sábado, 11 de janeiro de 2014

Tenho que

A espada sobre a cabeça. Chocalhar, a cada passo, o líquido interno que se arruma nas curvas intrincadas do cérebro: tenho que. Gota a gota, espessamente. Tenho que.
A pólvora, a mira, o alvo que adiamos por tempos infindos, como se existisse um estranho prazer em prolongar a dor.
O que acabamos por nunca fazer, apesar de termos que. Desobedecemos, numa revolta estúpida. Uma granada que nos explode na mão. Sempre.
O que sabemos que nunca faremos mas que, ainda assim, arrumamos na categoria do tenho que. Porque é o que esperam de nós.
O que empurramos para o dia seguinte, mesmo sabendo que era urgente fazer hoje. Mesmo que não haja dias seguintes.
A prateleira para o escritório, a escrita dos livros, as incontáveis leituras e releituras, as personagens que aguardam e nos invadem os sonhos, os caixotes de compromissos que assumimos para connosco, sem que alguém nos houvesse encostado a pistola à têmpora, só porque sim, na busca patética de algo que lembre a perfeição; a correspondência a enviar pelos correios de carne e osso, a consulta médica, os documentos e legalidades a endireitar, passando a limpo o rascunho da nossa vida; as odiosas despesas tão sem encanto ou para quê, os problemas sem solução.
Tenho que arranjar uma solução para este problema sem solução.
Porque somos inventores. Todos os dias. Malabaristas. Engolidores de espadas (sobre a cabeça). Contorcionistas. Trapezistas. Domadores (domando as nossas dores). Acrobatas. Ilusionistas. Mestres de cerimónias. Palhaços. Todos os artistas de circo. Sem rede nem aplauso.

Roubei a imagem ao Cirque de Soleil («Corteo»)

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