sexta-feira, 29 de abril de 2016

Dois irmãos

Entretidos a dispersar os cardumes, eu e o meu irmão trabalhávamos os músculos das pernas, sem saber; o nosso chapéu, a sombrinha, era mantermos a cabeça molhada todo o dia e, para isso, íamos ao banho constantemente. A praia era mesmo ali, a poucas centenas de metros do cais de abrigo, o que era perfeito para desafios a nado:
– Agora até ali ao «Rosinha»!
– Esse é qual? Não estou a ver…
(O meu irmão sempre foi míope e na praia, como retirava os fundos de garrafa, não via nada).
– Ali, aquela chata encarnada e azul! – Apontava eu – o último a chegar é um peixe podre!
Escalávamos rochas à caça de caranguejos e mexilhões – com canivete e tudo –, e, volta e meia, lá tínhamos um encontro com uma alforreca, um peixe-aranha ou um casalinho de namorados que aí tinha ido para estar à vontade, antes de virem uns putos desmancha-prazeres. Com imagens adequadas a maiores de 18, os pés escaqueirados pelas rochas ou a pele a arder, com a carícia das alforrecas, nem por isso ficámos traumatizados. Agora têm um pesadelo, metem-nos logo no psicólogo. 

(excerto do próximo livro, em pré-publicação)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Auto-liberdade

Reflexo de selfie, ao chegar a casa, antes de escrever isto.
No feriado que celebra a Liberdade fui caminhar. Estreei o boné das "Sisters", oferecido pela minha editora, Babel, na Feira do Livro do ano passado, e percorri a estrada, vestida com cores garridas e look desportivo, como se fosse uma desportista (nem quando pratiquei desporto fui desportista). Os pés conhecem a estrada de cor, permitem que a mente vá divagando entre o lançamento do próximo livro; as bodas de diamante recentes dos meus pais; um texto a escrever; o filme "O Último Tango em Paris", que vi ontem, pela primeira vez na minha vida; a audácia que pretendo conquistar na escrita. Pela primeira vez, também, sinto a sede de sair da zona de conforto, atrever-me a não travar o que pretendo contar ou fingir, como ficcionista, face ao medo quanto ao que os Outros irão pensar. Medo não será, antes respeito, mas não estou certa de haver grande diferença entre ambos. Liberdade também é isso: a rédea que damos a nós próprios. Estarei eu a menosprezar os leitores? Até que ponto estaremos presos entre os limites que há muito impusemos a nós mesmos?

Existem as flores


Papoila  encravada

Escrevo para dizer que escrevo.
Enquanto os cravos vermelhos são tudo
O que os olhos alcançam
por estes dias e eu,
Escondida em vida silvestre,
Continuo a abraçar papoilas
Cujo tom escarlate, salpicando os prados,
Sempre me lembrou a liberdade
mais verdadeira
Onde a natureza escuta os nossos gritos
E nos afaga a solidão
Com a doçura de um beijo molhado no vento.

Sim, são papoilas, os meus cravos.

Escrevo para dizer que escrevo.
Enquanto os salgueiros compõem a manta morta;
Húmus, folhas secas, cadáveres e raminhos,
Decomposição mal disfarçada,
Em festins e algazarras, encravada em ideais;
Dentes de leão na brisa caindo, desmembrados,
Sobre quatro décadas de terra que era fértil.

Escrevo para dizer que escrevo a liberdade.
Que a cada dia tentamos segurar
Como quem prende nos dedos uma rosa de espinhos…

Nada somos no silêncio
E é por isso que existem as flores.

(in Fora do Mundo, Poética Edições, 2014, p. 117) 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

60 anos - Bodas de Diamante

1974
1972
Entre o dia real de casamento (21 de Abril de 1956) e o dia de celebração (amanhã, dia 23 de Abril de 2016), fica este post, temperado pelo espanto e orgulho de ter os meus pais com saúde, felizmente, e juntos, ainda, ao fim de 60 anos de casamento. Não é para todos. Deixo aqui um texto que há-de ser adaptado, para integrar um qualquer livro, e que escrevi há tempos em honra de ambos pois, como sabem, o mar é elemento essencial na nossa vida. Os anos passam, mas ficam as recordações mais profundas.

