quarta-feira, 30 de junho de 2010

Rute Reimão

Estou fã desta ilustradora. Acho o seu trabalho MARAVILHOSO: as cores, as formas, as texturas, os materiais, o sentido poético, a sensibilidade, o bom gosto, a imaginação.
Senão, vejam...







(Revista "Pais&Filhos Julho 2009)
Para visitar o site da autora, espreitem aqui

terça-feira, 29 de junho de 2010

Rufus Capadoccia

Execução surpreendente de violoncelo, com dança, muito ritmo e imagem a preto e branco. Muito bom.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Prémio de ilustração

"O livro distinguido pela medalha Kate Greenaway de 2010 intitula-se Samuel e Saltitão (Harry and Hopper), e é a única das sete obras da ilustradora publicada em Portugal, pela Editorial Caminho.
O livro retrata o modo como um rapaz, Samuel, lida com a morte súbita do seu cão, Saltitão.
«Em Samuel e Saltitão, Freya Blackwood prima pelo uso da cor suave, da perspectiva, do espaço exterior e interior, para abordar de forma poderosa o relacionamento pai-filho e a morte de um animal de estimação muito amado», disse Margaret Pemberton, presidente do júri que na quinta-feira atribui o galardão.
Para a presidente do júri, o livro aborda um tema delicado para as crianças que é «tratado com grande mestria, e as emoções de Samuel e as suas recordações de Saltitão são expressas visualmente com grande eficácia».
O prémio agora atribuído foi instituído no Reino Unido em 1955 em honra de Kate Greenaway, ilustradora infantil do século XIX, e é entregue anualmente a um livro «notável do ponto de vista da ilustração para crianças».
Freya Blackwood nasceu em Edimburgo (Escócia) em 1975, mas cresceu no estado australiano da Nova Gales do Sul, na cidade de Orange, onde reside."
(artigo retirado do Jornal "SOL", 25 Junho)

domingo, 27 de junho de 2010

O meu primeiro Moleskine

Com apenas cinco horas de sono, acordei de um salto, às oito, como criança na manhã de Natal. Era o dia da minha primeira aula de desenho com a Ana Salta, minha aluna no curso de Escrita Criativa. A partir deste dia, serei também eu sua aluna, numa curiosa troca de papéis, no gosto de quem partilha a sua arte e sabedoria. Acabámos num café em Ribamar, postámo-nos com os nossos muitos tarecos junto à janela, para usufruirmos da luz solar, e juntámos duas mesas. Veio Coca-cola, café, pastel de nata. A conversa foi boa, muito boa, pois não era só desenho que a Ana tinha para me ensinar. Senti a paixão com que falava dos tempos antigos na cidade de Lisboa, desde a ocupação árabe à vida quotidiana no bairro da Mouraria, no Martim Moniz, no bairro de Sant’ Ana. Pediu-me para pôr as mãos em concha e colocou-me, à vez, preciosidades nas mãos.

     – Não olhe, Vera. Sem ver, diga-me o que lhe parece que tem aí.

