Água
Duas da tarde. Na cama. Não de cama. Apenas enroscada no ócio que o Domingo traz, lendo as últimas páginas do Memorial. Vejo a luz esmorecer, o relógio comendo as horas, rumo ao fim da tarde. O ar tornou-se espesso, a página amarela, de papel antigo. A chuva abateu-se, aliviando o chumbo do céu, para devolver a luminosidade e a brancura à folha. Entreabri a janela a fim de sentir o cheiro da terra. A tijoleira escurecida, a folhagem pingando, gota a gota, sobre os pés de plantas e flores enterrados em grãos cor de café. Torno a fechar a janela e regresso ao meu livro. Os cães dormitam no soalho, em volta da minha cama. Um privilégio raro que hoje lhes concedo, só porque sim. O sol ficou encerrado num quarto escuro feito de nuvens de antracite, que lhe sufocam o calor, e é um hálito das sombras que eu respiro. O musgo avança, seduzindo a pedra. E assim permanecendo a chuva, perfurando os dias, o ar seria manto tecido com asas de fada, um filtro de verdores subtis. Até que eu já não fosse mulher, fosse cavalo-marinho no interior de uma casa aquátil, gruta guardada por dois peixes-sentinela, e eu lendo, ainda, as nervuras de algas e corais.
É a chuva. A chuva que me leva em pensamentos de água.
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