sábado, 30 de novembro de 2019

O Escritor

Pergunto para me responder. 
Ser Escritor. Envolverá uma escrita feita a ritmo constante? E se alguém estiver um, dois, três anos sem compor um parágrafo de literatura... perde o título? Não é um escritor, por ser capaz de viver sem escrever, apesar de um talento inato ou trabalhado? Será necessária essa constância de produtividade, a mente organizada de forma racional, sentar-se à secretária ou seja onde for, para escrever como quem vê nisso um ofício, com disciplina e horário? Será esta arte desobediente a regras, indiscutivelmente ligada à Musa, para que surja verdadeira Literatura? Será possível escrever um poema de cabeça fria, trabalhá-lo como carpinteiro limando arestas e polindo superfícies? Obterá assim o escritor uns versos, ao invés de Poesia? Para um escritor será premissa conseguir pagar as contas através dos seus livros? E se tiver escrito e publicado um título apenas, ainda que reconhecido como obra-prima, poderá considerar-se um imenso escritor? E se alguém, nunca tendo publicado – por jamais o tentar, ou jamais conseguir –, guardar vários manuscritos em absoluta sombra, resmas de folhas preenchidas, um bom punhado de originais escondido do mundo… será como a árvore a cair na floresta, cuja queda ninguém escuta? E se a produção de escrita for imensa e a pessoa publicar e vender sem dificuldade, embora o produto desse trabalho frenético seja de valor literário nulo ou quase nulo, será um Escritor, ou um produtor de textos? E quem escrever apenas guiões e argumentos para novelas, séries e/ou cinema, será um escritor menor? 
Corre muito por aí, no meio literário, que sê-lo é uma condição, não uma profissão. Nesse caso, onde poderemos nós arrumar escritores como Balzac, Agatha Christie ou Nicholas Sparks? Que escreviam/escrevem deliberadamente para vender? Por vezes soa-me a: «Só poderás ser escritor com uma condição: tem de ser para ti salvação, terapia, uma inevitabilidade, o oxigénio que respiras.» E se respirarmos sem escrever? O oxigénio está nas árvores, nos oceanos, na Dor, na Arte dos outros, no céu, no silêncio, nas várias formas de amor, na vida... E a escrita pode ser uma sofrível fotossíntese de tudo isso. Da minha parte, vou tentando não me levar, nem ao que escrevo, demasiado a sério. Embora por vezes me seja salvação. Nunca na condição de me ser condição. Mas um chocolate quente junto à janela, quando está frio, também me salva.
(Imagem: "The romanticizing of a writer" (clique no link para ler artigo)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Mãos de aluguer

Pregnant Woman, 1919, Otto Dix

Linha a linha, os dedos iam apagando e desbastando, para tornar mais leve a sentença, mais sensível a frase. No chão da página, uma saca de palavras inúteis, o peso do excesso que, antes do corte das sílabas, asfixiava o texto do seu cliente. Pagavam-lhe para que ajudasse a oferecê-lo ao mundo, o deixasse mais belo, sem rugas nem sombras, sem erro nem contradição, sem absurdo nem ressonância. Uma espécie de photoshop nas orações, de maquilhagem vocabular. De lápis na mão, não delapidava, antes cumpria o olhar do jardineiro, a perspectiva do som macio, para que dos ramos florissem aveludadas folhas. Às mãos do seu criador, o texto voltava mais hábil e veloz, pousando melhor na pele maternal.
Por vezes sentia o impulso de reescrever parágrafos inteiros, mãe de leite a amamentar o filho de outra. Ao apoderar-se da carne de outrem, enxertando-a com transfusões a partir das suas veias, transformava-se numa vampira invertida, vertendo o seu próprio sangue, a ferir e a transferir o gene da sua escrita. Contra si e contrassenso, dando mais, de mais se apossava. Eram mãos de aluguer a entregar, ao fim da gestação, um filho seu que não era seu.