segunda-feira, 24 de outubro de 2016

sábado, 15 de outubro de 2016

Até quando?

Em arrumações no meu escritório minúsculo, e que mais minúsculo se torna dada a minha dificuldade em mantê-lo arrumado e em deitar fora o que pode ir fora, dou conta de que, graças às novas tecnologias e, em especial, ao recurso à Internet, muitos objectos se tornaram obsoletos. Refiro-me, por exemplo, às gramáticas e aos dicionários - português-inglês, inglês-português, francês, espanhol, latim, sinónimos, provérbios...

Os meus olhos assustam-se ao vê-los, não vá eu precisar deles debruçados nas folhas de papel amarelecido e nas letras tão pequeninas que preenchem as páginas daqueles livros malditos. Sabem-se incapazes dessa aventura antiga; só de lupa e mesmo assim. Imploram-me, por favor, dicionários desses nem vê-los, por favor! 
E têm toda a razão, os meus olhos. 
Para quê estes cartapácios pesados e poeirentos, que ocupam espaço precioso, quando as respostas às nossas perguntas se encontram ao alcance de meia dúzia de cliques? Um Google Tradutor, que despacha num segundo, embora falível, um pequeno texto ou uma frase? 
Por brincadeira, ao escrever isto abro o Google e experimento. De inglês para sueco, já que o Bob Dylan ontem ganhou o Nobel da Literatura:
The answer my friend
Is blowing in the wind

E ele escreve a resposta quase simultaneamente, sem que eu faça o mínimo esforço:

svaret, min vän blåser i vinden, Svaret blåser i vinden

Não há competição possível.
Por isso sei que mais dia menos dia terei de me desfazer dos velhos dicionários. Aqueles que ainda levam a assinatura do meu pai, com o seu nome completo e a data, ou a minha, mais tarde, com letra de adolescente, ou ainda os comprados até 2002, pouco antes de o Google e a Wikipedia entrarem pelas nossas casas transformando-nos, aos poucos, em preguiçosos. 
Um dia. 
Para já, ficaram fechados no armário, a roubar espaço também precioso. Para as estantes, apenas a literatura. E essa, até quando a guardaremos nas nossas estantes?

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Nobel da literatura para....

Bob Dylan:
«Por ter criado novas formas de expressão poéticas no quadro da grande tradição da música americana»



segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Afonso Cruz

Como Afonso Cruz é o vencedor do Prémio Fernando Namora, no valor de 15 mil euros, aqui fica uma entrevista dada quando o livro «Flores» saiu, para que fiquemos a conhecê-lo um pouco melhor.

