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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Elena Ferrante

Man blowing exclamation marks over a woman holding umbrella
Ilustração: Andrea Ucini, para The Guardian

Leiam estas declarações de Elena Ferrante. bastante certeiras e divertidas, na forma como ela se explica em relação ao uso do ponto de exclamação. 

Itry never to raise my voice. Enthusiasm, anger, even pain I try to express with restraint, tending towards self-mockery. And I admire those who maintain a calm demeanour during an argument, who try to give cautious hints that we should lower our voices, who reply to frantic questions – “Is it true it really happened like that? Is it true?” – simply with a yes or no, without exclamation marks.
Mainly, this is because I’m afraid of excesses – mine and others’. Sometimes people make fun of me. They say: “You want a world without outbursts of joy, suffering, anger, hatred?” Yes, I want precisely that, I answer. I would like it if, on the entire planet, there were no longer any reason to shout, especially with pain. I like low tones, polite enthusiasm, courteous complaints.
But as the world isn’t going in that direction, I make an effort, at least in the artificial universe that is delineated by writing, never to exaggerate with an exclamation mark. Of all the punctuation marks, it’s the one I like the least. It suggests a commander’s staff, a pretentious obelisk, a phallic display. An exclamation should be easily understood by reading; there’s no need to insist with that mark at the end as well. But I have to say that it’s not simple these days.
Writers are lavish with exclamation marks. In text messages, in WhatsApp chats, in emails, I’ve counted up to five in a row. How much exclaiming the phony innovators of political communication engage in, the blowhards in power, young and old, who tweet nonstop every day. Sometimes I think that exclamation marks are a sign not of emotional exuberance but of aridity, of a lack of trust in written communication. I’m careful not to resort to exclamation marks in my books, but I’ve discovered in some of the translations an unexpected profusion of them, as if the translator had found my page sentimentally bare and devoted himself to the task of reforestation.
It’s likely that my sentences sound detached; I don’t rule that out. And it’s likely that, where the tone for some reason is impassioned, the reader feels happier if he gets to the end of a sentence and finds the signal that authorises him to be impassioned. But I still think that “I hate you” has a power, an emotional honesty, that “I hate you!!!” does not.
At least in writing we should avoid acting like the fanatical world leaders who threaten, bargain, make deals, and then exult when they win, fortifying their speeches with the profile of a nuclear missile at the end of every wretched sentence.»
 Translated by Ann Goldstein, entrevista retirada do The Guardian.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Afonso Cruz

Como Afonso Cruz é o vencedor do Prémio Fernando Namora, no valor de 15 mil euros, aqui fica uma entrevista dada quando o livro «Flores» saiu, para que fiquemos a conhecê-lo um pouco melhor.

