quarta-feira, 25 de junho de 2014

Morreu Ana Maria Matute

Para um bom adeus, aqui fica o texto escrito por CRISTINA CARVALHO no âmbito da 

apresentação de Ana Maria Matute e do livro “A Torre de Vigia”, edição Planeta 

Manuscrito, no Instituto Cervantes em  Lisboa, no dia 13 de Outubro de 2011


«A literatura é algo que, usando palavras, não se pode definir nem soletrar. É uma expressão artística ambiciosa, que usa sangue e corpo, que tem de ser livre – como todas as expressões de arte ou como a própria vida – 
Deverá ser simples e compreensível como uma correnteza de água, como um estremecer de folhas de árvore.
Quanto a mim, o papel da literatura não é explicar o mundo. A literatura é o próprio mundo. Porque são sentimentos, ideais, histórias experimentadas, visitas, efabulações, desenhos de memórias, conquistas, alegria e desespero. As palavras escritas devem formar um todo compreensível, - um romance, um conto, um poema. As palavras que servem as ideias, têm de ser dádiva. As palavras não podem viver subterraneamente de modo incompreensível ou navegar ao sabor da moda; as letras não devem agrupar-se em palavras que não tenham significado. Isso não é bom. Não é essa a interrogação que a literatura precisa. Não é isso que perdura. Não é isso que prende. E está à vista de todos.
O pensamento existe. A estética da linguagem, também existe. O ideal também existe. As histórias existem. Os livros existem. A pessoa existe e a pessoa é a interrogação. É a pessoa que escreve histórias que deseja que a outra pessoa as leia, mas sobretudo, que as compreenda.
Ana Maria Matute é totalmente clara. Ela não escreve sobre o eterno Eu e o Tu e o Tu e o Eu mas abraça sim, toda a humanidade. Por exemplo, em Paraíso Inabitado, Matute revela a inteira psicologia da vida desde os primeiros anos da protagonista, Adriana, que são os nossos primeiros anos rumo a um salto assombroso nesse perigoso e absurdo abismo que é a adolescência, túnel sombrio de dúvidas e indecisões que só o próprio adolescente consegue resolver. 
Atravessando a vida com tantos livros escritos, tantos prémios que a consagraram universalmente, há um que destaco porque me toca particularmente, porque o sentido mais humano da literatura ainda que fantástico e submetido, aparentemente, ao reino do surreal e do maravilhoso que muito aprecio e elevo, é também, pelo que sei, o livro que a escritora mais gostou de escrever: Olvidado rei Gudú. Como ela própria afirma - , el libro que siempre quiso escribir y por el que le gustaría ser recordada! "Es un libro mágico, como la vida misma". 