Recorri ao tacto para descobrir o peso, a forma, a textura, a temperatura. No primeiro caso, tratava-se de uma pedra do período Neolítico; no segundo, de uma lapiseira em prata lavrada, talvez do séc. XIX, ou mesmo mais antiga. Como fizera na infância, desenhei a minha mão – não espalmada, de dedos abertos – mas com a pose de quem segura um instrumento de escrita. Perguntou-me se tinha irmãos, se eles sabiam desenhar, tentando entender esta minha frustração. Confirmei as suas suspeitas: sou a enjeitada, no meio de vários irmãos com um imenso talento para desenhar. Cada um com as suas artes, cada um com as suas bênçãos. Cada um com o seu fardo. O meu é o de não ver e o de ter mãos que não me obedecem. Aprendi tanto nesta primeira aula. Aprendi a textura e a intensidade de vários lápis de grafite e carvão. Aprendi os diferentes modos de segurá-los, consoante o que desejamos fazer com eles. Antes, a meu ver, um lápis era um lápis e segurava-o como quem escreve. Engano meu. Existe todo um universo de traços, de força, de tensão, de técnicas. Pus os lápis “a patinar”, rodopiando deitados, erguendo-se, até à ponta dos patins. Aprendi que o verde daquela chávena estava a absorver todas as cores excepto a sua e que o azul dos meus olhos se reflectia nela, alterando-a. Aprendi que tudo está em diálogo com tudo, numa interacção constante, que vai transformando as coisas. Tive consciência de que acontecem milhares de encontros entre seres, objectos e elementos naturais, todos os dias, enquanto existe a luz para os captar. Fui avisada de que, de agora em diante, irei começar a olhar para o que me rodeia de uma forma diferente. O tempo voou, de tão bem passado.
Depois do almoço, fui fazer a minha caminhada habitual. Dei por mim a admirar formas e cores com outros olhos, sim, com os olhos de quem tem já esperança de um dia conseguir captar formas e cores com traços estilizados e seguros. Suspirei de ansiedade, na antecipação da próxima aula.
Obrigada, Ana: pelos presentes, pelo seu tempo investido em mim, pela sua generosidade. Espero vir a tornar-me numa boa aprendiza e merecer a sua dedicação...e o meu primeiro Moleskine.
NOTA - roubei a imagem do diário gráfico aqui

Viajar, ler, sonhar

Um artigo vocacionado para quem gosta de viajar, ler e sonhar. Textos de Filipa Melo. Artigo retirado da Revista LER. Podem vê-lo aqui. Obrigada, Luís Galego.

sábado, 26 de junho de 2010

Eu e o desenho

Nasci muito míope. O universo das distâncias foi sempre uma paisagem difusa, impossível de alcançar. Criei uma relação de gratidão e intimidade com tudo em que sou capaz de tocar. O que é longínquo é para mim um mistério e o pormenor quase tem de pousar-me no colo, para que eu o consiga agarrar. Vejo o mundo com os olhos que tenho, inundados de fantasmas translúcidos, manchas, sombras, cenários como que mergulhados em azeite. Na infância, roçava ao de leve a bochecha na folha de papel e fazia desenhos com todas as cores das minhas canetas de feltro Carioca ou Molin: montes verdes e floridos, meninas com roupas coloridas, cães, moinhos, árvores, grandes borboletas, uma fita de céu azul-turquesa com nuvens de algodão doce, muitos pássaros e sóis sempre sorridentes. À falta de canetas, recorria ao lápis de carvão. Caras de palhaços, sapos, rostos sardentos, automóveis, cidades modestas e muitos canteiros de flores.
O tempo obrigou-me a crescer e a manter-me as mãos limpas. Deixei de andar com elas constantemente manchadas de tinta colorida. Fui guardando as canetas de feltro na gaveta, substituindo-as por régua, compasso, esquadro, tira-linhas, canetas Rotring, como se o mundo me obrigasse a parar de desenhá-lo com linhas hesitantes e livres, em troca de traços em linha recta e ponto de fuga. Então fugi. Recordo umas férias do verão – em que ensaiei ainda recuperar a liberdade de um tempo que me escapava – com a ajuda de folhas grossas A3, onde reproduzia os quadros de casa com as minhas aguarelas: retratos, paisagens outonais, vales verdejantes, jarras de flores, poentes tocando as águas do mar. Eram esforços sofríveis, patéticos, que me mantinham num universo ingénuo e anacrónico, na tentativa inconsciente de não crescer.
Até que desisti, crescendo. E ao fazê-lo, guardei para sempre os lápis de cor, as canetas ed feltro, os lápis de cera e as aguarelas. O mundo ilustrou-se com caneta esferográfica, sem bonecos. Algumas das disciplinas do curso da faculdade obrigaram-me a desenhar um pouco: ogivas, colunas, frontões, igrejas, ameias e merlões de castelos, parras e folhas de oliveira. Comprovei que não sabia desenhar. Jogando “Pictionary”, já adulta, constatei que as ideias eram válidas, mas que os meus parceiros de jogo tinham dificuldade em descodificar os meus traços desajeitados.
Desde então que suspiro pela mão capaz de contar uma história sem palavras. Tal como na música, em que senti a urgência de aprender harmonia para poder comunicar com os músicos e falar com eles a mesma linguagem, também na escrita de histórias infantis lamento agora não poder desenhar, com o mínimo de dignidade, aquilo que serão um dia as ilustrações.
Esse é um sonho, talvez um projecto: poder transmitir, a um ilustrador, aquilo que pretendo. Um dia até (quem sabe?) talvez consiga dar vida aos universos que tenho dentro de mim. Nesse dia, os meus desenhos irão caminhar de mãos dadas com as minhas palavras, numa fraternidade feliz.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Escrever

