quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Mãos de aluguer

Pregnant Woman, 1919, Otto Dix

Linha a linha, os dedos iam apagando e desbastando, para tornar mais leve a sentença, mais sensível a frase. No chão da página, uma saca de palavras inúteis, o peso do excesso que, antes do corte das sílabas, asfixiava o texto do seu cliente. Pagavam-lhe para que ajudasse a oferecê-lo ao mundo, o deixasse mais belo, sem rugas nem sombras, sem erro nem contradição, sem absurdo nem ressonância. Uma espécie de photoshop nas orações, de maquilhagem vocabular. De lápis na mão, não delapidava, antes cumpria o olhar do jardineiro, a perspectiva do som macio, para que dos ramos florissem aveludadas folhas. Às mãos do seu criador, o texto voltava mais hábil e veloz, pousando melhor na pele maternal.
Por vezes sentia o impulso de reescrever parágrafos inteiros, mãe de leite a amamentar o filho de outra. Ao apoderar-se da carne de outrem, enxertando-a com transfusões a partir das suas veias, transformava-se numa vampira invertida, vertendo o seu próprio sangue, a ferir e a transferir o gene da sua escrita. Contra si e contrassenso, dando mais, de mais se apossava. Eram mãos de aluguer a entregar, ao fim da gestação, um filho seu que não era seu.

Sem comentários:

Enviar um comentário