sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Quartzo Azul

Dedico este pequeno conto, que escrevi em Maio, ao Vicente, nascido hoje, porque a tua mãe, Vicente, adora a Sophia e as coisas do fundo do mar. Bem-vindo!

Na Casa de Anil há um prodígio que ninguém pode revelar. E não existem lendas nem livros que desvendem o seu mistério. Os homens e as mulheres, que em sonhos entram naquele lugar tecido em algas e corais, transformam-se em peixes e ondinas. A pele cobre-se de escamas e para sempre se calam as suas vozes, emudecidas por inesperadas guelras.  Enquanto, na praia ali perto, a maré revela seixos, búzios e caranguejos, eles serpenteiam pelos quartos e salas, por entre os móveis esculpidos em cristais de quartzo e lápis-lazúli, cruzando-se com anémonas cintilantes e medusas de corpo transparente. Por tanto tempo ali aprisionados, ondulando languidamente no interior aquático daquela casa, acabam por olvidar a sua natureza humana. É nessa hora que a maré cheia os vem resgatar, num ritual de consagração aos mares. Mil ondas batem às  janelas, desfazendo-se em espuma na soleira da porta. Fatalmente, os peixes são arrastados rumo ao oceano, para habitar as águas do mundo inteiro. As ondinas, levadas em mornas correntes, desaguam nos lagos, construindo, na penumbra das areias azuis, as suas casas de cristal.
O dia vem despertá-los, mas é apenas uma cama vazia que a luz da manhã encontra. Só o tom azulado dos lençóis húmidos conhece o beijo faminto da Casa de Anil, que se vai alimentando com a alma dos poetas e a fantasia dos sonhadores. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Exposição «Euro Art Photo», Milão

Exposição de Fotografia Euro Art Photo, no Palácio Stelline, em Milão.
«Cada um de 28 países da comunidade europeia, será representado por um fotógrafo, com apenas uma fotografia de cada. O ("meu") Nanã Sousa Dias foi escolhido pela Via Arte Italia, para representar Portugal :-) Esta foi a fotografia escolhida pela comissão. O Nanã fez esta fotografia há alguns anos, perto da Barragem de Alqueva, a bordo de um helicóptero, com o seu amigo e compadre Jorge Humberto.» 

(texto adaptado do próprio, facebook)

Parabéns, Nanã! Orgulhosa, eu? Muito! :-)

domingo, 26 de janeiro de 2014

Cicada Princess

Um filme encantador, que nos enternece. São quase 7 minutos, sendo que dois e meio deles constituem a ficha técnica, ou seja, deu, decerto, muito trabalho  e envolveu muita gente, a realização deste filminho que partilho convosco nesta fria manhã de domingo. Uma história de cigarras que dá todo um novo significado à expressão «A vida são dois dias». Escutem o texto com atenção. Cada palavra. E sugiro a visualização em ecrã expandido.
Cicada Princess from Jesse Solomon Clark on Vimeo.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Pirosices

De vez em quando dão-me ataques de pirosice. Fico cheia de vontade de alimentar a alma com imagens multicolores, mensagens filosóficas que, de tão partilhadas pelas redes sociais, há muito se banalizaram continuando, porém, a dizer-nos alguma coisa, na tentativa de salvar a inocência que existe (ainda) em nós, sobrevivente sofrível do ceptismo e do azedume. Olhamos para uma coisa assim e, mesmo que não queiramos admitir, o nosso corpo segrega uma dose mínima de serotonina, por tudo o que sugere.
Ponho um "gosto" em páginas hippies recheadas de quinquilharia indiana, mulheres semi-nuas, arvoredo e floridos geométricos de mil tonalidades e texturas, especiarias, borboletas, velinhas, águas mansas e muita paz interior. Ah, a espiritualidade! Nada mais pirosamente explorado. Nada mais essencial para conseguirmos cuidar do que temos e resistir ao resto. Nada de jeito, hoje. Só isto. Só esta ode à pirosice. Desculpem.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Fazendo pão...

