1974 |
1972 |
OS
ÁLBUNS DE FOTOGRAFIAS
Depois de folhear os álbuns de
fotografias dos meus pais, os velhos e pesados álbuns de Sesimbra, recebi muito
mais do que esperava. Em princípio, pretendia apenas caçar as imagens
preferidas e digitalizá-las, com a ajuda do Nanã, para construir o meu próprio
inventário de recordações.
Ao fim de duas tardes de trabalho em
roda dessas fotografias, cujas cores, há muito perdidas, o Nanã ia recuperando,
ficou a aceitação dos meus primeiros vinte anos de vida. Não foi somente o
averiguar de memórias, mas sim a confirmação
do passado. Quando, num curto espaço de tempo, nos tornamos observadores da
nossa própria vida, revisitando o berço, as casas, as metamorfoses do corpo,
tomamos consciência do lugar que ocupamos na nossa família. Hoje, com trinta e
oito anos, revejo-a com olhos adultos e sorrio: afinal, não há ali nada de
dramático, injusto, errado: são apenas vidas a ganhar forma, a transformar-se.
A chegada e a partida de uns, os rostos de outros (demasiados) que se retiraram
para sempre − não apenas da nossa vida, mas da deles: “Olha…”, digo, às imagens
que me recordam as pessoas há muito desaparecidas: os padrinhos, os eternos
amigos (que afinal não eram eternos), o avô, a avó, o outro avô, a outra avó, o
cão, o outro cão, a saudade. Lugares e paisagens transfigurados
(irremediavelmente perdidos), barcos que já não poderão levar-nos pelas águas
de tantos verões. Filha de um oficial de marinha, encontro agora o verdadeiro
espaço que esse elemento ocupou na nossa família. Vejo, com uma nitidez
inventada, as inúmeras viagens a dois que os meus pais iam fazendo, entre
filhos. Fomos crescendo, entregues a nós próprios, desenvolvendo um instinto de
sobrevivência que, em parte, se foi manifestando sob a forma de egoísmo. Sei
que eu e os meus irmãos (rapazes) saímos à minha mãe nas doses generosas desse
traço de carácter, mas até nessa verdade encontro perdão. Conciliei-me com as
viagens frequentes que os levavam para parte incerta. Pelo menos, assim eu as
encarava, sob o olhar ingénuo da minha (pouca) idade. Afinal, eram dois. Um
casal. É preciso tempo para se ser apenas dois. A minha mãe sempre bonita,
sonora, franca, uma fortaleza elegante. O pai, insondável, meigo, silencioso,
um rochedo no mar alto. Rochedo e fortaleza. O mar outra vez. Cinco filhos. A
casa sempre cheia, em movimento e caos. Ruído, gritos, modas, queixumes, risos,
portas que batem com estrondo. É preciso respirar, sair. Hoje, que há muito
vivo longe da sua asa e os vejo a envelhecer, resta-me a nostalgia e
compreendo, finalmente: às vezes, é preciso ser egoísta. Traumas? Alguns.
Contudo, nenhum de nós foi enclausurado em quartos escuros, pelo contrário,
crescemos com dias solarengos e arejados, correndo pelos campos, ou navegando
rumo ao azul escuro e límpido. Não raro se fecharam os olhos, muitas regras se
quebraram. Caímos, chorámos, aprendemos. Fomos fortes, sempre que nos
levantámos. Crescemos. Os meus pais ali, presentes, por entre os seus próprios
temporais.
No segundo álbum, a infância
abandona-me, até que me transformo numa mulher. Fiz as pazes com a minha
ingenuidade e com os erros que se escondem por detrás das Veras que vou
encontrando ao longo das páginas: intimidades e angústias que vou reconhecendo
à medida que me cruzo com datas, vestidos, lugares. Afinal, eram tão poucos os
anos, tão frágil a sabedoria. Namorados e amores que me acenam, mesmo sem
aparecerem na fotografia, pois toda a vida que circunda aquele rectângulo de
papel surge de repente, mostrando o invisível. É enternecedor assistir de perto
a essa mudança desconcertante, veloz, desapiedada. Algures, por entre as
fotografias, encontro o carácter fugidio do tempo. Assusto-me. À medida que
avanço em direcção ao fim, concluo, com tristeza, que a vida nos foi separando
e que as reportagens sempre atentas do pai se vão limitando ao casamento dos
filhos, aos baptizados, ao aniversário de alguém que, em boa hora, serviu para
reunir outra vez uma família que vai engordando e dispersando-se, como os ramos
de uma árvore ao vento. Os momentos valiosos de cada um, que máquina nenhuma
registou, são as folhas que ninguém conseguirá agarrar. Espalhámo-nos pelo
país, os netos cresceram sem grandes cumplicidades entre eles. Nós, os irmãos,
estamos prestes a ser avós, mal tendo ocasião de acompanhar a vida dos nossos
sobrinhos. Tios, primos e sobrinhos ganharam para mim uma conotação natalícia…
É urgente que nos reunamos
regularmente. Há que construir novos álbuns, prender os dias ao papel.
Fecho estes com orgulho, apesar de
tudo.
Esta é a minha família. A minha
vida.
(Verocas, Bracial, 14 de Abril de 08)
Beijos e abraços aos meus quatro irmãos e, em especial, aos meus queridos pais, nesta data digna de muitas celebrações.
mãe, 5 filhos e algumas visitas: a mesa tantas vezes cheia... |
Vera, tão bom ler este texto , com a toda a transparência que o Amor desperta . Estou encantada .Beijoooooooos
ResponderEliminarQuerida Mitucha! E eu encantada por ler-te aqui e encontrar-te nooos!
EliminarTão bom ter coisas boas e pessoas boas para recordar...
ResponderEliminarParabéns Amiga, pela família que tem e pela escrita!
Gostei muito de ler Vera...
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