Flores é uma tentativa de passar ao próximo nível? Chegar ao público só com palavras?
Inicialmente era para ter fotografias. Mas depois achei que não era muito pertinente e acabei por abandonar a ideia. E também porque às vezes me sinto aborrecido com as coisas que faço, quero mudar, quero fazer uma coisa diferente e, neste caso, quis experimentar sem bonecos [risos]. O livro conta a história de um homem que perde as suas memórias afetivas, aquelas que são mais caras. Tem um vizinho jornalista que decide recuperar essas memórias, entrevistando as pessoas que tiveram contacto com ele. E tenta reconstruir-lhe a memória de uma maneira artificial mas de modo a que ele tenha algum passado. São duas personagens um pouco antagónicas: a personagem que perdeu a memória, apesar de tudo, tem uma relação muito forte com a tragédia, com a injustiça social, com os grandes valores. Ao passo que o narrador, esta pessoa que irá recuperar a memória do outro, vive mais ou menos anestesiada na sua rotina e, apesar de ter a memória intacta fisicamente, a verdade é que há muitas coisas que funcionam como se não se lembrasse, como se não existissem, porque são invisíveis para ele. Não tem qualquer relação com elas. É um pouco o que nos acontece no Facebook dois ou três minutos depois de uma notícia aparecer. Vemos, vamos às nossas vidas, já acabou o tempo da indignação. Conservamos poucas memórias? Temos esta dessensibilização em relação às coisas que nos afetam diariamente e à injustiça diária. Vamos ganhando uma capa que vai tornando algumas pessoas invisíveis. Esse é um problema. Este constante trabalho da memória é essencial, voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível. Não quer dizer que funcione. É também essa uma parte do papel do escritor: portador de memória? É um assunto polémico. Há muitos escritores para quem o único dever que têm é o da liberdade. Precisam de ser sinceros apenas com aquilo que são e, se sentem necessidade de ter um papel social nos seus livros, fazem-no. Estive num evento sui generis na Hungria, fechado ao público, só para escritores. Metade de nós seria provavelmente da Europa Ocidental e a outra metade da Central e de Leste. A maior parte dos da Europa Central e Ocidental defendia a liberdade criativa, o que talvez tenha a ver com a sua história: mais anos em liberdade, em regimes mais livres. Os de Leste, pelo contrário, sentiam uma motivação social mais forte, confessavam-se obrigados, de certa maneira, a ter um papel interventivo na sociedade enquanto escritores. Porque, enquanto cidadãos, toda a gente concorda que devem ter o seu papel. Pessoalmente, acho que as duas coisas são corretas. Um escritor deve ser honesto. No entanto, também acho que um escritor não é só um cidadão como os outros. Não é que seja melhor ou pior, mas tem mais responsabilidade do que a maior parte dos outros cidadãos. Tem uma arma, uma ferramenta que o faz chegar a mais pessoas. Muito mais alcance. E tem de tomar consciência disso. Pode não usar, mas é uma pena que tenha essa arma e não a use. É um faz-tudo: escritor, ilustrador, músico, cineasta. Isto é uma tentativa de chegar a toda a gente, seja de que maneira for? Não, não é uma tentativa porque nunca planeei a maior parte das coisas que fiz ou que faço. Quando era criança queria fazer banda desenhada e eu nunca fiz banda desenhada na vida. Ainda. Não quer dizer que não venha a fazer, tenho muita vontade de um dia experimentar. Mas nunca pensei em fazer nada destas coisas, não era uma ambição de criança. Surgiram de uma maneira mais ou menos circunstancial: gostava muito de música e quis aprender a tocar um instrumento apesar de nunca ter sido incentivado a fazê-lo. Pelo contrário… Sempre me disseram que era duro de ouvido, que não tinha jeito. Mas insisti, comprei uma guitarra, estraguei muitos discos a tentar imitar os guitarristas de quem gostava. Fui aprendendo. Mais tarde, comecei a trabalhar em animação porque quis comprar uma mota. Os meus pais não me davam dinheiro, eu decidi procurar um emprego e foi o primeiro que apareceu. Depois comecei a gostar muito de animação, dediquei-me imenso e acabei por esquecer a mota. Acabou por se tornar uma carreira que nunca tinha pensado para mim. Tenho e sempre tive uma grande curiosidade – que tem a ver também com independência: se eu gosto muito de uma coisa, quero saber como se faz. Se eu quero compreender o Homem, quero saber como ele é por dentro, sem os acessórios todos. Eu gosto de beber cerveja, quero saber como se faz. Gosto de pão, quero aprender a fazer. Tenho essa vontade de desmontar e ver as entranhas para saber como funciona. “Voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível.” Começou a escrever por gostar de ler. Nesse caso há acaso?
Estava numa agência de publicidade, tinham-me convidado para redator e, pela primeira vez, estava a trabalhar com palavras e não com imagens: era uma novidade para mim. No tempo livre, porque tinha algum, comecei a escrever para um blogue privado onde só chateava os amigos. Percebi que tinha uma quantidade razoável de textos que talvez pudessem dar um livro. Tinha reunido esses textos sob um conceito, uma Enciclopédia da Estória Universal fictícia. Na altura, enviei para a Bertrand e tive a sorte de a editora, a Lúcia, ter gostado muito dos textos e os ter querido publicar. Se calhar, se ela não quisesse, eu não seria escritor. Nessa altura procurou escrever mais histórias e passou a pensar em projetos mais estruturados?