Flores é uma tentativa de passar ao próximo nível? Chegar ao público só com palavras?
Inicialmente era para ter fotografias. Mas depois achei que não era muito pertinente e acabei por abandonar a ideia. E também porque às vezes me sinto aborrecido com as coisas que faço, quero mudar, quero fazer uma coisa diferente e, neste caso, quis experimentar sem bonecos [risos]. O livro conta a história de um homem que perde as suas memórias afetivas, aquelas que são mais caras. Tem um vizinho jornalista que decide recuperar essas memórias, entrevistando as pessoas que tiveram contacto com ele. E tenta reconstruir-lhe a memória de uma maneira artificial mas de modo a que ele tenha algum passado. São duas personagens um pouco antagónicas: a personagem que perdeu a memória, apesar de tudo, tem uma relação muito forte com a tragédia, com a injustiça social, com os grandes valores. Ao passo que o narrador, esta pessoa que irá recuperar a memória do outro, vive mais ou menos anestesiada na sua rotina e, apesar de ter a memória intacta fisicamente, a verdade é que há muitas coisas que funcionam como se não se lembrasse, como se não existissem, porque são invisíveis para ele. Não tem qualquer relação com elas. É um pouco o que nos acontece no Facebook dois ou três minutos depois de uma notícia aparecer. Vemos, vamos às nossas vidas, já acabou o tempo da indignação. Conservamos poucas memórias? Temos esta dessensibilização em relação às coisas que nos afetam diariamente e à injustiça diária. Vamos ganhando uma capa que vai tornando algumas pessoas invisíveis. Esse é um problema. Este constante trabalho da memória é essencial, voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível. Não quer dizer que funcione. É também essa uma parte do papel do escritor: portador de memória? É um assunto polémico. Há muitos escritores para quem o único dever que têm é o da liberdade. Precisam de ser sinceros apenas com aquilo que são e, se sentem necessidade de ter um papel social nos seus livros, fazem-no. Estive num evento sui generis na Hungria, fechado ao público, só para escritores. Metade de nós seria provavelmente da Europa Ocidental e a outra metade da Central e de Leste. A maior parte dos da Europa Central e Ocidental defendia a liberdade criativa, o que talvez tenha a ver com a sua história: mais anos em liberdade, em regimes mais livres. Os de Leste, pelo contrário, sentiam uma motivação social mais forte, confessavam-se obrigados, de certa maneira, a ter um papel interventivo na sociedade enquanto escritores. Porque, enquanto cidadãos, toda a gente concorda que devem ter o seu papel. Pessoalmente, acho que as duas coisas são corretas. Um escritor deve ser honesto. No entanto, também acho que um escritor não é só um cidadão como os outros. Não é que seja melhor ou pior, mas tem mais responsabilidade do que a maior parte dos outros cidadãos. Tem uma arma, uma ferramenta que o faz chegar a mais pessoas. Muito mais alcance. E tem de tomar consciência disso. Pode não usar, mas é uma pena que tenha essa arma e não a use. É um faz-tudo: escritor, ilustrador, músico, cineasta. Isto é uma tentativa de chegar a toda a gente, seja de que maneira for? Não, não é uma tentativa porque nunca planeei a maior parte das coisas que fiz ou que faço. Quando era criança queria fazer banda desenhada e eu nunca fiz banda desenhada na vida. Ainda. Não quer dizer que não venha a fazer, tenho muita vontade de um dia experimentar. Mas nunca pensei em fazer nada destas coisas, não era uma ambição de criança. Surgiram de uma maneira mais ou menos circunstancial: gostava muito de música e quis aprender a tocar um instrumento apesar de nunca ter sido incentivado a fazê-lo. Pelo contrário… Sempre me disseram que era duro de ouvido, que não tinha jeito. Mas insisti, comprei uma guitarra, estraguei muitos discos a tentar imitar os guitarristas de quem gostava. Fui aprendendo. Mais tarde, comecei a trabalhar em animação porque quis comprar uma mota. Os meus pais não me davam dinheiro, eu decidi procurar um emprego e foi o primeiro que apareceu. Depois comecei a gostar muito de animação, dediquei-me imenso e acabei por esquecer a mota. Acabou por se tornar uma carreira que nunca tinha pensado para mim. Tenho e sempre tive uma grande curiosidade – que tem a ver também com independência: se eu gosto muito de uma coisa, quero saber como se faz. Se eu quero compreender o Homem, quero saber como ele é por dentro, sem os acessórios todos. Eu gosto de beber cerveja, quero saber como se faz. Gosto de pão, quero aprender a fazer. Tenho essa vontade de desmontar e ver as entranhas para saber como funciona. “Voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível.” Começou a escrever por gostar de ler. Nesse caso há acaso?
Estava numa agência de publicidade, tinham-me convidado para redator e, pela primeira vez, estava a trabalhar com palavras e não com imagens: era uma novidade para mim. No tempo livre, porque tinha algum, comecei a escrever para um blogue privado onde só chateava os amigos. Percebi que tinha uma quantidade razoável de textos que talvez pudessem dar um livro. Tinha reunido esses textos sob um conceito, uma Enciclopédia da Estória Universal fictícia. Na altura, enviei para a Bertrand e tive a sorte de a editora, a Lúcia, ter gostado muito dos textos e os ter querido publicar. Se calhar, se ela não quisesse, eu não seria escritor. Nessa altura procurou escrever mais histórias e passou a pensar em projetos mais estruturados?
A partir daí senti que era capaz e que gostava muito de escrever. A escrita passou a fazer parte da minha vida. Então não estranhou ver o seu nome em capas de livros e em montras de livrarias.
Foi estranho o suficiente. Lembro-me de estar muito nervoso quando o meu primeiro livro foi publicado. Nessa altura vivia no Magoito, junto à praia, numa casa provisória, e senti necessidade de caminhar, de gastar aquela adrenalina. Era um acontecimento, uma coisa estranhíssima na minha vida. Alguma vez tinha pensado que podia ser escritor? Nunca pensei em ser escritor. Mas creio que o grande combustível, a grande matéria-prima para depois escrever, foi gostar muito de ler, ter lido bastante durante toda a minha vida e ter tido um contacto frequente com os livros. Leio diariamente desde que me lembro de ser gente. E hoje sinto-me quase incapaz de escrever se não ler. Ler faz parte da rotina de escrita? Normalmente, antes de começar a escrever, passo umas horas a ler. Depois paro e, mais à noite, quando os meus filhos estão a dormir e tenho mais silêncio, posso concentrar-me totalmente no que estou a fazer, e então escrevo. Mas essa nutrição diária de leitura é para mim essencial para depois conseguir escrever. E até ter ideias. Se bem que as ideias hoje surgem em qualquer circunstância. Mas também quando estamos a ler. Mudou-se para o Alentejo há quatro anos. Foi à procura de novas ideias? A certa altura, ou se calhar desde sempre, imaginava que seria feliz vivendo no campo. Quando tive oportunidade de trabalhar fora de Lisboa, decidi comprar um monte alentejano que também me permitiria reduzir em muito o meu orçamento. A verdade é que, inicialmente, eu nem sequer estava a pensar no Alentejo: pensei em estar fora de Lisboa. O Alentejo tem essa coisa de ser tudo mais harmonioso, mais uniforme. É muito reconhecível. Eu percebi que o interior era muito mais barato que o litoral e acabei por comprar especificamente ali por isso. Portanto, estou a hora e meia de Lisboa. “Sinto-me quase incapaz de escrever se não ler” Escrever implica esse recolhimento, essa distância? Não creio que haja esse quesito, eu gosto de algum silêncio mas isso é possível em qualquer lugar. Agora, como viajo muito, estou muito habituado a escrever em aviões. Não creio que seja uma necessidade. Por vezes chega a ser contraproducente quando pensamos assim, porque tantas vezes na nossa vida não fazemos as coisas porque estamos à espera das circunstâncias ideais para o fazer. Não preciso de ter vacas a passarem à minha janela para escrever um livro. E também não me inspira mais nem menos, nem faz de ninguém génio, ver ou viver com galinhas. Viver longe da cidade não é propriamente uma mais-valia. Só no sentido de que me sinto feliz no campo. E se estivermos num lugar onde nos sentimos bem, talvez consigamos ser mais produtivos. O que eu acho essencial para as pessoas escreverem é escreverem. Parece uma coisa óbvia mas não é assim tanto, porque muitas vezes vamos adiando, à espera desse momento perfeito que nunca teremos. O tempo para escrever exige uma disciplina? Tem alguma rotina? Algumas, mas quebro-as com muita frequência. Normalmente dedico as manhãs a fazer telefonemas e a responder a e-mails – aquilo a que chamo secretariado. À tarde leio e à noite escrevo, porque consigo ter um maior isolamento. Até muito tarde? Depende de como me sinto, de como as coisas estão a fluir, por um lado. Por outro, depende dos prazos: se por acaso tiver de escrever, tenho mesmo de ficar até muito tarde para entregar. Pode ser até às duas, três, quatro da manhã. E isso compromete a sua manhã de secretariado? Não, porque acordo cedo, quando os meus filhos acordam. Depois, à tarde, se for possível, durmo uma sesta para repor parte do sono. Se puder dormir uma power nap de pelo menos meia hora, sabe-me bem. Escreve à mão ou ao computador? Ao computador. Inicialmente tinha sempre um bloco comigo onde anotava quase tudo, a caneta. Aos poucos fui-me habituando a um iPod, escrevi o primeiro esboço de Jesus Cristo Bebia Cerveja todo nesse iPod. Este último romance escrevi-o no iPad. Passo muito tempo a viajar e dá-me muito mais jeito porque, quando escrevo as notas no telefone, ficam acessíveis logo no computador e consigo organizá-las muito mais facilmente. Ajuda-me a estruturar o romance. Lê o que escreve no mesmo dia ou só no dia seguinte? Leio sempre o que escrevo, releio, releio e releio. É um trabalho exaustivo e diário. E até quando tenho de interromper um livro para fazer uma crónica, uma ilustração, o que for, de repente saio de dentro desse livro e demoro tempo a voltar, já não tenho as coisas tão frescas na memória. Quando regresso tenho de ler, reler e voltar a entrar na história, imbuir-me das personagens, voltar a ensopar-me nas suas ideias. Qual seria o auge da sua carreira enquanto escritor? Espero nunca chegar lá. Acho que a nossa vida deve ser tomada como um desafio, tentamos fazer melhor e ser mais competentes, mais capazes. A necessidade de escrever implica uma superação. Não tenho essa ideia profissional de começar a escrever às oito e acabar às cinco e só estou a escrever para viver. Não é isso. Escrevo por paixão e há sempre essa superação evidente nas coisas que quero fazer. Não quer dizer que faça sempre melhor, isso cabe aos críticos decidirem. Mas que tento, tento. E é isso que me motiva a fazer.
(Entrevista de Mariana de Araújo Barbosa a Afonso Cruz, revista Estante, 27 Outubro 2015)



terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Umberto Eco

Umberto Eco completou 80 anos. Aqui deixo, na íntegra, a entrevista que deu à revista brasileira "Época":

ÉPOCA - Como o senhor se sente, completando 80 anos?

Umberto Eco - Bem mais velho! (Risos.) Vamos nos tornando importantes com a idade, mas não me sinto importante nem velho. Não posso reclamar de rotina. Minha vida é agitada. Ainda mantenho uma cátedra no Departamento de Semiótica e Comunicação da Universidade de Bolonha e continuo orientando doutorandos e pós-doutorandos. Dou muita palestra pelo mundo afora. E tenho feito turnês de lançamento de O cemitério de Praga. Acabo de voltar de uma megaexcursão pelos Estados Unidos. Ela quase me custou o braço. Estou com tendinite de tanto dar autógrafos em livros. 

ÉPOCA - O senhor tem sido um dos mais ferrenhos defensores do livro em papel. Sua tese é de que o livro não vai acabar. Mesmo assim, estamos assistindo à popularização dos leitores digitais e tablets. O livro em papel ainda tem sentido?

Eco - Sou colecionador de livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás, achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet. 

ÉPOCA - Apesar dessas melhorias, o senhor ainda vê a internet como um perigo para o saber?

Eco - A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele. Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância. Ora, isso não é conhecimento. 

ÉPOCA - Mas o conhecimento está se tornando cada vez mais acessível via computadores e internet. O senhor não acha que o acesso a bancos de dados de universidades e instituições confiáveis estão alterando nossa noção de cultura?

Eco - Sim, é verdade. Se você sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes. 

ÉPOCA - Há uma solução para o problema do excesso de informação?

Eco - Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.

ÉPOCA - O senhor já está pensando em um novo romance depois de O cemitério de Praga?

Eco - Vamos com calma. Mal publiquei um e você já quer outro. Estou sem tempo para ficção no momento. Na verdade, vou me ocupar agora de minha autobiografia intelectual. Fui convidado por uma instituição americana, Library of Living Philosophers, para elaborar meu percurso filosófico. Fiquei contente com o convite, porque passo a fazer parte de um projeto que inclui John Dewey, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty - embora eu não seja filósofo. Desde 1939, o instituto convida um pensador vivo para narrar seu percurso intelectual em um livro. O volume traz então ensaios de vários especialistas sobre os diversos aspectos da obra do convidado. No final, o convidado responde às dúvidas e críticas levantadas. O desafio é sistematizar de uma forma lógica tudo o que já fiz...

ÉPOCA - Como lidar com tamanha variedade de caminhos?

Eco - Estou começando com meu interesse constante desde o começo da carreira pela Idade Média e pelos romances de Alessandro Manzoni. Depois vieram a Semiótica, a teoria da comunicação, a filosofia da linguagem. E há o lado banido, o da teoria ocultista, que sempre me fascinou. Tanto que tenho uma biblioteca só do assunto. Adoro a questão do falso. E foi recolhendo montes de teorias esquisitas que cheguei à ideia de escrever O cemitériode Praga.

ÉPOCA - Entre essas teorias, destaca-se a mais célebre das falsificações, O protocolo dos sábios de Sião. Por que o senhor se debruçou sobre um documento tão revoltante para fazer ficção?

