sexta-feira, 20 de março de 2020

Covid-19


Olá, mãe

Tenho tanto para lhe contar, a mãe não imagina. Não, não é uma força de expressão, nem a mãe nem nós poderíamos, até há três meses, imaginar as nossas vidas transformadas assim.
Está a ver aquele novo automóvel que o Nanã me ofereceu? Eu andava tão contente por enfim poder sair daqui, a dar as minhas voltas, não era? Olhe, foram algumas semanas apenas, agora já não posso. Quase ninguém pode, sabe? Estamos em guerra com um bicho invisível que nos mata, veja lá. De repente, andamos unidos, a reinventar os dias, fechados em casa. E não é só cá, é na Europa inteira. E em muitos outros países. A mãe havia de ver a praça de S. Marcos agora, uma Veneza deserta, uma Itália que ninguém reconhece.
O mundo está infectado.
- Mas que horror, isso parece coisa de filme! - Ou de "fita", diria a mãe, mas olhe que é bem real e nem fazemos muitas fitas, deixámos os governantes algo espantados, pela forma como nos antecipámos às suas ordens, fechando-nos logo em casa. Houve quem antes disso levasse todo o papel higiénico das prateleiras mas pronto, alguém que não entendeu que este vírus ataca o sistema respiratório, e não o digestivo.
- Então e agora, o que é fazem todo o dia? - perguntará a mãe com o seu sentido prático, Olhe, muitos fazem teletrabalho, que as empresas mandaram todos para casa; outros, não podendo, fazem bolos, jardinagem, croché, jogam ao Stop, à Batalha Naval, até ping-pong ao parapeito, vi eu nas notícias; cantamos à janela, publicamos folhetins, usamos e abusamos das videochamadas - eu explico, mãe, é aquela coisa de falarmos uns com os outros a ver-se a cara, lembra-se? Pena não haver videochamadas para o céu, mas a mãe aí está bem, a salvo e segura, que aqui na terra estamos a tentar evitar o inferno.
O Pai é que não anda a ligar nenhuma, sabe? Continua a ir ao seu cafezinho, sem máscara nem luvas. Imagino que a mãe iria fazer o mesmo, e nós, filhos, lá teríamos de nos zangar consigo também. Enquanto lhe escrevo o mais provável é o café ter fechado, fecham tudo, é o que nos salva.
As suas lojas preferidas cerraram as portas. Mas quem precisa de uma saia ou de umas botas novas, de um colar ou carteira, de uma blusa ou de ir ao cabeleireiro, se as semanas se passam em casa? Nós, mulheres, vamos todas ficar com raízes, vai ser um horror, a mãe vai odiar. Mas é que muita coisa perdeu a razão de ser.
Quem está na maior são os cães. Veja lá que têm privilégios sobre nós, é uma das poucas desculpas para sair à rua e têm os donos sempre ao lado. Até vi quem passeasse o cão com um drone. Quando pensamos que vimos tudo. Eles dizem "animais de companhia", mas deviam dizer "cães", não acha? Ninguém passeia gatos nem periquitos nem gansos nem sapos.
Estamos a fazer das vísceras coração para sermos felizes e aguentarmos isto até ao fim. E a mãe vai ver, quando este bicho se for embora, ou quando tivermos uma armadura para nos defendermos, havemos de nos vingar com beijos e abraços, vai ser uma marmelada pegada, matar a fome com carícias, alguém há-de inventar um símbolo qualquer para festejarmos essa nova liberdade, se não forem cravos talvez sejam girassóis ou malmequeres.
Mas olhe, o planeta há muito que não estava tão limpo, até respira melhor. E é isso que nós queremos todos, que nós e os nossos continuem a poder respirar por aqui mais um bocadinho.

domingo, 1 de março de 2020

branco-pérola



Este pequeno texto não tem grande pretensão literária, pois assim anda o meu espírito nos últimos meses. Não estou preocupada. Culpa zero, ao contrário do que é em mim habitual. Como um cão vadio que salta o muro e sempre regressa a casa, para junto dos donos, assim anda a minha veia. E se não voltar, adoeceu de vez, apanhada por um vírus qualquer, foi atropelada ou alguém a levou, pouco importa. Escrever sempre foi uma necessidade. O que fazer quando não a sentimos, senão deixar de escrever? Poderiam apontar-me o paradoxo, enquanto me lêem, mas não me refiro a estas pequenas confissões, falo do resto, dar andamento ao que me aguarda. Os livros terão de esperar. Ao contrário do meu amor pelos cães, ando neste estranho desapego.
Continuo especialmente dedicada à casa e à jardinagem, mal pego num livro, muito menos na pena e não tenho pena alguma.
Para celebrar o aniversário deste blogue empoeirado, venho partilhar convosco um presente que recebi em Fevereiro. A maior parte das pessoas verá nas imagens apenas um automóvel. Um carro fofo, vá, bem ao gosto vintage. Sobretudo para as senhoras. O carro é um mimo, não se resiste. Para mais com tecto panorâmico e em tom pérola.
Acontece que eu não conduzia há quase quatro anos. Dependia por inteiro de terceiros para sair de casa sobre rodas, sendo que vivo num lugar bucólico, é certo, mas bem isolado.
Enfim recuperei a minha liberdade e tenho agora o melhor dos dois mundos. Embora com limitações devido aos problemas de visão, posso pegar em mim e no meu "paneleirinho", como lhe chama o meu marido com carinho, e livrá-lo da rota dos supermercados, da engomadoria e da farmácia; posso mandar fazer bainhas numas calças, pôr um fecho-éclair num casaco e despachar todas essas tarefas domésticas, que nada possuem de criativo mas que têm de ser feitas. E também posso ir aos viveiros comprar terra e adubos, vasos, plantas, flores e sementes, ir ao café, ver montras, passear pelas ruas, almoçar com amigas ou simplesmente percorrer os poucos quilómetros que me separaram do mar, só para lhe dizer bom-dia, ouvir a rebentação, pôr os pés na areia...
E tudo ao meu ritmo, como se fosse dona do tempo.
A Primavera está a chegar e os meus dias já começaram a florescer.
Estou tão feliz com o meu novo amigo. Nunca pensei abraçar um carro, mas foi o que fiz, quando me trouxe de regresso a casa, pela primeira vez. É bom poder ir e voltar. E Ficar é um verbo que tem agora todo um outro significado. Escolher, como verbo Auxiliar. Amanhã vou vadiar um bocadinho também. Pode ser que, pelo caminho, me cruze com a minha veia.