quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Penando



Por onde andam as suas resoluções? Desfeitas como sempre, entre os dedos cujas unhas não pára de roer. E diz sempre que irá deixar de roê-las, mas nunca cumpre a promessa. Rói mesmo quando o mundo lhe diz que não tem quaisquer motivos para tal infantilidade. De que te queixas agora? Vá, diz, que terríveis problemas tens tu a resolver? Que grandes espadas pairam sobre a tua cabeça? Só se for por causa das resoluções sem solução. Decisões tão gelatinosas, tão trementes como alforrecas morrendo de susto na areia. São disparates que escreve, julgando que valem alguma coisa, mas não valem um caracol. Olha, nunca tinha usado esta expressão, não valer um caracol.
É a chamada escrita automática, que de automático nada tem, que a mente não se desliga só porque a isso nos dispomos; em especial se passarmos a vida a corrigir os erros de escrita dos outros: que tolerância haveríamos de ter para com os nossos próprios erros? E por isso a mente não se deixa ir, está sempre alerta, de borracha e caneta encarnada em punho, a travar, a retroceder, a refazer, a quebrar o embalo das linhas que a mão vai traçando. Não, esses não perdoamos. E vá-se lá saber por que razão estou a usar a forma plural, se estou absolutamente só nisto de tentar escrever. Os outros escrevem, já se sabe, eu sou a perita em tentar. Apenas. Parece que o único tema que me resta é este, a arte de não escrever. A escrita, um equívoco nas minhas mãos. Fosse eu digna de pena, e poderia dizer que escrevo de uma penada. E assim vou penando, de unhas roídas até ao sabugo. Olha, outra, nunca tinha escrito sabugo.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Luta


© BRUEGEL, A queda dos anjos rebeldes

Hoje dominas a arte de não realizar o que escolheste por missão. De que servirá escrever? Que diferença fará ao mundo? A falta de fé, a consciência de que é apenas um capricho teu, de que estás só em absoluto, é, talvez, o que te impede de escrever. O medo de falhar por inteiro: de descobrir que de nada vale, toda esta entrega a um anjo que há muito se revoltou.
Queres desistir, libertar-te, pedir misericórdia ao anjo rebelde.
Estás só na tua teimosia. Um demónio segura-te as mãos. Só tu sabes que são amarras forjadas num capricho. Que em ti nada solidifica. A luz não existe. Apenas sabes mentir com fraca chama. Em ti mesma acendes a mentira. E o que se revela é de uma imensa tristeza. Estás incapaz de esculpir uma palavra mais.
De nada serve, diz o demónio.
Escreve, apesar de tudo, responde o anjo.
Falta-te a fé em algo que não encontras dentro de ti.
E por isso escreves: para descobrir. Mesmo que, por ora, o demónio sorria, a cantar vitória.
Ao longe erguem-se enormes asas azuis. E tu escreves, apesar de tudo, para que o anjo te dê a mão e te leve a navegar nas tuas correntes.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

No outro lado do espelho

 Sentou-se no café com o seu tablet. Um novo brinquedo muito sério. Concluiu, com satisfação, que, com aquele presente, comprar um computador portátil deixara de ser uma necessidade. Até a pequena máquina digital perdera o sentido: talvez mesmo um descartar extensível aos seus cadernos, aquele íntimo caos composto por papéis infindos, que se iam dispersando, desistentes, em gavetas atulhadas de tarecos, caixas de cartão empoeiradas, bolsos e malas velhas, versos, pequenos textos, ideias, esboços que, em muitos casos, acabavam por nunca cumprir o seu  destino.
Ela sorriu, vendo o seu universo de gestos enriquecido com novos confortos concentrados num só objecto. A tecnologia foi para ela, por instantes, um amigo - feito de plástico, borracha, compostos electrónicos e outros mistérios e saberes que ela jamais dominaria - ainda assim, um parceiro de confidências que desejou abraçar, como quem abraça um amigo.
E escrevendo isto descobriu também que, uma vez domesticado o bicho nas suas manhas, poderia, ali mesmo, no café da aldeia (que até tinha internet), publicar o texto no seu blogue.
Sentiu-se uma Alice no outro Lado do espelho, num mundo absurdo que teria de compreender; tão depressa amigável como rival ou ameaça: para que serviria aquele botão? E se fosse por ali, aonde iria dar? Um mundo estranho a explorar, com os seus dedos juvenis, saltitando sobre o teclado.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Samuel Barber

Este "adagio for strings" é, a par com a sinfonia nr 5, o adagietto, de Mahler, a peça mais triste e bonita que conheço. É estranho como algo tão triste pode ser belo a este ponto. Não se deixem inundar pela tristeza, é apenas o poder que a Música exerce sobre nós.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Besos de sangre

Dedicado a todos os apaixonados, em nome do charme e da sedução (mais pela imagem do que pelo tema que, para o meu gosto, é algo pobre...mas está bem explorado). E que o Dia de S, Valentim (ou o do Stº António, pronto) seja como o Natal: todos os dias. 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Espera

 


Desesperam, os dias feitos de reticências, em que nada se finaliza, se rompe, se confirma. Um silêncio branco, a mistura de todos os sons, todas as cores e possibilidades.e nem uma, nem uma cor que possa chamar sua. A espera - odiosa feiticeira - a deixar-nos como enforcados ao vento, bonifrates ocultos na sombra, oscilando, sem comando; o pêndulo de um relógio encostado à parede, sem saída. Apenas isto, que é nada. Para quando, o movimento? O ruído de asas rasgando o silêncio?

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Sempre

"Fornax" © Beth Moon
As árvores aguardam a morte como deuses anciãos, rendidos ao cansaço. A estação fria lambe o fim da tarde com o seu hálito de chuva miudinha, sob o manto estrelado cor de rato. O tempo escorre, gota a gota, enquanto o vento vai polvilhando a paisagem com os queixumes dos velhos ramos, que se julgam incapazes de abraçar uma nova estação. Mas sempre haverá uma nova estação.

Vera de Vilhena

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Não fujas

Imagem roubada aqui

Não, não fujas de mim,
ainda é cedo, pousa os braços nos meus,
que eu mal começava a sentir o teu calor
e já tu me escapas;
despertando em mim o arrepio
de me ver mergulhada no frio
a que eu já dissera adeus.

Não, não cerres a porta,
não cerres os dentes, nem nada;
para me deixar no avesso da sorte,
os meus dias em carne viva,
O grito de quem suplica, de voz enferrujada.

Provei a taça de um tempo cálido,
molhei a minha boca na tua.
Por favor fica, não fujas de mim,
que eu já não sei ter na língua a amargura,
se um manto de mel me deixou assim, nua.

(© Vera de Vilhena, inédito)