«São onze horas da manhã. Cheira a pão quente, acabado de cozer. As grandes cestas de verga foram dispostas para as provas de queijos e outros acepipes, com pão de cerveja, broas de mel, pão de especiarias, michas perfumadas com anis e manjerona, pãezinhos com cardamomo. Rosalina labutou arduamente nos últimos dias, preparando e acondicionando os ingredientes. Elaborou os fermentos e leveduras, trabalhando nas primeiras horas da madrugada, no amassadouro do pátio; alimentou o forno de lenha com nogueira e castanheiro. Furfuris deixou Grotti a sós no moinho, para ajudar a padeira:
     — A partir de amanhã, até ao dia do Festival, vais lá para baixo —, dissera-lhe o moleiro — a minha mulher precisa mais de ajuda do que eu. Por hoje estás dispensado, vai descansar, para te habituares ao novo horário, anda!
  Constrangido, o duende passara mal as horas de descanso, pensando na mudança inesperada. Já se habituara à vida na colina, junto à montanha. No dia seguinte de madrugada, contrafeito e cabisbaixo, dirigira-se ao pátio situado nas traseiras da casa, e batera à porta timidamente. Rosalina veio abri-la. Quando afastou a pesada porta de madeira, observou o homenzinho cuja estatura não ultrapassava o nível da sua própria barriga: olhos enormes e castanhos, orelhas pontiagudas; as mãos e os pés eram desproporcionados em relação ao resto do corpo; usava um barrete encimado por um grande guizo de ouro, que tilintava à medida que Furfuris caminhava. A pele apresentava um tom amarelado e o nariz era grande e torto. Não era bonito, mas a figura inspirava afecto. Entrou na grande cozinha e retirou o barrete, mostrando os escassos cabelos ruivos na cabeça despida. Olhou em volta: o recinto agradou-lhe, pois o forno quente e o cheiro da massa cozida adoçavam o ar e convidavam à preguiça.
   — Anda, meu querido, não tenhas vergonha! Vou mostrar-te como as coisas funcionam por aqui. Furfuris sorriu, animado. Era simpática, a Rosalina.
      A cidade dormia ainda. Rosalina passou-lhe um pano-cru, a fazer as vezes de avental e uma pega em forma de luva, para a cabeça. O duende descobriu como se fazia levedura fresca e acostumou-se ao cheiro azedo; aprendeu que o fermento era feito a partir do sumo de meia dúzia de maçãs velhas misturado com água e farinha, e que se fazia pão diferente com farinhas iguais, devido às misturas. Compreendeu que tudo se aproveitava naquela cozinha, até as cinzas, as côdeas e o pão duro, num empadão de legumes, uma tarte de cebola, açordas ou fatias douradas.
   Dividiram a massa em pedaços e trabalharam no amassadouro: com mão leve, Rosalina projectava a massa de um lado para o outro da grande escudela. O duende ajudava, adicionando sal fino. Era preciso reter o ar à massa, para lhe conferir corpo e elasticidade. A mulher estendia-a com as duas mãos, dobrava-a sobre si mesma, num gesto rápido e vivo e recomeçava o processo, de modo a libertar a massa das bolhas de ar. Elástica, lisa e brilhante, descolando-se da superfície onde fora trabalhada, a massa ficou, enfim, pronta a levedar. O duende pôde então meter mãos ao novo ofício: formaram bolas, polvilharam-nas com farinha, colocaram-nas nos cestos de vime. Furfuris agia com a lentidão e a falta de jeito de quem aprende uma arte, mas Rosalina não pareceu importar-se. Cobriram-nos com um pano, e deixaram a massa entregue à levedura. A combustão do forno, que cozia o pão já preparado na véspera, formava a crosta dourada e estaladiça, com o calor forte da sua garganta. 
      Os braços e as palmas das mãos estavam doridos e os músculos e tendões pediam descanso. Era tempo de parar. Rosalina abriu a porta do forno e retirou os pães acabados de cozer. Deu uma pancada seca por cima de dois ou três e o som oco disse que estavam prontos.      
     — Isto de fazer pão é serviço que pede muito ao corpo! — Comentou a padeira, ao ver o ajudante derreado, de traseiro no chão, ao fundo da cozinha. — Isso, meu querido, deixa-te ficar aí à vontade, descansa um pouco, que eu vou num instante ao aliviadouro, como diz o meu marido!
   A sós, Furfuris deu mais uma olhadela em redor: regressou ao pátio interior, a sentir o calor do forno. Como a padeira se demorava, abeirou-se de uma enorme saca de farinha de trigo. Colocando-se na ponta dos pés, cheirou-a, a tentar descobrir indícios da sua velha rotina, pensando no vento que fazia girar os búzios, no velame que dançava no alto da colina, no mastro, no assobio majestoso e grave que acariciava as velas...de repente… atchiiiim! Um forte espirro fê-lo desequilibrar-se. Cambaleou, girou os braços a tentar endireitar-se, mas... tarde de mais! Caiu dentro da saca de farinha de arroz, que se encontrava atrás de si. Quando Rosalina chegou veio encontrá-lo ali, dormindo o sono dos inocentes. Sorriu à figurinha mergulhada no conforto branco e fofo, como passarito num ninho de algodão:
“Não há dúvida, há farelo e farelo!”, pensou, com carinho.