Durante uns dias perdi a vontade de escrever. Talvez a vontade estivesse de luto, por Saramago. Se escrevemos é, em grande parte, graças aos livros que lemos. Não se escreve sem ler. Escrevemos como pensamos e o pensamento vai-se formando através de muitas leituras. Escrever não é fruto de uma inspiração divina, mas das interrogações que nascem dentro de nós; do fio dos nossos dias, que vamos vivendo; de uma urgência em traduzir em palavras as histórias que desejamos partilhar com os outros. Histórias, personagens, reflexões, valores, lugares, tempos, recordações, fantasias. Escrever é também fruto de muito trabalho. Um prazer que se renova, como um imenso pomar. Escrevemos para que gostem de nós, para que provem o sumo do que somos capazes, como crianças impacientes que puxam pela manga dos outros, exclamando: "Vejam! Vejam o que eu sou capaz de fazer!". Escrevemos, porque somos vaidosos. Todos os artistas são vaidosos. Ninguém deseja escrever eternamente para a gaveta, da mesma forma que uma bailarina se cansa do espelho de uma sala de ensaios e sonha pisar os grandes palcos do mundo, com a leveza dos seus pés. Vejam o que somos capazes de fazer.
Escrevemos, porque há uma qualquer força que nos empurra para as palavras e é preciso que as saibamos segurar quando ela nos procura; ter o músculo bem tonificado; merecer a companhia inesperada da inspiração.
Saramago, com a textura única dos seus livros, contribuiu para que eu fosse tecendo a minha própria textura: um tecido translúcido e macio, de recantos enrugados e frágeis, que vou aprendendo a serzir. Terei saudades dos livros que não chegou a escrever. Os outros, os que ficaram, serão como familiares queridos que visitamos ao Domingo, em encontros festivos que enchem os nossos álbuns de saudosas memórias.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Adeus, Saramago

Que ano este, cheio de morte. Tão próximo da partida de João Aguiar, deixa-nos também José Saramago, sem nos dar tempo a que possamos recompor-nos da tristeza tão recente ainda.
As minhas primeiras leituras de Saramago foram a "História do Cerco de Lisboa" e "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Fez-me muita companhia durante a gravidez do Hugo, em que, na preguiça do verão, com uma barriga imensa, li "A Jangada de Pedra" e o "Memorial do Convento". Nunca me esqueci de Baltasar e de Blimunda, dos nomes Sete Sóis e Sete Luas, que me acompanham até hoje. Tornei a Saramago com os "Cadernos de Lanzarote", cuja ilha tive ocasião de visitar e o "Evangelho Segundo Jesus Cristo", que confirmaram a minha admiração pela sua escrita. Mais tarde, uma colega da faculdade (obrigada, Isabel) emprestou-me o "Homem Duplicado" e cheguei a ter um pesadelo durante a leitura do "Ensaio Sobre a Cegueira", que me revelou uma outra face do escritor de quem continuei a ser admiradora incondicional.
Triste e ironicamente, o livro "As Intermitências da Morte" foi o mais recentemente devorado, com prazer. Seguir-se-ão outros, pois muito há ainda para ler e reler de e sobre Saramago. Pena que a Morte não tenha desistido de trabalhar. Pena que ande a levar pessoas tão grandes e a deixar cá gente tão pequena, que em nada engrandece o mundo. Pena.
Estou triste e revoltada com o critério da morte.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