Eco - Eu queria investigar como os europeus civilizados se esforçaram em construir inimigos invisíveis no século XIX. E o inimigo sempre figura como uma espécie de monstro: tem de ser repugnante, feio e malcheiroso. De alguma forma, o que causa repulsa no inimigo é algo que faz parte de nós. Foi essa ambivalência que persegui em O cemitério de Praga. Nada mais exemplar que a elaboração das teorias antissemitas, que viriam a desembocar no nazismo do século XX. Em pesquisas, em arquivos e na internet, constatei que o antissemitismo tem origem religiosa, deriva para o discurso de esquerda e, finalmente, dá uma guinada à direita para se tornar a prioridade da ideologia nacional-socialista. Começou na Idade Média a partir de uma visão cristã e religiosa. Os judeus eram estigmatizados como os assassinos de Jesus. Essa visão chegou ao ápice com Lutero. Ele pregava que os judeus fossem banidos. Os jesuítas também tiveram seu papel. No século XIX, os judeus, aparentemente integrados à Europa, começaram a ser satanizados por sua riqueza. A família de banqueiros Rotschild, estabelecida em Paris, virou um alvo do rancor social e dos pregadores socialistas. Descobri os textos de Léo Taxil, discípulo do socialista utópico Fourier. Ele inaugurou uma série de teorias sobre a conspiração judaica e capitalista internacional que resultaria em Os protocolos dos sábios do Sião, texto forjado em 1897 pela polícia secreta do czar Nicolau II.

ÉPOCA - O senhor considera os Procotolos uma das fontes do nazismo?

Eco - Sem dúvida. Adolf Hitler, em sua autobiografia, Minha luta, dava como legítimo o texto dos Protocolos. Hitler tomou como verdadeira uma falsificação das mais grosseiras, e essa mentira constitui um dos fundamentos do nazismo. A raiz do antissemitismo vem de muito antes, de uma construção do inimigo, que partiu de delírios e paranoias.

ÉPOCA - O personagem de O cemitério de Praga, Simone Simonini, parece concentrar todos os preconceitos e delírios europeus do século XIX. Ele é ao mesmo tempo antissemita, anticlerical, anticapitalicas e antissocialista. Como surgiu na sua mente alguém tão abominável?

Eco - Os críticos disseram que Simonini é o personagem mais horroroso da literatura de todos os tempos, e devo concordar com eles. Ele também é muito divertido. Seus excessos estão ali para provocar riso e revolta. No romance, Simonini é a única figura fictícia. Guarda todos os preconceitos e fantasias sobre um inimigo que jamais conhece. E se desdobra em várias personalidades: durante o dia, atua como tabelião falsificador de documentos; à noite, traveste-se em falso padre jesuíta e sai atrás de aventuras sinistras. Acaba virando joguete dos monarquistas, que se opõem à unificação da Itália, e, por fim, dos russos. Imaginei Simonini como um dos autores de Os protocolos dos sábios do Sião.

ÉPOCA - A falsificação sobre falsificações permitida pela ficção tornou o livro controverso. Ele tem provocado reações negativas. O senhor gosta de lidar com polêmicas?

Eco - A recepção tem sido positiva. O livro tem feito sucesso sem precisar de polêmicas. Quando foi lançado na Itália, ele gerou alguma discussão. O L'osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, publicou um artigo condenando os ataques do livro aos jesuítas. Não respondi, porque sou conhecido como um intelectual anticlerical - e já havia discutido com a igreja católica no tempo de O nome da rosa, quando me acusaram de atacar a igreja. O rabino de Roma leu O cemitério de Praga e advertiu em um pronunciamento que as teorias contidas no livro poderiam se tornar novamente populares a partir da obra. Respondi a ele que não havia esse perigo. Ao contrário, se Simonini serve para alguma coisa, é para provocar nossa indignação.

ÉPOCA - Além de falsário, Simonini se revela um gourmet. Ao longo do livro, o senhor joga listas e listas de receitas as mais extravagantes, que Simonini comenta com volúpia. O senhor gosta de gastronomia?

Eco - Eu sou MacDonald's! Nunca me incomodei com detalhes de comida. Pesquisei receitas antigas com um objetivo preciso: causar repugnância no leitor. A gastronomia é um dado negativo na composição do personagem. Quando Simonini discorre sobre pratos esquisitos, o leitor deve sentir o estômago revirado.

ÉPOCA - Qual o sentido de escrever romances hoje em dia? O que o atrai no gênero?

Eco - Faz todo o sentido escrever ficção. Não vejo como fazer hoje narrativa experimental, como James Joyce fez com Finnegan's Wake, para mim a fronteira final da experimentação. Houve um recuo para a narrativa linear e clássica. Comecei a escrever ficção nesse contexto de restauração da narratividade, chamado de pós-modernismo. Sou considerado um autor pós-moderno, e concordo com isso. Vasculho as formas e artifícios do romance tradicional. Só que procuro introduzir temas que possam intrigar o leitor: a teoria da comédia perdida de Aristóteles em O nome da rosa; as conspirações maçônicas em O pêndulo de Foucault; a imaginação medieval em Baudolino; a memória e os quadrinhos em A misteriosa chama; a construção do antissemitismo em O cemitério de Praga. O romance é a realização maior da narratividade. E a narratividade conserva o mito arcaico, base de nossa cultura. Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais efetiva do que qualquer tecnologia.

ÉPOCA - Philip Roth disse que a literatura morreu. Qual a sua opinião sobre os apocalípticos que preveem a morte da literatura?

Eco - Philip Roth é um grande escritor. A contar com ele, a literatura não vai morrer tão cedo. Ele publica um romance por ano, e sempre de boa qualidade. Não me parece que nem o romance nem ele pretendem interromper a carreira (risos).

ÉPOCA - Mas por que hoje não aparecem romancistas do porte de Liev Tolstói e Gustave Flaubert?

Eco - Talvez porque ainda não os descobrimos. Nada acontece imediatamente na literatura. É preciso esperar um pouco. Devem certamente existir Tolstóis e Flauberts por aí. E têm surgido ótimos ficcionistas em toda parte.

ÉPOCA - Como o senhor analisa a literatura contemporânea?

