica, se mostra inútil face ao clima exterior: aí, nas ruas, num descampado, numa estrada de terra batida, somos apenas homens, longe da nossa caverna aquecida; despojados das nossas invenções; enquanto, arrepiados, nos aconchegamos aos trapos que trazemos vestidos. E isso, o saber que por vezes ainda somos apenas homens, dá-me um certo conforto, como se escutasse uma voz apaziguadora dentro de mim, que diz: "Vês? Apesar de tudo, a vida ainda faz sentido..."

domingo, 1 de novembro de 2009

A festa



Às cinco e meia da tarde, os músicos ensaiavam instalar-se no palco minúsculo. O salão bocejava, vazio, à espera dos convidados. A Teresa lançava ordens à esquerda e à direita, "tira um lugar à mesa oito!", "põe mais um lugar na mesa três!", exalando aquela presença de quem está ali para o que der e vier, qual general norteando o seu regimento. O Nuno corria sérios riscos de tocar contrabaixo à beira do pequeno jardim barroco, recuando à medida que se instalavam cabos, estantes, amplificadores, tripés e microfones.
Lentamente, familiares e amigos foram despertando as paredes da sala. Revi alguns rostos, cumprimentei outros tantos que não reconheci, confesso. O trio inundou o salão com compassos de jazz, enfeitando as conversas que se atropelavam e interrompiam, no calor do reencontro.
Os convidados arrumaram-se nas mesas, recebendo as iguarias que o aniversariante havia preparado para eles, em celebração de seis respeitáveis décadas neste mundo. À medida que o vinho corria, ia engordando o burburinho. O dia era de festa, porque não rir, recordar velhas aventuras ou partilhar vidas que andavam tão afastadas umas das outras? Por fim, de corpo satisfeito de requintes, a música chegou outra vez. Com graça e elegância, o Rodrigo agradeceu e anunciou a cereja sobre o bolo, terminando com uma frase provocatória e bem-humorada:
- Chega de artistas na família…! – Como quem diz, por favor, sejam mais normais e tenham juízo.
E nós, os artistas sem juízo, com corações feitos de melodias, ritmos e versos, oferecemos as nossas vozes versadas e debutantes, cruzando gerações e dando o melhor de nós aos que nos escutaram com espanto. Se foi perfeito? Não, claro que não - não fosse este um encontro feito de improviso, impulso, insegurança e da timidez de quem dá os primeiros passos ou tem a responsabilidade comovente de passar um estandarte. Mas a ternura e a alegria venceram, piscando-nos um olho cúmplice. O jazz e a bossa-nova deram lugar à distorção das guitarras e ao rock, dominado pela presença surpreendente do Vasco e da sua banda, que terminou a actuação com o Chico Fininho. O Henrique deslizou para o computador e assegurou a noitada com um lençol de música irresistível, que pôs muitos a gastar a sua reserva de energias.
No dia seguinte, acordei a uma hora tardia e vergonhosa, com o cansaço ainda colado ao corpo. Porém, ao relembrar pedaços da noite, que ainda respiravam com compassos de jazz, abraços e acordes rasgados da “Catarina”, não pude deixar de sorrir. Há cansaço que nos cansa e cansaço que descansa. Este, feito de tantas iguarias, música e movimento, fez-me dançar por dentro, enquanto passava o rosto por água fria e cantava: “Heaven, I’m in heaven / And my heart beats so that I can hardly speak...”. Parabéns, Rodrigo, pelos 60 anos e obrigada por uma festa tão generosa. Foi bom. Um beijinho muito especial ao Gugas, à Inês, ao Vasquinho e à Maria. E à Inês peço que me perdoe, pois surripiei-lhe estas belas fotos a partir do facebook! Agora olha, ficaram no espólio da família, Hehehe...!