    Levou a candeia de azeite e fechou a porta da cozinha: despertá-lo-ia mais tarde. Era uma mulher paciente e costumava dizer, “a massa leveda, a gente descansa, com paciência tudo se alcança”.»
(excerto do livro «A ILHA DE MELQUISEDECH», 1ª parte, Cap. 19, págs.107-110)

sábado, 18 de janeiro de 2014

Naufrágios

O frio tomou conta de tudo, Lisboa cobriu-se de granizo. E aqui, a cinquenta quilómetros da capital, escrevo com uma das melhores invenções de todos os tempos: luvas para teclado de computador. A Bolota dorme ao meu lado, arrumada na posição de pescadinha-de-rabo-na-boca, como é típico dos cães, aconchegada na sua cama com padrão do Winnie de Pooh. O Gastão ficou lá fora: desconcentra-me, é serra da estrela, ele que se aguente com o frio, que para ele é um ligeiro desconforto, enquanto que, para nós, fémeas friorentas, é um suplício. 
A escrita do segundo volume avança e eu atrevo-me a pensar que, se continuar a bom ritmo, trabalhando regularmente e começando a levar isto da escrita mais a sério, sou bem capaz de conseguir terminá-lo ainda este ano. Há muito que reúno material para a continuação da trilogia. E agora, enfim, retiro a poeira ao esqueleto de um novo livro. 
Escrever dá muito trabalho, exige silêncio e solidão. Mas é a única forma de encontrar a paz. A cada vez que deixo o tempo e o ócio escorrer-me pelos dedos, sinto-me náufraga num oceano de águas lisas: para onde quer que olhe, nada encontro. Tudo me é distante. Recomeçar a escrever, pegar na ponta do novelo há muito abandonado, é ver surgir, do fundo das águas, uma arca do tesouro, cintilando, uma caravela, uma sereia, um cardume irrequieto de mil cores, uma aldeia de corais enfeitiçados, qualquer coisa que nos fascina e seduz. E só então entendo que esteve sempre ali, à minha espera, inteiro, aguardando o dia em que eu, naufragada, me libertasse da âncora que me prendia e fosse puxar, até mim, o cabo que me liga a uma velha história que tenho de contar.  

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Fontes do imaginário

Mergulhada na escrita do segundo volume d'A Ilha de Melquisedech, torno a abrir o livro "Deuses, Mitos e Lendas", da autoria de Jorge Campos Tavares e edição da Lello & Irmão Editores, que comprei em 1992 (escrevo sempre o nome e a data nos livros, uma mania minha) e que tão útil me foi em 2004, quando andava na fase de pesquisa para o primeiro volume desta trilogia.
Partilho convosco o início do prefácio, que ilustra bem a importância de uma temática que me apaixonou desde então, inspirando-me uma boa parte deste meu trabalho:

«Todas as Civilizações, mesmo as mais primitivas, têm as suas lendas, os seus deuses e os seus mitos, pois o Homem parece não poder viver sem o suporte de crenças e das mitologias que se criam à volta dessas crenças.
A nossa Civilização, a chamada Civilização Cristã Ocidental herdeira das Civilizações Clássicas, e da Judaico-Cristã (e de certo modo da Fenícia, da Etrusca, da Celta e da Germânica) tem um fabulário muito rico em histórias e personalidades fantásticas. Se algumas delas são originais, outras assemelham-se às concebidas por povos diferentes ou por culturas distantes que viveram noutros tempos, confirmando de certa forma o aforismo de que nada há de novo sobre a Terra.
As mitologias dos Povos de que a nossa Civilização é a continuidade, estão povoadas por personalidades fortemente caracterizadas, que se enredam em aventuras prodigiosas, e depois se debatem em situações que aparentam ser fruto de devaneios, de sonhos ou até de pesadelos - num mundo de fantasias muitas vezes sem nexo.
Esta aparência é porém ilusória.
Todos os elementos destes mitos reflectem uma concepção da Vida, uma maneira de entender e lidar com o Mundo, uma forma de transmitir conhecimento, uma maneira de enfrentar as realidades, já que certos valores universais se expressam muito melhor e mais claramente sob a forma de lendas mitológicas do que doutro modo. Por outro lado, estão implícitos nessas fábulas processos que têm que ver com o psiquismo dos indivíduos e o sentir colectivo das comunidades, processos que têm incidência no foro íntimo de cada um.
Sucede que artistas plásticos, poetas e dramaturgos, têm recorrido, ao longo dos séculos, ao acervo legado pelas mitologias do passado a fim de tirarem daí matéria-prima para se exprimirem, para conceberem e construírem as suas obras - fenómeno que, em vez de esgotar a força anímica desses mitos, lhes renova a vitalidade e a importância.»

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Aparências

Meus amigos, escutem isto e aqui fica o aviso: as aparências enganam! Não se deixem iludir :-) Divirtam-se.
E vá, se tiverem pachorra, vão depois ouvir abaixo, a versão CERTA, verdadeira :)


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Júlio Isidro

Hoje foi uma tarde em cheio. Desloquei-me aos estúdios da RTP para gravar uma conversa com o Júlio Isidro, cuja amizade está prestes a completar 25 anos, imaginem! A 1ª parte foi preenchida com o realizador José Fonseca e Costa e depois foi a minha vez de me sentar ao lado do Júlio, a relembrar tempos inesquecíveis.
O Júlio lançou-me no mercado da música, no dia em que me convidou para integrar a banda de cantores residentes do Regresso ao Passado, num tempo em que eu mais não era do que uma cantora amadora, a trabalhar como assistente de redacção numa revista e depois como estudante universitária de Turismo. Sim, repito, foi por causa do Júlio que me tornei cantora profissional, desde o fim de 1989, e que fui cantando, como cigarra, em todos estes anos.
O programa "INESQUECÍVEL" (RTP Memória) irá para o ar no dia 2 de Fevereiro.
Comigo levei alguns objectos relevantes nestas bodas de prata e muito ficou por dizer, como, aliás, é próprio das lides televisivas: os minutos contados, as conversas estonteantes e o tempo, que acaba inevitavelmente por  voar. O meu velho amigo Júlio organizou uma selecção de imagens que contemplou vários programas e ainda houve tempo para referir pessoas que me são queridas e promover boa parte do meu trabalho, sobretudo a saída do romance de fantasia "A Ilha de Melquisedech", que o Júlio já imagina em versão cinematográfica "lá fora!" (pois claro...gnomos? faunos? ciclopes, Magia? Batalhas? Cenas passadas em vários pontos do planeta? Efeitos especiais? cenários paradisíacos? Já chega a utopia que o próprio livro contém). É preciso tempo, sim, e o tempo não me intimida. Nunca intimidou. Brinco com ele.
Aqui fica a minha gratidão para com um profissional da televisão que tem um lugar incontestável como autor, apresentador e entrevistador na televisão e não só. E foi um prazer privar como Fonseca e Costa e muito divertido partilhar com ele o entusiasmo pelo seu novo carro, um Toyota IQ, dentro do qual se despediu de mim junto à portaria da RTP, com um aceno e uma gargalhada cúmplice.
Dali, ainda bem penteada e maquilhada, sob a tarde de chuva ininterrupta, segui para a minha editora, a fim de assinar (aliás escrever dedicatória em) duas dezenas de exemplares para figuras importantes na rádio, televisão e imprensa.
Tudo teria sido bem mais complicado se não tivesse contado com o apoio logístico do meu marido, a quem roubei o dia. Espero que ele me perdoe e espero, sobretudo, que tenha sido por uma boa causa.
É muito bom contarmos com o apoio dos outros. Que seria de nós sem Os Outros?