desenhando o mapa

As versões da Vanessa vão-me chegando via email. O mapa do livro "A Ilha de Melquisedech" vai tomando forma e está quase pronto. Nunca vi a minha ilustradora, que já fez uma capa maravilhosa, mas é alguém que, lendo o que escrevo (tanto o livro como as muitas indicações), conseguiu tornar visível o lugar que eu resolvi inventar na minha cabeça. É uma boa sensação, ver o arvoredo, as encostas escarpadas, os rios, as casas, estradas e pontes...de um lugar que, até agora, existia apenas dentro de mim.
Faltam poucos meses até poder repartir este lugar e esta história com os meus queridos leitores.
Obrigada, Vanessa, por ser tão talentosa e incansável.
Gostava tanto de colocar aqui as suas ilustrações...mas ainda não me deixam! :)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Hoje

Comecei o dia com o carteiro a tocar à porta, para me entregar dois livros. É bom começar o dia assim, a receber livros da mão de um homenzinho de cara vermelha e enrugada pelo sol, capacete prateado e uniforme dos correios, que, no seu ar castiço, me traz muita e sofisticada literatura. Desequilibrou-se e quase caíu da mota, assustado com o Serra da Estrela que não parava de ladrar, com a fúria de quem odeia capacetes. A cabeçorra lupina, junto ao muro abaulado, apareceu-lhe de repente, enorme, a poucos centímetros da mão que segurava a caneta, para a dona assinar. A "D.Vera", a dona do cão. Chegam-me contos de Miguel Miranda, vindos do Porto, reunidos num volume da Campo das Letras, com dedicatória. Chegam-me outros contos, de Eduardo Halfón, "O Anjo Literário", que andavam esquecidos, perdidos, nas mãos de uma prima, e que recuperei hoje, com alívio. Odeio perder livros, ter de substituí-los. Como se não bastasse todos os outros que ainda queremos comprar, e tantos que jamais teremos. Pronto, voltou às mãos da dona,  poderei levá-lo na próxima sessão com os meus alunos, na Ericeira. Tenho textos deles para ler, que me chegam por email. O nosso carro à porta, com um furo no pneu da frente. Os foguetes do Santo António calaram-se. Dia 14, anos do meu pai. Telefonar, urgente. Dia de sair desta paisagem e ir a Lisboa, para o caos. Lançamento do novo disco do Paulo Gonzo, à noite, no Tivoli. É preciso ir, antes que me transforme numa flor silvestre, numa árvore, numa pedra.

domingo, 13 de junho de 2010

Desenhar, eu?

Tenho uma aluna maravilhosa, de idade já respeitável, que se ofereceu para me ensinar a desenhar, em troca do que tenho partilhado no curso de escrita, que está a decorrer na Ericeira . E que bem que ela desenha: de forma tão simples, uma ternura. Que belos são os seus olhos, que vêem assim. Não seria estupendo aprender essa arte e conseguir, um dia, ilustrar os meus próprios contos, ilustrar, até, a minha vida, como sempre fiz com as palavras? Será que eu consigo? Será que é verdade que todos podem fazê-lo, se aprenderem? Será que eu aprendo...? Será que me atrevo a aceitar o desafio e uma oferta tão generosa? Só a ideia já me reconforta. Uma luz inquieta, um sonho a rodopiar à volta do meu coração, como um diabrete atrevido. Obrigada, Ana, só por isso. Para já.
Ilustração: "da minha janela com andorinhas do mar", ANA CAMPOGRANDE, blog da autora aqui

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Blog

O sitemeter informa-me que hoje houve uma alma que esteve cerca de 43 minutos na companhia do meu blog, traduzido em inglês...no Senegal! É curioso. A média diária de visitas está a engordar. Obrigada a todos. Quando chegar às 10 mil visitas, tenho de encontrar uma forma de festejarmos.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Mia coutei-me

