sexta-feira, 8 de abril de 2016

Retoques

Há algo de extraordinário no poder de reconstrução que a escrita possui. Personagens há muito paralisadas em tempos e lugares, limitadas pelas acções e palavras que realizaram numa outra vida e que, saindo do baú, podem ser arejadas, dizer mais ou menos coisas, ter novas ideias e alegrias, outros receios e hesitações; mais uma oportunidade de se explicarem por palavras suas, distintas, já que houve ocasião de pensarem melhor, de amadurecer. Poderão agora encontrar-se com a família e os amigos, os vizinhos, os estranhos da avenida, que andaram na sua órbita; presenteá-los com novos diálogos, surpreendê-los, escolherem empreender uma viagem diferente, inventarem outras formas de se perder ou salvar, mesmo que o escritor lhes apresente os velhos obstáculos. De caneta na mão, numa tarde soalheira, o escritor vê o protagonista sair de casa e murmura,  Lá vai ele outra vez ao fim de tantos anos, por aquela rua... o que irá ele dizer hoje? - perguntando-se, O que diria ele, se o tivesse ido buscar numa noite de chuva...?
Quando é que um livro está terminado? Quando é que é definitivo?
Lembra-me aquela história do pintor que dá ainda os últimos retoques nos seus quadros já pendurados na sala de exposições...e já vendidos. Assim são alguns escritores.
© William Hogarth, Time Smoking a Picture (c. 1761, Metropolitan Museum)

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