Toda a magia e mistério da vida é extraordinariamente bem escrito e descrito em Olvidado Rei Gudú, seus mistérios e superstições onde todas as emoções humanas são reveladas num registo de assombrosa fantasia e de poderoso conhecimento da imaginativa mente humana.
Com uma vastíssima obra que passa por muitos romances entre os quais destaco as traduções em língua portuguesa: Olvidado Rei Gudú, Aranmanoth, outro romance no género fantástico apresentado com uma escrita tão doce e envolvente, conta-nos a infância e o crescimento de duas crianças enamoradas. 
Ainda em Paraiso Inabitado e de novo pela voz de uma criança se percorre a vida e os complexos estágios do crescimento numa escrita aparentemente leve e simplificada que nos conduz às mais elaboradas reflexões.
E o livro que hoje apresentamos, A Torre de Vigia.
Ao entrar na leitura deste livro imergimos imediatamente num cenário onírico, denso e misterioso onde sobressai a Natureza por vezes assustadora, outras vezes duma beleza escaldante. Todo este ambiente enevoado e surreal de homens-lobis, ventanias, campos de neve de fome e de frio mais as doçuras do estio, de ameias de castelos, baronesas e barões, veados, javalis, gansos, lobos, cavalos brancos e cavalos pretos, jovens iniciados cavaleiros, peles de ursos, flechas, salões, cozinhas e alcovas, todo este universo existe, atavicamente, em todos nós. Está nos mais altos e escondidos sótãos da nossa memória. Este universo foi, neste livro, posto a descoberto. É uma vida inteira a descobrir universos, a desvendar sonhos, uns atrás dos outros.
E com a ironia sempre presente, vivemos mais uma vez uma certa infância ou como uma criança pode e consegue sublimar atos ou situações terríveis através da construção dos sonhos.
Nesta história somos transportados, como num quadro musical em ambiente medieval, somos transportados em nuvens de cheiros, cores e sabores, interrogações, desespero e espanto.
Este livro, o primeiro duma trilogia medieval, fala-nos de um filho de boas famílias, a sua travessia da infância e entrada na adolescência com grande desassossego. A castelã, a baronesa de Mohl, linda, ruiva e branca que o inicia no amor carnal aos treze anos. Também essa atitude, brutal e estranha, fá-lo perceber os mais rudimentares indícios da constituição psicológica do ser humano. Tudo o que de mais escondido está, para além da fronteira do conhecimento, rente às superstições mais subterrâneas que todos nós temos e que desejamos esconder. Conseguimos perceber este jovem a pensar e a transformar-se todos os dias, o que causa alguma angústia.
As personagens avassaladoras quer animais quer humanas são fascinantes. Krim-Cavalo é um ser inesquecível, lendário e protetor do jovem iniciado. Eu penso mesmo que Krim-Cavalo podia ser o jovem, ele mesmo. Este jovem sem nome. Este fantasma. O barão e a baronesa de Mohl, outras personagens tão excessivas quanto misteriosas. O próprio pai, um poderoso desgraçado que, sem amor para dar, é como se personificasse a eterna noite dos homens.
“A Torre de Vigia” é pois, uma história de desejos, de descoberta, a eterna luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas e ao ler este romance pensei sempre no homem à face da Terra, vi-o a tentar avançar não sei para onde, nem porquê, nem para que destino ou fatalidade.
É esta a arte de Ana Maria Matute: a literatura, esse milagre.
Escreveu também contos e muitas histórias para a infância e juventude.
Os prémios e reconhecimentos literários são inúmeros. 
Em 2010 recebeu o Prémio Cervantes, o mais alto galardão espanhol atribuído à literatura.
A arte literária é mais uma insignificância do cosmos. Quantos e quantos quilómetros de linhas já foram escritas? Quanto pensamento glorioso já oferecemos aos nossos deuses? Quantos restam? Quantos encantos e desencantos vamos sofrendo? O que é que aprendemos? O que é que valemos? Que interesse tem tudo? Tanta interrogação…
Sei, sinto que Ana Maria Matute tem absoluta consciência das penas que uma pessoa suporta ao longo desta permanência por aqui. Os seus livros são documentos de extraordinária importância que desenham a vida e as experiências do quotidiano de alguém que conviveu com a guerra civil de Espanha e a segunda grande guerra mundial e o pós-guerra. A sua literatura é um grito de libertação através do poder imagético de cada um. A fantasia está expressa em muitos dos seus livros atingindo o pico em Olvidado Rei Gudú e Aranmanoth e ainda, muito embora estes livros sejam um hino à poderosa fantasia humana, é também a constatação da triste realidade da condição humana. 
Ana Maria Matute enche-me de orgulho como mulher, como escritora, como exemplo de conhecimento, de experiência, de sabedoria, de humanidade e celebro-a em todas as suas vertentes e capacidades. Exalto-a e elevo-a. Desejo-lhe, com toda a admiração e a par desta complexa e temporária passagem pelo planeta Terra, muita saúde e as maiores felicidades em tudo, na sua condição humana e na sua literatura.»

domingo, 22 de junho de 2014

Água

Duas da tarde. Na cama. Não de cama. Apenas enroscada no ócio que o Domingo traz, lendo as últimas páginas do Memorial. Vejo a luz esmorecer, o relógio comendo as horas, rumo ao fim da tarde. O ar tornou-se espesso, a página amarela, de papel antigo. A chuva abateu-se, aliviando o chumbo do céu, para devolver a luminosidade e a brancura à folha. Entreabri a janela a fim de sentir o cheiro da terra. A tijoleira escurecida, a folhagem pingando, gota a gota, sobre os pés de plantas e flores enterrados em grãos cor de café. Torno a fechar a janela e regresso ao meu livro. Os cães dormitam no soalho, em volta da minha cama. Um privilégio raro que hoje lhes concedo, só porque sim. O sol ficou encerrado num quarto escuro feito de nuvens de antracite, que lhe sufocam o calor, e é um hálito das sombras que eu respiro. O musgo avança, seduzindo a pedra. E assim permanecendo a chuva, perfurando os dias, o ar seria manto tecido com asas de fada, um filtro de verdores subtis. Até que eu já não fosse mulher, fosse cavalo-marinho no interior de uma casa aquátil, gruta guardada por dois peixes-sentinela, e eu lendo, ainda, as nervuras de algas e corais.
É a chuva. A chuva que me leva em pensamentos de água. 