Eco - Há bons autores medianos na Itália. Nada de genial, mas têm saído livros interessantes de autores bastante promissores. Hoje existe o thriller italiano, com os romances de suspense de Andrea Camilleri e seus discípulos. No entanto, um signo do abalo econômico italiano é que não é mais possível um romancista viver de sua obra literária, como fazia (Alberto) Moravia. Hoje romance virou uma atividade diletante. É diferente do que ocorre nos Estados Unidos, aindaum polo emissor de ótima ficção e da profissionalização dos escritores. Além dos livros de Roth, adorei ler Liberdade, de Jonathan Franzen, um romance de corte clássico e repleto de referências culturais. A França, infelizmente, experimenta uma certa decadência literária, e nada de bom apareceu nos últimos tempos. O mesmo parece se passar com a América Latina. Já vão longe os tempos do realismo fantástico de García Márquez e Jorge Luis Borges. Nada tem vindo de lá que me pareça digno de nota.

ÉPOCA - E a literatura brasileira? Que impressões o senhor tem do Brasil? O país lhe parece mais interessante hoje do que há 30 anos?

Eco - O Brasil é um país incrivelmente dinâmico. Visitei o Brasil há muito tempo, agora acompanho de longe as notícias sobre o país. A primeira vez foi em 1966. Foi quando visitei terreiros de umbanda e candomblé - e mais tarde usei essa experiência em um capítulo de O pêndulo de Foucault para descrever um ritual de candomblé. Quando voltei em 1978, tudo já havia mudado, as cidades já não pareciam as mesmas. Imagino que hoje em dia o Brasil esteja completamente transformado. Não tenho acompanhado nada do que se faz por lá em literatura. Eu era amigo do poeta Haroldo de Campos, um grande erudito e tradutor. Gostaria de voltar, tenho muitos convites, mas agora ando muito ocupado... comigo mesmo.

ÉPOCA - O senhor foi o criador do suspense erudito. O modelo é ainda válido?

Eco - Em O nome da Rosa, consegui juntar erudição e romance de suspense. Inventei o investigador-frade William de Baskerville, baseado em Sherlock Holmes de Conan Dolyle, um bibliotecário cego inspirado em Jorge Luis Borges, e fui muito criticado porque Jorge de Burgos, o personagem, revela-se um vilão. De qualquer forma, o livro foi um sucesso e ajudou a criar um tipo de literatura que vejo com bons olhos Sim, há muita coisa boa sendo feita. Gosto de (Arturo) Pérez-Reverte, com seus livros de fantasia que lembram os romances de aventura de Alexandre Dumas e Emilio Salgari que eu lia quando menino.

ÉPOCA - Lendo seus seguidores, como Dan Brown, o senhor às vezes não se arrepende de ter criado o suspense erudito?

Eco - Às vezes, sim! (risos) O Dan Brown me irrita porque ele parece um personagem inventado por mim. Em vez de ele compreender que as teorias conspiratórias são falsas, Brown as assume como verdadeiras, ficando ao lado do personagem, sem questionar nada. É o que ele faz em O Código DaVinci. É o mesmo contexto de O pêndulo de Foucault. Mas ele parece ter adotado a história para simplificá-la. Isso provoca ondas de mistificação. Há leitores que acreditam em tudo o que Dan Brown escreve - e não posso condená-los.

ÉPOCA - O que vem antes na sua obra, a teoria ou a ficção?

Eco - Não há um caminho único. Eu tanto posso escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio que eu tenha feito. Foi o caso de O pêndulo de Foucault, que nasceu de uma teoria. Baudolino resultou de ideias que elaborei em torno da falsificação. Ou vice-versa. Depois de escrever Ocemitério de Praga, me veio a ideia de elaborar uma teoria, que resultou no livro Costruire il Nemico (Construir o Inimigo, lançado em maio de 2011). E nada impede que uma teoria nascida de uma obra de ficção redunde em outra ficção.

ÉPOCA - Quando escreve, o senhor tem um método ou uma superstição?

Eco - Não tenho nenhum método. Não sou com Alberto Moravia, que acordava às 8h, trabalhava até o meio-dia, almoçava, e depois voltava para a escrivaninha. Escrevo ficção sempre que me dá prazer, sem observar horários e metodologias. Adoro escrever por escrever, em qualquer meio, do lápis ao computador. Quando elaboro textos acadêmicos ou ensaio, preciso me concentrar, mas não o faço por método.

ÉPOCA - Como o senhor analisa a crise econômica italiana? Existe uma crise moral que acompanha o processo de decadência cultural? A Itália vai acabar?

Eco - Não sou economista para responder à pergunta. Não sei por que vocês jornalistas estão sempre fazendo perguntas (risos). Talvez porque eu tenha sido um crítico do governo Silvio Berlusconi nesses anos todos, nos meus artigos de jornal, não é mesmo? Bom, a Itália vive uma crise econômica sem precedentes. Nos anos Berlusconi, desde 2001, os italianos viveram uma fantasia, que conduziu à decadência moral. Os pais sonhavam com que as filhas frequentassem as orgias de Berlusconi para assim se tornarem estrela da televisão. Isso tinha de parar, acho que agora todos se deram conta dos excessos. A Itália continua a existir, apesar de Berlusconi.

ÉPOCA - O senhor está confiante com a junção Merkozy (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel) e a ascensão dos tecnocratas, como Mario Monti como primeiro ministro da Itália?

Eco - Se não há outra forma de governar a zona do Euro, o que fazer? Merkel tem o encargo, mas também sofre pressões em seu país, para que deixe de apoiar países em dificuldades. A ascensão de Monti marca a chegada dos tecnocratas ao poder. E de fato é hora de tomar medidas duras e impopulares que só tecnocratas como Monti, que não se preocupa com eleição, podem tomar, como o corte nas aposentadorias e outros privilégios.

ÉPOCA - O que o senhor faz no tempo livre?