Passei toda manhã mia coutando contos e agora estou assim, lhe fazendo homenagem, em surripiante estilo com meus desacostumados hábitos. Acho que vou passar o resto do dia brincando de Mia, sozinha pela casa. Mas miando baixinho, que as copiações de escrita são vergonhas que nem é bom contar. Finjo que mio e vou-me miando que nem criança. Ser crescido: é ter este lado de ficar acriançando a velha existência, na teimosia de se não querer anciar. Anseios? Tenho muitos. Mas receio por meus desreceios. Já dizia minha avó Falávia Palavrosa, que subiu aos céus como quem vai-ali e já-volta:
- Faz amigação com o tempo, Verdadinha. Não é bom tê-lo como desamigo.
Já tratei de comer o barulho das asas dos pássaros, não vá a distância do tempo apequenar-se e embocadinhar-me os passos. Já escutei o azul-azulado do céu, para não cair no centro da terra antes da hora chegada. Já toquei no cinzento horizonte de hoje: amanhã já está em minha mão, quando o mundo se mexer.
(nascido hoje, agorinha mesmo, na inspiração trazida pela leitura dos contos "Estórias Abensonhadas")
NOTA - para os meus alunos verem que não é preciso deitar as mãos aos céus em desespero, quando eu lhes pedir, depois da aula dedicada ao ESTILO, que escrevam em casa um texto "à Mia". Hehehe...

terça-feira, 8 de junho de 2010

Inês e Patrícia

Domingo. Inês Pedrosa e Patrícia Reis na Feira do Livro do Porto. Um «casamento» de 22 anos torna qualquer momento das duas imperdível. Houve literatura, sexo, política, jornalismo, mimo. A revista Egoísta. Psicanálise familiar também, um pouco. E ainda tempo para os livros delas: Os Íntimos (Inês) e Antes de ser Feliz (Patrícia). Valeu tudo. Valeu a pena. Elas fizeram a festa, deitaram os foguetes e apanharam as canas. De frente para a vida e com gargalhadas contagiantes. Perfeito.
(MIGUEL CARVALHO, in blog "A Devida Comédia",  aqui)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Nova imagem

Depois da sessão fotográfica para o livro que vai sair, e respectiva promoção, algumas imagens ficaram de fora, na gaveta. Roubei esta para o blog, por lembrar o mesmo ócio, alguma meiguice, e romantismo, que já caracterizavam a imagem anterior. Tem algo a ver com o espírito que se vive por aqui. Obrigada, Nanã, pelas fotografias.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Crónica: Cursando sobre contos 1

Exercício com tema à escolha: eles fizeram-no na aula e eu também, por simples e boa solidariedade. Todos escrevemos. Escolhi o tema "A personificação de um objecto que trazem convosco"...e saíu isto.

TEMPO

O meu telemóvel, pousado à minha direita, na mesa, parecia puxar-me a manga do casaco a lembrar-me, impiedosamente, o passar do tempo. Tanto que eu o cronometrara, em casa, ao tempo, essa substância inventada pelo Homem, uma bússola apenas útil. Uma bússola que nos prende e atrofia, condicionados que nos tornámos por segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos.  Presos a um artifício. Ali estava ele, impávido e poderoso, tentando intimidar-me no seu andamento constante. Superior a mim, que não tinha como avançar, só por ser muito senhora da minha vontade, julgava eu. E ele com tanto. Tanto tempo cheio. Ele, o telemóvel, dono do tempo, impositivo, arrogante. Eu à sua mercê. Trocou-me as voltas: atirou-me para o lado oposto do tempo vazio, que sobrava, para o tempo que me faltou.
Vitoriosa fiquei eu, pois sabia algo que ele desconhecia. Fizera-me um favor. O favor de passar, impiedosamente. Com certo desprezo, digo-lhe que o tempo não existe. O que ficou, foi tudo o que queria dizer. As palavras sobraram na boca dos participantes, que inventaram tempo para aqui estar e que tanto tinham a dizer.
Assim ele passou a correr, assustado com o nosso entusiasmo, comendo os minutos à pressa, devorando pedaços de si próprio, como se roesse as unhas.  
Ao vê-lo, fugindo, ainda exclamei, triunfante, bem alto, para que o meu aparelho moderno escutasse:
- Estás a ver? Foge, cobarde sem vergonha! Não precisamos de ti! Que os donos do tempo que não existe... somos nós!
(1ª sessão, 28 Maio 2010, Ericeira)