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sonho


Hoje é o dia em que perdemos Saramago. Completam-se quatro anos sobre o dia em que eu, pouco depois de saber da morte do nosso querido autor, fui dar uma sessão de Escrita Criativa, na biblioteca da Ericeira, aos meus alunos adultos, escritores amadores. Pus de parte o que tinha preparado e dedicámos-lhe um bom tempo da sessão. É para mim fácil de lembrar: 2009, e o dia dos anos da minha querida irmã Sofia.
Hoje:
Nada fiz de jeito, exceptuando ter lavado a loiça, alimentado os cães e recebido de braços abertos uma notícia extraordinária.
Um sonho que estava muito distante e que, num gesto, ficou mais próximo. Passou de sonho a projecto. E alguém acertado irá realizá-lo. A vida pode trazer-nos surpresas extraordinárias, que se erguem do quase nada, do vento, da espera. De repente, uma brisa, uma ventania trocam o lugar às coisas, o que estava distante fica mais perto e tudo parece possível. Provavelmente é mais um sonho. Mas enquanto nele estou afundada sou sílfide, leve, leve, pousando no néctar das mais doces ilusões. E não quero acordar. Não quero.

Roubei a imagem aqui

terça-feira, 17 de junho de 2014

Terra

A feira do livro terminou, as notícias falam em cerca de quinhentos mil visitantes. Passou o calor terrível, o dia esteve perfeito. Ao fim da tarde o homem andava de enxada (ou ancinho ou lá o que é) a arrancar as ervas indesejáveis; o Gastão deixou-se ficar deitado no cimo das escadas de pedra, admirando e estudando o movimento detectável nos seus domínios: o vale. Arfando, um pouco aliviado por andar descartando, desde Março, a sua pelagem de serra da estrela: ainda assim, é um animal imponente, de juba e corpanzil consideráveis. A Bolota jogou à bola (nova, comprada na Inter Sport no dia da sessão de autógrafos no Oeiras-parque): uma bola novinha em folha, que a deixa tão excitada, que nem se lembra de comer: recorda-me o esquilo da Idade do Gelo, com a sua bolota (nem de propósito, tratando-se da Bolota, a nossa cadela). Quando sentiu o cheiro verde e fresco, juntou-se a mim: a dona ali estava, sentada com duas cadeiras e duas tigelas, descascando vagens de ervilhas acabadinhas de apanhar da terra. Volta e meia, lá saltava uma para a sua bocarra. Tenho uma cadela que se pela por ervilhas cruas, vá-se lá perceber. Não pude deixar de experimentar uma, para compreendê-la. E compreendi. Assim mesmo, da mão para a boca, soube muitíssimo bem. Amanhã será a vez dos pinhões, também acabados de apanhar.
É nestas horas que eu tenho a certeza de valer a pena o contacto com a terra. É certo que lá em cima, no escritório, alguns emails me aguardam, há novas notificações no facebook e à noite irei ver, na box, os primeiros episódios de uma série que recebi em DVD. Mas é assim, este casamento perfeito entre a terra e o futuro, que nos faz felizes. O melhor dos dois mundos.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Desejo

Sabe que a escrita é como o ritmo a que respira o desejo do seu corpo: quanto mais, mais; quanto menos...menos. Esse corpo que, esculpido em abandono, há muito desistiu do desejo, para não chorar. A carne inteira, a pele, deixando de pertencer-lhe, o músculo flácido, atrofiado, é incapaz de sustentar a ideia do prazer. A ideia. Ela risca o corpo, arrisca o texto, grita o sexo. O corpo perdeu o caminho até à história que é forçoso percorrer, palavra a palavra.
A letra agora mais incerta, ilegível, à medida que a ideia vai tomando forma, se definindo. Quanto mais enlouquece a sua caligrafia, mais lúcido é o pensamento. Uma o avesso do outro.
Recorda que Fernando Pessoa nasceu hoje, em 1888. Hoje, dia de estranhas conjugações. Lua cheia, sexta-feira treze...e Pessoa renascendo para nos dar consolo e sentido.
O corpo vai despertando e o traço da letra estende-se com langor.
São unos, enfim. O corpo e o desejo.
Só assim, na embriaguez do desejo, é capaz de escrever.
De contrário, as palavras nada diriam.
E há tanto para dizer...