OS ÁLBUNS DE FOTOGRAFIAS 

Depois de folhear os álbuns de fotografias dos meus pais, os velhos e pesados álbuns de Sesimbra, recebi muito mais do que esperava. Em princípio, pretendia apenas caçar as imagens preferidas e digitalizá-las, com a ajuda do Nanã, para construir o meu próprio inventário de recordações. 
Ao fim de duas tardes de trabalho em roda dessas fotografias, cujas cores, há muito perdidas, o Nanã ia recuperando, ficou a aceitação dos meus primeiros vinte anos de vida. Não foi somente o averiguar de memórias, mas sim a confirmação do passado. Quando, num curto espaço de tempo, nos tornamos observadores da nossa própria vida, revisitando o berço, as casas, as metamorfoses do corpo, tomamos consciência do lugar que ocupamos na nossa família. Hoje, com trinta e oito anos, revejo-a com olhos adultos e sorrio: afinal, não há ali nada de dramático, injusto, errado: são apenas vidas a ganhar forma, a transformar-se. A chegada e a partida de uns, os rostos de outros (demasiados) que se retiraram para sempre − não apenas da nossa vida, mas da deles: “Olha…”, digo, às imagens que me recordam as pessoas há muito desaparecidas: os padrinhos, os eternos amigos (que afinal não eram eternos), o avô, a avó, o outro avô, a outra avó, o cão, o outro cão, a saudade. Lugares e paisagens transfigurados (irremediavelmente perdidos), barcos que já não poderão levar-nos pelas águas de tantos verões. Filha de um oficial de marinha, encontro agora o verdadeiro espaço que esse elemento ocupou na nossa família. Vejo, com uma nitidez inventada, as inúmeras viagens a dois que os meus pais iam fazendo, entre filhos. Fomos crescendo, entregues a nós próprios, desenvolvendo um instinto de sobrevivência que, em parte, se foi manifestando sob a forma de egoísmo. Sei que eu e os meus irmãos (rapazes) saímos à minha mãe nas doses generosas desse traço de carácter, mas até nessa verdade encontro perdão. Conciliei-me com as viagens frequentes que os levavam para parte incerta. Pelo menos, assim eu as encarava, sob o olhar ingénuo da minha (pouca) idade. Afinal, eram dois. Um casal. É preciso tempo para se ser apenas dois. A minha mãe sempre bonita, sonora, franca, uma fortaleza elegante. O pai, insondável, meigo, silencioso, um rochedo no mar alto. Rochedo e fortaleza. O mar outra vez. Cinco filhos. A casa sempre cheia, em movimento e caos. Ruído, gritos, modas, queixumes, risos, portas que batem com estrondo. É preciso respirar, sair. Hoje, que há muito vivo longe da sua asa e os vejo a envelhecer, resta-me a nostalgia e compreendo, finalmente: às vezes, é preciso ser egoísta. Traumas? Alguns. Contudo, nenhum de nós foi enclausurado em quartos escuros, pelo contrário, crescemos com dias solarengos e arejados, correndo pelos campos, ou navegando rumo ao azul escuro e límpido. Não raro se fecharam os olhos, muitas regras se quebraram. Caímos, chorámos, aprendemos. Fomos fortes, sempre que nos levantámos. Crescemos. Os meus pais ali, presentes, por entre os seus próprios temporais.
No segundo álbum, a infância abandona-me, até que me transformo numa mulher. Fiz as pazes com a minha ingenuidade e com os erros que se escondem por detrás das Veras que vou encontrando ao longo das páginas: intimidades e angústias que vou reconhecendo à medida que me cruzo com datas, vestidos, lugares. Afinal, eram tão poucos os anos, tão frágil a sabedoria. Namorados e amores que me acenam, mesmo sem aparecerem na fotografia, pois toda a vida que circunda aquele rectângulo de papel surge de repente, mostrando o invisível. É enternecedor assistir de perto a essa mudança desconcertante, veloz, desapiedada. Algures, por entre as fotografias, encontro o carácter fugidio do tempo. Assusto-me. À medida que avanço em direcção ao fim, concluo, com tristeza, que a vida nos foi separando e que as reportagens sempre atentas do pai se vão limitando ao casamento dos filhos, aos baptizados, ao aniversário de alguém que, em boa hora, serviu para reunir outra vez uma família que vai engordando e dispersando-se, como os ramos de uma árvore ao vento. Os momentos valiosos de cada um, que máquina nenhuma registou, são as folhas que ninguém conseguirá agarrar. Espalhámo-nos pelo país, os netos cresceram sem grandes cumplicidades entre eles. Nós, os irmãos, estamos prestes a ser avós, mal tendo ocasião de acompanhar a vida dos nossos sobrinhos. Tios, primos e sobrinhos ganharam para mim uma conotação natalícia…
É urgente que nos reunamos regularmente. Há que construir novos álbuns, prender os dias ao papel.
Fecho estes com orgulho, apesar de tudo.
Esta é a minha família. A minha vida.
(Verocas, Bracial, 14 de Abril de 08)

Beijos e abraços aos meus quatro irmãos e, em especial, aos meus queridos pais, nesta data digna de muitas celebrações.
mãe, 5 filhos e algumas visitas: a mesa tantas vezes cheia...