A partir daí senti que era capaz e que gostava muito de escrever. A escrita passou a fazer parte da minha vida. Então não estranhou ver o seu nome em capas de livros e em montras de livrarias.
Foi estranho o suficiente. Lembro-me de estar muito nervoso quando o meu primeiro livro foi publicado. Nessa altura vivia no Magoito, junto à praia, numa casa provisória, e senti necessidade de caminhar, de gastar aquela adrenalina. Era um acontecimento, uma coisa estranhíssima na minha vida. Alguma vez tinha pensado que podia ser escritor? Nunca pensei em ser escritor. Mas creio que o grande combustível, a grande matéria-prima para depois escrever, foi gostar muito de ler, ter lido bastante durante toda a minha vida e ter tido um contacto frequente com os livros. Leio diariamente desde que me lembro de ser gente. E hoje sinto-me quase incapaz de escrever se não ler. Ler faz parte da rotina de escrita? Normalmente, antes de começar a escrever, passo umas horas a ler. Depois paro e, mais à noite, quando os meus filhos estão a dormir e tenho mais silêncio, posso concentrar-me totalmente no que estou a fazer, e então escrevo. Mas essa nutrição diária de leitura é para mim essencial para depois conseguir escrever. E até ter ideias. Se bem que as ideias hoje surgem em qualquer circunstância. Mas também quando estamos a ler. Mudou-se para o Alentejo há quatro anos. Foi à procura de novas ideias? A certa altura, ou se calhar desde sempre, imaginava que seria feliz vivendo no campo. Quando tive oportunidade de trabalhar fora de Lisboa, decidi comprar um monte alentejano que também me permitiria reduzir em muito o meu orçamento. A verdade é que, inicialmente, eu nem sequer estava a pensar no Alentejo: pensei em estar fora de Lisboa. O Alentejo tem essa coisa de ser tudo mais harmonioso, mais uniforme. É muito reconhecível. Eu percebi que o interior era muito mais barato que o litoral e acabei por comprar especificamente ali por isso. Portanto, estou a hora e meia de Lisboa. “Sinto-me quase incapaz de escrever se não ler” Escrever implica esse recolhimento, essa distância? Não creio que haja esse quesito, eu gosto de algum silêncio mas isso é possível em qualquer lugar. Agora, como viajo muito, estou muito habituado a escrever em aviões. Não creio que seja uma necessidade. Por vezes chega a ser contraproducente quando pensamos assim, porque tantas vezes na nossa vida não fazemos as coisas porque estamos à espera das circunstâncias ideais para o fazer. Não preciso de ter vacas a passarem à minha janela para escrever um livro. E também não me inspira mais nem menos, nem faz de ninguém génio, ver ou viver com galinhas. Viver longe da cidade não é propriamente uma mais-valia. Só no sentido de que me sinto feliz no campo. E se estivermos num lugar onde nos sentimos bem, talvez consigamos ser mais produtivos. O que eu acho essencial para as pessoas escreverem é escreverem. Parece uma coisa óbvia mas não é assim tanto, porque muitas vezes vamos adiando, à espera desse momento perfeito que nunca teremos. O tempo para escrever exige uma disciplina? Tem alguma rotina? Algumas, mas quebro-as com muita frequência. Normalmente dedico as manhãs a fazer telefonemas e a responder a e-mails – aquilo a que chamo secretariado. À tarde leio e à noite escrevo, porque consigo ter um maior isolamento. Até muito tarde? Depende de como me sinto, de como as coisas estão a fluir, por um lado. Por outro, depende dos prazos: se por acaso tiver de escrever, tenho mesmo de ficar até muito tarde para entregar. Pode ser até às duas, três, quatro da manhã. E isso compromete a sua manhã de secretariado? Não, porque acordo cedo, quando os meus filhos acordam. Depois, à tarde, se for possível, durmo uma sesta para repor parte do sono. Se puder dormir uma power nap de pelo menos meia hora, sabe-me bem. Escreve à mão ou ao computador? Ao computador. Inicialmente tinha sempre um bloco comigo onde anotava quase tudo, a caneta. Aos poucos fui-me habituando a um iPod, escrevi o primeiro esboço de Jesus Cristo Bebia Cerveja todo nesse iPod. Este último romance escrevi-o no iPad. Passo muito tempo a viajar e dá-me muito mais jeito porque, quando escrevo as notas no telefone, ficam acessíveis logo no computador e consigo organizá-las muito mais facilmente. Ajuda-me a estruturar o romance. Lê o que escreve no mesmo dia ou só no dia seguinte? Leio sempre o que escrevo, releio, releio e releio. É um trabalho exaustivo e diário. E até quando tenho de interromper um livro para fazer uma crónica, uma ilustração, o que for, de repente saio de dentro desse livro e demoro tempo a voltar, já não tenho as coisas tão frescas na memória. Quando regresso tenho de ler, reler e voltar a entrar na história, imbuir-me das personagens, voltar a ensopar-me nas suas ideias. Qual seria o auge da sua carreira enquanto escritor? Espero nunca chegar lá. Acho que a nossa vida deve ser tomada como um desafio, tentamos fazer melhor e ser mais competentes, mais capazes. A necessidade de escrever implica uma superação. Não tenho essa ideia profissional de começar a escrever às oito e acabar às cinco e só estou a escrever para viver. Não é isso. Escrevo por paixão e há sempre essa superação evidente nas coisas que quero fazer. Não quer dizer que faça sempre melhor, isso cabe aos críticos decidirem. Mas que tento, tento. E é isso que me motiva a fazer.
(Entrevista de Mariana de Araújo Barbosa a Afonso Cruz, revista Estante, 27 Outubro 2015)