Eco - Coleciono livros e ouço música pela internet. Tenho encontrado ótimas rádios virtuais. Estou encantado com uma emissora que só transmite música coral. Eu toco flauta doce (mostra cinco flautas de variados tamanhos), mas não tenho tido tempo para praticar. Gosto de brincar com meus netos, uma menina e um menino.

ÉPOCA - Os 80 anos também são uma ocasião para pensar na cidade natal. Como é sua ligação com Alessandria?

Eco - Não é difícil voltar para lá, porque Alessandria fica a uns 100 quilômetros de Milão. Aliás foi um dos motivos que escolhi morar por aqui: é perto de Bolonha e de Alessandria. Quando volto, sou recebido como uma celebridade. Eu e o chapéu Borsalino, somos produção de Alessandria! Reencontro velhos amigos no clube da cidade, sou homenageado, bato muito papo. Não tenho mais parentes próximos. É sempre emocionante.
(in revista "Época", 26 Fevereiro 2014)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Júlio Isidro

Hoje foi uma tarde em cheio. Desloquei-me aos estúdios da RTP para gravar uma conversa com o Júlio Isidro, cuja amizade está prestes a completar 25 anos, imaginem! A 1ª parte foi preenchida com o realizador José Fonseca e Costa e depois foi a minha vez de me sentar ao lado do Júlio, a relembrar tempos inesquecíveis.
O Júlio lançou-me no mercado da música, no dia em que me convidou para integrar a banda de cantores residentes do Regresso ao Passado, num tempo em que eu mais não era do que uma cantora amadora, a trabalhar como assistente de redacção numa revista e depois como estudante universitária de Turismo. Sim, repito, foi por causa do Júlio que me tornei cantora profissional, desde o fim de 1989, e que fui cantando, como cigarra, em todos estes anos.
O programa "INESQUECÍVEL" (RTP Memória) irá para o ar no dia 2 de Fevereiro.
Comigo levei alguns objectos relevantes nestas bodas de prata e muito ficou por dizer, como, aliás, é próprio das lides televisivas: os minutos contados, as conversas estonteantes e o tempo, que acaba inevitavelmente por  voar. O meu velho amigo Júlio organizou uma selecção de imagens que contemplou vários programas e ainda houve tempo para referir pessoas que me são queridas e promover boa parte do meu trabalho, sobretudo a saída do romance de fantasia "A Ilha de Melquisedech", que o Júlio já imagina em versão cinematográfica "lá fora!" (pois claro...gnomos? faunos? ciclopes, Magia? Batalhas? Cenas passadas em vários pontos do planeta? Efeitos especiais? cenários paradisíacos? Já chega a utopia que o próprio livro contém). É preciso tempo, sim, e o tempo não me intimida. Nunca intimidou. Brinco com ele.
Aqui fica a minha gratidão para com um profissional da televisão que tem um lugar incontestável como autor, apresentador e entrevistador na televisão e não só. E foi um prazer privar como Fonseca e Costa e muito divertido partilhar com ele o entusiasmo pelo seu novo carro, um Toyota IQ, dentro do qual se despediu de mim junto à portaria da RTP, com um aceno e uma gargalhada cúmplice.
Dali, ainda bem penteada e maquilhada, sob a tarde de chuva ininterrupta, segui para a minha editora, a fim de assinar (aliás escrever dedicatória em) duas dezenas de exemplares para figuras importantes na rádio, televisão e imprensa.
Tudo teria sido bem mais complicado se não tivesse contado com o apoio logístico do meu marido, a quem roubei o dia. Espero que ele me perdoe e espero, sobretudo, que tenha sido por uma boa causa.
É muito bom contarmos com o apoio dos outros. Que seria de nós sem Os Outros?