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Supertramp

Ah, o poder que a música tem de anular distâncias e tempo...! Fazer-nos sentir jovens outra vez... Esta era uma das músicas que eu escutava a partir dos discos de vinil dos meus irmãos mais velhos: e por várias vezes serviu de fiel depositária das minhas lágrimas de adolescente apaixonada...e de símbolo de uma intimidade tão desejada: a solidão do nosso quarto, para tentar compreender a complexidade do mundo. Tão bom, isto. Continua a ser bom.

Nós

Escrever, aproveitar enquanto sou sincera, enquanto existe em mim transparência. É preciso pôr de parte o peso que nos obrigam a carregar, sermos apenas nós, na verdade daquilo que insistimos em ser; sejam, apenas e unicamente, vocês, quem quer que sejam! Deixar os dedos correr sobre a sinceridade que chega com uma pequena ajuda encontrada no fundo de um copo redondo, com gelo picado, lima e alecrim. Somos o que somos. Temos algo a dizer, assim seja. É hora de puxar a manga ao mundo que nos olha, transformar este sol em optimismo, ser luz e esperança num caminho melhor. Não liguem, digo eu; ou liguem, sei lá, se calhar é melhor ligarem, esquecerem tudo aquilo que vos chega, os mihões, a dívida, o crescimento económico, a prestação do nosso  super-heroi Cristiano Ronaldo e...sermos apenas nós. Nós com aquilo que temos de mais verdadeiro. Haja verdade nestes dias difíceis. Também nós podemos ser super-heróis. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Dedos


André Breton, Surrealismo - Manifesto (1924)
Falam da escrita automática, escrever sem pensar no que a mente quer, deixar os dedos correr até à descoberta daquilo que verdadeiramente querem dizer. A mentira, a força de nada terem para dizer e terem de dizer forçosamente alguma coisa que importe a quem lê. É preciso escrever, mostrar que se tem algo dentro, ser a diferença, ser escritor. A banalização de algo que antes era singular; era preciso a história, a escrita exemplar, a voz, o ser-se único e agora não há quem não escreva; todos publicam em espaços virtuais e nem eu posso insurgir-me contra tal, que de banal tenho tanto que pertenço também a essa massa anónima de gente que acena, Olhem para mim, vejam aquilo que sou capaz de escrever. Nada, não é nada. Não somos fazedores de grandes histórias, não fazemos sequer parte de uma grande História, nem personagens somos. Perdoem-me, perdoem-me se hoje assim me expresso, são horas de estupefacção face aos festejos do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, quando estamos tão carentes do sentido de comunidade. Da comunhão. Da humildade. De razões para o Orgulho que antes era pão, o alimento das primeiras horas, a arrancar o dia. Não liguem, não liguem ao que hoje escrevo, são os dedos, os dedos que escrevem por mim. À traição.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Por estes dias

Os santos populares e outras festas e feiras, a Feira do Livro de Lisboa, livros, livros e livros, autores, autores e autores, sessões de autógrafos e lançamentos, promoção, promoção, promoção, todos tentando conquistar algumas horas, minutos que sejam de atenção aos leitores, ao público, concorrendo com farturas, bifanas, cachorros, gelados, pão com chouriço, outras editoras e outros livros, choques de calendário e de horário, em que acontecem outras sessões de autógrafos e outros lançamentos de outros tantos livros noutros lugares. E é sabido que não podemos estar em dois ao mesmo tempo e que o recheio das carteiras é cada vez mais magro...gente que vai, que come e bebe, que olha apaticamente para os livros, sem os ver, comprando pouco, sem se deter a procurar aqueles livros de fundo de catálogo que estão a cinquenta cêntimos, 1, 2, 3, 4, 5 euros. As filas (ou bichas, como quiserem) generosas e absurdas para os autógrafos e livros da moda, de autores de qualidade e autenticidade duvidosas; menos gente do que seria justo para as dedicatórias de outros Escritores com "E" maiúsculo. Sim, há excepções, benditas excepções. Momentos felizes. Alegres encontros e reencontros. Autores respeitados e acarinhados. Gente entusiasmada, carregando mochilas pesadas, mostrando as suas compras no facebook. Mas a impressão que me fica é a de um tremendo e triste desperdício. Não é. NÃO É desperdício. Não deveria ser. Vale sempre a pena.
Apesar de tudo.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Insónia