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Adeus, Prince

Aqui fica um pouco da sensualidade das produções de Prince. Queria o tema «When doves cry", o primeiro tema que conheci dele, há muitos, muitos anos, mas não consegui incorporar o video. Este video, também antigo, e em vez de Purple Rain, tão emblemático, será talvez uma forma menos triste de lhe dizer adeus.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Cabeças

«Fiquei de lá passar às oito. Quando cheguei a casa eram ainda cinco.
 Tinha a intenção de escrever um bocado, como tenho feito ultimamente, mas...zero. Peguei num livro interrompido do Hemingway e nem assim fui capaz de me concentrar; podia beber um whisky para descontrair, mas era demasiado cedo e ela não gosta do cheiro; acabei na minha passadeira: quatrocentas calorias. Apressei-me a cortar o cabelo no centro comercial, daquelas casas em que não vêem pessoas, só “cabeças”, tipo matadouro: cheguei a ouvi-las dizer:
– Ó Isabel, não me marques mais cabeças, que já tenho o Domingo cheio! Pra qu’é que serve a agenda, pá?!
Ou esta frase “riquinha”:
– Porra, pá, tantas cabeças por dia, uma pessoa té nem tem tempo de ir mijar! E estou cá cuma larica que nem me aguento!
Isto enquanto esfregava a minha. E com força, como se eu não a lavasse há uma semana.
– Estou a ser bruta? Você diga!
(Que sim, que estava a magoar um bocadinho).
– Ai, o senhor desculpe, mas é que aqui a gente ao fim de semana é isto.»
(ainda "em obras de (re) construção", mas para breve). 

sábado, 16 de abril de 2016

terça-feira, 12 de abril de 2016

Jogo de sombras

Ando a sentir-me qual Julien Carax, n' «A Sombra do Vento», de Carlos Ruíz Zafón, trabalhando durante o dia nos romances dos outros, e à noite no meu. Uma questão de equilíbrio, e sem a maldição da personagem de Zafón, graças a deus. Também não tão glamorosa ou encantatória, mas não se pode ter tudo.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Retoques

Há algo de extraordinário no poder de reconstrução que a escrita possui. Personagens há muito paralisadas em tempos e lugares, limitadas pelas acções e palavras que realizaram numa outra vida e que, saindo do baú, podem ser arejadas, dizer mais ou menos coisas, ter novas ideias e alegrias, outros receios e hesitações; mais uma oportunidade de se explicarem por palavras suas, distintas, já que houve ocasião de pensarem melhor, de amadurecer. Poderão agora encontrar-se com a família e os amigos, os vizinhos, os estranhos da avenida, que andaram na sua órbita; presenteá-los com novos diálogos, surpreendê-los, escolherem empreender uma viagem diferente, inventarem outras formas de se perder ou salvar, mesmo que o escritor lhes apresente os velhos obstáculos. De caneta na mão, numa tarde soalheira, o escritor vê o protagonista sair de casa e murmura,  Lá vai ele outra vez ao fim de tantos anos, por aquela rua... o que irá ele dizer hoje? - perguntando-se, O que diria ele, se o tivesse ido buscar numa noite de chuva...?
Quando é que um livro está terminado? Quando é que é definitivo?
Lembra-me aquela história do pintor que dá ainda os últimos retoques nos seus quadros já pendurados na sala de exposições...e já vendidos. Assim são alguns escritores.
© William Hogarth, Time Smoking a Picture (c. 1761, Metropolitan Museum)

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Jacob Collier

Este miúdo é adorável. Sigo-o desde 2012, quando o conheci numa versão multitrack do "Isn't She Lovely", de Stevie Wonder.
Finalmente vem aí o seu primeiro álbum de originais! E nome do mesmo faz todo o sentido: "In My Room". É tudo feito por ele, um enorme talento, genuíno, irresistível. Este miúdo vai longe. Ora escutem. Eu sou fã.