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Patrícia Reis



A Egoísta, que editou durante 13 anos, foi suspensa ou acabou?
O mandato desta administração da Estoril-Sol, que é a proprietária da revista, terminou. Foi-me dito em Novembro para suspender todos os pedidos de colaboração para a edição de Março, que seria a primeira deste ano. O que a próxima administração vai decidir não sei.
Qual é o balanço?
A queixa é muito ‘tuga’, mas eu não gosto nada. Não penso ‘ai Jesus que terminou a Egoísta!’. Penso que fizemos 50 edições com coisas maravilhosas e foi uma experiência magnífica para todas as pessoas que tiveram o privilégio de participar. A Egoísta foi a revista mais premiada da Europa, esteve no Louvre, foi premiada em tudo o que é sítio. E demos trabalho a fotógrafos e a autores, alguns consagrados, outros que vieram a sê-lo. Fizemos uma publicação completamente distinta e fizemos escola. Quando propus uma revista temática diziam que era maluca.
Tem algum projecto para substituir o espaço que a Egoísta preenchia?
Tenho que ter porque tenho uma empresa no mercado, o ateliê 004. Se não estiver a funcionar não vivo. A ideia de que a Egoísta era a base de sustento é errada. Nós fazíamos e fazemos, felizmente, muito mais coisas. Sites, exposições, stands, eventos, imagens corporativas. É um ateliê de design, de ideias e de conteúdos. Adoro trabalhar e sempre fiz coisas muito variadas. Continuo a editar a Portfolio, que é a revista da Fundação Eugénio de Almeida, onde faço a cada ano uma grande entrevista. Fazer entrevistas é das coisas de que tenho mais saudades no jornalismo. Há vida para além da Egoísta.
Mas foi o grande projecto da sua vida?
Não. O grande projecto da minha vida são os meus filhos. Não é uma revista, caramba!
Como é que vocês conseguiam coisas como retratos do Lucien Freud?
Comprando. Tínhamos um orçamento editorial que era gerido à pinça e que foi sendo esmagado a cada ano. Muitas vezes fizeram-se omeletas com a película que separa o ovo da casca. Mas fizeram-se.
A revista custava 17,5 euros, mas é impossível que isso pagasse o custo real. Era um projecto de luxo?
Foi pensada para ser uma revista de culto. Não é uma publicação de índole comercial. É um veículo de comunicação e marketing de um grande grupo empresarial cujo core business é o jogo. A Lei do Jogo estipula que qualquer casino é obrigado a aplicar parte das suas receitas em actividades culturais. Entre outras coisas, a Estoril-Sol optou por ter uma publicação que reflectisse os valores do grupo e que fizesse algum serviço público.
Como é que asseguravam a qualidade gráfica e de impressão, que são imagens de marca da revista?
Trabalhando com os melhores designers do mundo e com a melhor gráfica do mundo, a Norprint, em Santo Tirso. Por cada ideia estapafúrdia que eu tivesse eles diziam sempre: ‘Se tem que ser feito vamos fazer’. Estou-lhes extremamente agradecida. Fizemos uma revista em que a capa só se via depois de ir ao microondas! Tiveram que fazer pesquisa com tintas. E muitas vezes perdemos todos dinheiro com isto.
Ainda tem carteira de jornalista. Gostava de voltar aos jornais?
A maneira como vejo o mundo é de jornalista. Faço parte da geração d’ O Independente e isso fica connosco. Mas passaram-se 26 anos desde que comecei. O jornalismo hoje é outra coisa.
Está diferente em que sentido?
Os jornais agora são geridos com uma folha de Excel, tudo tem que ser rentável. Quando entrei para O Independente fiz a tarimba toda e estive dois anos até assinar um texto. Agora, um miúdo entra num jornal, assina na primeira semana, mas está numa redacção onde os jornalistas mais velhos foram despedidos por serem caros. E as redacções ficaram sem memória. E há também a ideia de que os leitores não gostam de textos longos. Não gostam se forem maus!
A redacção de O Independente, onde começou, também era muito jovem...
Sim, com excepção da Helena Sanches Osório, mas tínhamos um objectivo e um líder, o Paulo Portas, o melhor director de jornal que tive. Ele tinha um plano.
Qual era o plano?
Derrubar o Cavaco e ganhar ao Expresso. Queríamos mudar o mundo e o jornalismo. Éramos a ‘presstroika’.
Como é que entrou?
Vi um anúncio, fiz provas e fui a uma entrevista com o Miguel Esteves Cardoso. A Inês Pedrosa assistiu e eu só respondia: ‘Já sei’. Estava nervosíssima. Quando o Miguel disse: ‘Esta não porque é muito já sei’, a Inês respondeu-lhe: ‘Esta sim por isso, não esteve aqui a lamber-te as botas’.
Qual foi o trabalho em jornais mais importante que fez?
Foi a última coisa que fiz para O Independente, em que estive presa na cadeia de Tires durante 20 dias, sem que ninguém lá dentro soubesse que eu era jornalista. Viver num pavilhão de uma prisão com 121 mulheres, sete chuveiros, sete buracos, que não havia sanitas, é uma experiência que muda a vida. Em vez de veres o copo meio cheio ou meio vazio, dás graças por teres um copo.
Patrícia Reis
Editora
Começou n’ O Independente com 16 anos e passou pela redacção do Expresso, da Marie Claire e da Elle. Participou na preparação da Expo-98 e foi produtora do programa Sexualidades, de Júlio Machado Vaz. Criou o conceito da revista Egoísta e vendeu-o à Estoril-Sol. Dirige um ateliê. Tem 42 anos, é escritora e jornalista ‘para sempre’.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Patrícia Reis



Não tem paciência para essas «merdas» da supermulher multidisciplinar.  Usa Nuno Júdice para demonstrar que homens e mulheres podem ser pais, escritores, diretores de revistas e giros (acrescentamos nós). Acha as estrelinhas da crítica injustas e que um primeiro livro pode ser maravilhoso como um filho, ainda que nasça frágil e com cara de joelho. Se quiserem boas ideias, falem com Patrícia Reis. Os orçamentos, ao contrário dos almoços, são grátis.

As críticas que possam ser feitas aos seus livros ainda a preocupam? Qual o papel que acha que a crítica literária ocupa nos dias de hoje?
As críticas nunca me preocuparam. Não é para levar palmadinhas nas costas dos críticos que escrevo. Escrevo por necessidade. Se a crítica gostar, melhor. O papel do crítico é, nos dias que correm, uma orientação para algum público face ao excesso de oferta. No entanto, saliento que o facto de um livro ser lido apenas por um crítico num determinado órgão de comunicação social, atribuindo estrelas de qualidade, é um processo que considero injusto e altamente subjetivo. O livro pode cair nas mãos de um crítico que, de forma óbvia, nunca encontrará qualquer prazer no texto proposto. Injusto? Acontece.

Egoísta é uma espécie de epifenómeno do panorama editorial português, pela qualidade da forma e do conteúdo. Qual o segredo para, ao fim de todo este tempo, continuar com o dinamismo que vemos?
O segredo é, como todos, segredo, logo ficará comigo. O que posso dizer é que, felizmente, temos um proprietário, a Estoril Sol, que nos acolhe com entusiasmo e participa nesta aventura, ao mesmo tempo que promove três prémios literários por ano: Fernando Namora, Agustina Bessa-Luís, Grande Prémio das Correntes d’Escritas. Se considerarmos este aspeto de apoio à cultura e ao incentivo à Literatura especialmente, é fácil de perceber que é um privilégio. Nada seria possível, ao fim de 11 anos de edições, sem a excelente equipa do atelier 004, que, desde o início, assegura as questões editoriais, escolha de artistas, de autores, design e paginação.

Qual a estratégia para ser empresária, mãe, escritora, editora de uma revista, blogger, entre outros?
A estratégia está em saber desligar quando é preciso, ter uma organização muito pragmática, não entrar em pânico e levar o cão à rua. Vocês também perguntarão aos escritores homens como é que se organizam a partir das «potenciais desventuras ou pesos» da paternidade? Nesse caso: uso a mesma estratégia que Nuno Júdice, por exemplo, usa para ser professor universitário, pai, avô, escritor, diretor de uma revista e ensaísta.