Às 4h10m a Bolota arranha a porta do quarto. Abri-lhe a porta da rua, aguardei uns minutos, deixei-a entrar. Fiz ar de zangada, ignorando o seu contentamento de quem está pronto para o mimo e a brincadeira, como quem diz, Não, Bolota, não são horas para isso, são horas de estarmos a dormir...
- Fica, quieta! Ai, feia!
Voltei para o quarto, fechei a porta.
Os minutos passaram. São quase cinco. Nem eu nem ela tornámos a conseguir adormecer. Os machos da casa dormem, as fémeas nem por isso. Ela parece adivinhar a minha insónia e enquanto eu deixo o cérebro divagar por cenários tão absurdos como a escrita do segundo volume d'A Ilha de Melquisedech ou o filme "Stranger than Fiction" - um dos meus favoritos, que revi anteontem pela enésima vez - volta à carga, arranhando a porta do quarto. Desisto. Por isso são 5.57 e aqui estou, de pequeno-almoço tomado e a chávena de café do lado direito. O Gastão, que como serra da estrela que é dorme quase sempre lá fora, deve ter dado pelo cheiro das torradas. Começou a uivar. Juntou-se a nós. Aqui estamos os três, no escritório. Só o dono da casa dorme.
E agora é tentar fazer algo de construtivo com esta madrugada: escrever.
5.59.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O último do primeiro

Em 2006 estreei-me como autora na revista Egoísta, com um pequeno conto. No mesmo ano publiquei esta novela, numa tiragem de 250 exemplares. Nesse tempo não usávamos facebook, nem vivíamos ainda na vertigem da promoção desenfreada; por isso, depois do lançamento, onde vendi uma boa quantidade de "Pisas" a familiares e amigos, guardei os restantes numa gaveta e não pensei muito mais nisso. Como disse na altura uma grande amiga, serviu para "brincar aos escritores". Fui oferecendo, em aniversários e outras ocasiões que pediam algo de especial, e vendendo um ou outro livro quando calhava. A gaveta foi ficando mais vazia, mas sempre sem ansiedades.
Em 2008, 2009 veio o uso generalizado do facebook e, de um dia para o outro, a forma de divulgamos o que temos para vender sofreu uma transformação radical. No ano passado criei o site Gavetas e Gavetinhas, pois a escrita de ficção e o trabalho como letrista, revisora de texto e coordenadora de oficinas de escrita criativa já o justificava. Quando olhei, restava-me apenas meia dúzia de exemplares d'O Pisa-papéis, que nem tinha chegado a mostrar-se nas livrarias, à excepção de uma tímida presença na Bulhosa do Oeiras-parque, que me pagou 60% do preço de capa, negócio limpo (10 livros, que demoraram quase 2 anos a sair da prateleira...mas todos arranjaram dono, o que foi espantoso).
Hoje enviei pelo correio o último. O último exemplar do primeiro livro. Disse-lhe adeus, com algum carinho e nostalgia, pois aquele era um velho companheiro: duvido que vá fazer novas edições, há outros livros para escrever e para publicar. Acho que este último "Pisa-papéis" ficou bem entregue.
Deixo aqui um beijinho ao Daniel Gouveia, que tratou da revisão e edição, levando-me à gráfica e fazendo a reportagem (perdi as fotografias, senão teria incluído aqui algumas), à Rita Ferro, que tão generosamente escreveu o prefácio para o livrito de uma autora estreante e, claro, para o Nanã, pela fotografia belíssima que roubei para a capa, e a quem dediquei este livro. Bem hajam, sim?
Adeus, Pisa-papéis! Saíste de casa da mãe para ires viver sozinho. Não te censuro, aqui já não aprendias nada.