sábado, 11 de janeiro de 2014

Tenho que

A espada sobre a cabeça. Chocalhar, a cada passo, o líquido interno que se arruma nas curvas intrincadas do cérebro: tenho que. Gota a gota, espessamente. Tenho que.
A pólvora, a mira, o alvo que adiamos por tempos infindos, como se existisse um estranho prazer em prolongar a dor.
O que acabamos por nunca fazer, apesar de termos que. Desobedecemos, numa revolta estúpida. Uma granada que nos explode na mão. Sempre.
O que sabemos que nunca faremos mas que, ainda assim, arrumamos na categoria do tenho que. Porque é o que esperam de nós.
O que empurramos para o dia seguinte, mesmo sabendo que era urgente fazer hoje. Mesmo que não haja dias seguintes.
A prateleira para o escritório, a escrita dos livros, as incontáveis leituras e releituras, as personagens que aguardam e nos invadem os sonhos, os caixotes de compromissos que assumimos para connosco, sem que alguém nos houvesse encostado a pistola à têmpora, só porque sim, na busca patética de algo que lembre a perfeição; a correspondência a enviar pelos correios de carne e osso, a consulta médica, os documentos e legalidades a endireitar, passando a limpo o rascunho da nossa vida; as odiosas despesas tão sem encanto ou para quê, os problemas sem solução.
Tenho que arranjar uma solução para este problema sem solução.
Porque somos inventores. Todos os dias. Malabaristas. Engolidores de espadas (sobre a cabeça). Contorcionistas. Trapezistas. Domadores (domando as nossas dores). Acrobatas. Ilusionistas. Mestres de cerimónias. Palhaços. Todos os artistas de circo. Sem rede nem aplauso.

Roubei a imagem ao Cirque de Soleil («Corteo»)

domingo, 5 de janeiro de 2014

Bicho

Sempre disse que a felicidade nada tem de literário. Quando andamos felizes parecemos parvos. Escrevo quando penso de mais, quando o suco das minhas frustrações decide escorrer, em capítulos de uma indignação que eu vou esmiuçando, e que deixo pregada no tempo como quem deixa recados na porta, a quem chegar. Não há o desplante de uma grande frase quando somos bichos roedores, de barriga cheia, a quem não importam a chuva, o vento, o frio, a tempestade. Ela está lá, do lado de fora, mas não nos atinge, já que andamos assim, como esquilos regalados. Tudo pode ser até mais do mesmo, a vida, os frutos que já tínhamos na mão sem vontade de comer, sem ver; e é agora um pequeno manjar, um doce paraíso crocante, o corpo leve, no torpor, na protecção de uma fina cúpula que a felicidade tece à nossa volta.
É dia 5 e ando nisto. Tenho a casa do avesso e a alma organizada, no desarrumo de gavetas e salinhas invisíveis, no festim dos sentidos, na celebração de um lado luciferino e narcisista que não permite o desconforto da consciência. Essa, a consciência, anda algures, soterrada num montículo de nozes descascadas e, se não se acautela, o diabo ainda a come também.
Os livros saem, os mimos multiplicam-se, os encontros com a família e os amigos transbordam da taça natalícia e não têm fim e eu não me queixo. As horas não cabem na cova de um dente. E na beatitude destes dias escuto ao longe o eco dos queixumes mais patéticos - não da verdadeira miséria humana, que essa, sendo pobre, não tem voz - e fujo a enfiar a cabeça no conforto da minha toca...porque ando assim, como bicho, e os bichos não mordiscam o caroço das filosofias.