Se um dia criar uma editora, que tipo de livros vai querer publicar?
Se um dia criar uma editora será a maior surpresa de todas, por isso vamos deixar isso para tempos de vacas mais gordas, pode ser?

Quais as maiores dificuldades que um autor sente para publicar um primeiro livro?
Um principiante precisa de ter uma história, de a escrever de forma eficaz, de conseguir chegar a uma editora e de cativar um editor que se disponha a investir num desconhecido. Um autor é um investimento a longo prazo. Um primeiro livro é sempre uma espécie de filho que nasce antes do tempo, com algumas maleitas, com algumas fragilidades, mas pode ser maravilhoso como é próprio dos filhos.

O que podemos encontrar em Por Este Mundo Acima que ainda não vimos nos outros?
Deixei a pele neste livro. Foram quase quatro anos a escrever e a reescrever. Cortei muitas páginas, sempre a pensar na ideia do «osso do texto» de que falava o José Cardoso Pires. Não foi um processo fácil. O que se encontra neste livro é, porventura, uma evolução, outra maturidade. No entanto, tenho de reconhecer que todos os livros que escrevo são sobre o Bem e o Mal e sobre pessoas. O resto não me interessa.

A música parece muito presente no seu quotidiano. Qual a importância dela no seu processo criativo?
Não vivo sem música. Faço tudo ao som de qualquer coisa e não tenho preconceitos: gosto de fado, de rock, de lounge, de pop, de música clássica, de ópera... Para escrever há um disco que é quase uma fatalidade: A melody at night with you de Keith Jarrett.

Alguém se faz escritor num curso de escrita criativa?
Ninguém. O que as pessoas podem assimilar numa oficina de escrita é a capacidade maior ou menor para contar histórias, para usar a linguagem de forma diferenciada. Ao mesmo tempo, uma oficina de escrita pode ser uma excelente forma de partilhar textos, e a mais-valia está nessa partilha. Um escritor não se fabrica. Não se junta água e agita e PUM: eis um escritor. Da mesma forma que não há grandes romancistas com 20 anos. A maioria dos romancistas de que gosto têm todos mais de 50 anos ou andam por aí. É preciso ter uma vida para se ser escritor. Ao mesmo tempo, tenho quase a certeza de que não podemos decidir ser escritores: ou somos ou não somos, mesmo que não cheguemos a publicar no mercado tradicional.

Como é que um escritor vive o papel de jurado num prémio literário como o das Correntes D’Escritas?
Com angústia, com dificuldade e, ao fim de tantos anos, com algum à-vontade. É sempre difícil decidir, geralmente o número de candidatos é grande, e, felizmente, temos literatura e poesia muito boa. A escolha é o mais complexo, mas acabamos sempre por chegar a um entendimento que parte das premissas do regulamento do prémio.

Que palavra já não consegue ouvir?
Crise.

Qual o seu maior ódio de estimação?
Não tenho ódios, tenho mais que fazer do que perder o meu tempo com merdas. Aliás, acho que vamos todos morrer, não é? Não sabendo quando, optei por gastar as minhas energias apenas nas pessoas e nas coisas de que gosto. Egoísta? Como queiram. Depois dos 40 anos já não preciso da aprovação de ninguém, e odiar deve ser uma trabalheira enorme.

Se pudesse fazer uma pergunta ao secretário de Estado da Cultura, qual seria?
Felizmente posso fazer as perguntas que entender. Tenho uma boa relação com o Francisco José Viegas há muito tempo e quando penso nele, confesso, nem me lembro que «está» SEC.

O novo Acordo Ortográfico é um erro? Porquê?
Não é um bom acordo, gastou-se uma fortuna, as ideias iniciais não podem ser cumpridas. Uniformizar não faz qualquer sentido. Por outro lado, a ideia de que os manuais escolares farão com que as novas gerações partilhem de um património comum tem graça, mas um menino brasileiro nunca utilizará o idioma, do ponto de vista gramatical, da mesma forma que um angolano, moçambicano ou português. É bom saber que o português possui geografias distintas e é, por isso, mais rico.

Dê-nos uma boa ideia para o setor editorial português.
Então? Eu tenho uma empresa no mercado, se tiver uma ou mais ideias vou vendê-las, não acham? Faz parte do meu valor de mercado☺.

Que pergunta não fizemos e deveríamos ter feito?
Porque é que um texto deve ser lido em voz alta? A resposta é simples: ajuda a editar e a apurar as arestas do texto. 

©Daniel Mordzinski

Patrícia Reis nasceu em 1970. Começou a sua carreira jornalística em 1988 no semanário O Independente, passou pela revista Sábado e realizou um estágio na revista norte-americana Time, em Nova Iorque. De volta a Portugal, foi convidada para o semanário Expresso, fez a produção do programa de televisão Sexualidades, trabalhou na revista Marie Claire, na Elle e nos projetos especiais do diário Público. Escreveu para a Expo ‘98 o livro sobre a exposição de Paris 1989, um livro sobre o Pavilhão de Portugal e um sobre os espaços públicos do recinto da mesma exposição. Escreveu a curta biografia de Vasco Santana e o romance fotográfico Beija-me (2006), em coautoria com João Vilhena, a novela Cruz das Almas (2004) e os romances Amor em Segunda Mão (2006), Morder-te o Coração(2007), que integrou a lista de 50 livros finalistas do prémio Portugal Telecom de Literatura, No Silêncio de Deus (2008) e Antes de Ser Feliz (2009). O último romance de Patrícia Reis foi publicado em abril de 2011 pela Dom Quixote e intitula-se Por Este Mundo acima.