domingo, 1 de junho de 2014

Dia da Criança

O COELHINHO CHOCOLATE

Era uma vez um coelhinho anão.
 Parecia um gelado de nata e chocolate, pois o seu pelo era todo malhado, castanho e branco.
        Vivia num pequeno jardim guardado por um grande cão bonacheirão, chamado Castanho. O cão parecia-se um pouco com ele: também era castanho e branco, apesar de ser muito maior.
   O coelhinho passeava-se livremente por ali, uma vez que os seus donos o tratavam como se fosse da família: não lhe faltavam as cenouras; brincava com o Castanho dando-lhe dentadinhas no rabo e fugindo logo de seguida, saltitando em direcção aos arbustos; passava o serão ao colo da D. Ermelinda, que lhe ia fazendo festas, enquanto conversava com o marido, frente à lareira…enfim, era um coelho feliz, que levava uma vida regalada.
     Numa linda manhã de Abril, o Sr. José decidiu pintar a casota do Castanho, cuja madeira velha estava já muito feia. Agarrou no chapéu e foi às compras à aldeia, na sua carrinha branca. Apareceu pouco depois com várias latas de tinta de água, pousou-as na relva junto à casota e abriu-as: uma branca, outra amarela, outra ainda azul mesmo-mesmo da cor do céu e, finalmente, uma vermelha. Quando ia começar a obra, disse para com os seus botões:
"Ora ora, o que me calhava mesmo bem agora, era uma cerveja fresquinha!" – Porque estava imenso calor. Como a D. Ermelinda estava longe, na cozinha, a fazer um bolo para a filha e para os netos, que estavam para chegar, resolveu levantar-se e ir ele mesmo buscá-la.
    Passados instantes, chegou o coelhinho, atraído por aquele cheiro novo  de tinta fresca. Ao ver as cores a brilhar ao sol, achou-as bonitas. Aproximou mais o focinho e os bigodes para espreitar e... Ops, asneira! Entornou duas latas de tinta! O azul e o amarelo espalharam-se por todo o lado e arranjaram uma cor nova:
      Qual era? O verde!
   Ficou muito espantado com o que tinha arranjado e não resistiu a espreitar melhor as outras cores: empoleirando-se com as patas na lata vermelha, pumba! Fez asneira outra vez! Ela tombou e o coelho Chocolate, com o peso, desequilibrou-se e foi cair em cima da lata de tinta branca! Agora é que a tinha arranjado bonita! Estava tudo entornado e, ainda por cima, cada vez que saltava, as suas patas deixavam marcas… …. Cor-de-rosa!
  Nesse momento, curiosos com a confusão que reinava no jardim, chegaram o Castanho e o Sr. José, a correr:
"Chocolate! O que é que me foste arranjar?! Olha bem para isto, sim senhor, lindo serviço!" - ralhou o Sr. José.
O Coelhinho olhou para ele com os olhos maiores e mais doces que sabia fazer, para não apanhar uma palmada. Era preciso ver aquela confusão de cores! O Castanho, todo satisfeito por ver o jardim mais colorido do que nunca, juntou-se ao Coelhinho Chocolate, lambeu-o e ficou com a língua pintada; depois, com a cauda a abanar, espalhou mais tinta por todo o lado. Agora havia roxo, castanho e cor-de-laranja também! Até as flores do jardim ficaram com as suas cores trocadas!
     Pensam que a D. Ermelinda se zangou quando, ao chegar, viu aquela confusão? Estão enganados! Como era uma senhora muito bem disposta, não conseguiu conter o riso e desatou às gargalhadas. E o riso, que se pega como os bocejos e a tosse, contagiou o Sr. José, que acabou por rir também, e nem ficou zangado, pois reparou que o que sobrara nas latas ainda daria para fazer o trabalho.
"Ai, que eles estão quase a chegar!" - Exclamou a D. Ermelinda, pondo-se séria de repente - Vá, toca a tomar banho, seus marotos, antes que essa tinta seque!"
     O que valeu a todos, é que a senhora adiantara trabalho, como era seu hábito, e, assim, dispôs de tempo para aquele imprevisto. Pegou no Chocolate e foi dar-lhe uma boa ensaboadela na banheira, com água morna. Quanto ao Castanho, foi lavado ali mesmo no jardim, com a mangueira, para aprender a ficar quieto! O Sr. José esfregou-o bem esfregado com um champô especial, até ficarem apenas as suas cores: castanho e branco.
    Ao fim da tarde, a D. Ermelinda abriu a mesa no jardim, fez laranjada para as crianças e chá para os adultos, a acompanhar as grandes fatias de pão e de bolo de chocolate.
   Por falar em chocolate, onde ficou o coelhinho? Ah, esse ficou amarrado ao poste, de castigo! E o seu amigo Castanho, que detestava tomar banho, passou o resto do dia muito sossegado e um pouco amuado com o dono, que o lavara com água fria. No entanto, nessa noite, já poderia dormir regalado, na sua linda casota, que estava agora como nova, pintada com as sete cores do arco-íris! Frente à porta podia ler-se:

                        "CUIDADO! PINTADO DE FRESCO!"

(Vera de Vilhena, texto inédito. Dedico esta história a todos os pequerruchos)