quinta-feira, 3 de junho de 2010

Adeus, João

"João Casimiro Namorado de Aguiar escreveu mais de duas dezenas de romances e criou duas séries de televisão destinadas ao público mais jovem - “Sebastião e os Mundos Secretos” e o “Bando dos Quatro”, no qual ele próprio figura na personagem do Tio João.
João Aguiar foi um dos cultores em Portugal do chamado romance histórico, com “A Voz dos Deuses”, publicado em 1984.
João Casimiro Namorado de Aguiar nasceu a 28 de Outubro de 1943 e viveu a infância entre Lisboa - a sua cidade-natal - e a Beira, em Moçambique. A mãe ensinou-o a ler para mantê-lo sossegado na cama, durante um longo período de doença, e de leitor interessado passou rapidamente a aspirante a escritor.
Aos oito anos, tentou ditar um livro de aventuras à irmã Maria João mas o sentido crítico dela arrasou-lhe as pretensões. Insistiu com novas obras que foi deitando para o lixo e teve mesmo um “primeiro” livro que só não viu a luz do dia porque a editora faliu antes. Só depois dos 40 anos publicou o primeiro romance, na Perspetivas & Realidades de João Soares: “A Voz dos Deuses”, uma ficção histórica centrada na figura de Viriato.
Seguiram-se duas dezenas de romances que o levaram a estudar a história mais remota de Portugal - regressou aos primórdios para falar de Sertório e publicou até um trabalho não ficcionado sobre o menino do Lapedo. Viajou para Macau com a ficção para escrever “Os Comedores de Pérolas” e “O Dragão de Fumo”.
Pelo meio, João Aguiar criou duas séries destinadas ao público mais jovem - “Sebastião e os Mundos Secretos” e o “Bando dos Quatro” e fez também o libreto para a ópera “A Orquídea Branca” de Jorge Salgueiro, estreada em 2008.
A doença que veio a provocar-lhe a morte impediu-o de concluir o livro que preparava sobre a revolução de 1383.
João Aguiar frequentou em Lisboa os cursos superiores de Direito e Filosofia mas foi em Bruxelas que se licenciou em Jornalismo, profissão que entretanto tinha começado a exercer. Na Bélgica, fez um pouco de tudo, desde lavar escadas a trabalhar no Turismo de Portugal.
De regresso a Portugal, fez o serviço militar e uma comissão em Angola no sector da acção psicológica, produzindo rádio para as tropas.
Considerou-se sempre jornalista, mesmo passados largos anos desde que abandonara a actividade profissional. Começou pela RTP - onde também coordenou uma série da Rua Sésamo - e passou depois por jornais como "Diário de Notícias", "A Luta", "O País". Fez rádio no Canadá, onde trabalhou com Henrique Mendes.
Dizia-se um “monárquico não tradicionalista”, justificava-o “por uma questão pragmática”. O último romance que publicou - “O Priorado do Cifrão” - era uma “charge” ao mundo criado por Dan Brown.
Numa autobiografia irónica que escreveu para o "Jornal de Letras" em 2005, João Aguiar concluía: “A minha vida não dava um livro, e ainda bem. Em compensação, o facto de os meus livros darem uma vida -- boa ou má, não importa para o caso - , esse facto devo-o, em grande parte, aos momentos de não-glória que acabo de relatar. E estou-lhes muito grato.”
(in Jornal "PÚBLICO", 5ª feira, 3 Junho 2010)
Tive o privilégio de trocar com ele alguma correspondência e de receber, pelo correio, com dedicatória, duas obras dele, que recebi de mãos abertas, feliz e orgulhosa: "O Tigre Sentado" (editado em Macau e muito mal distribuído em Portugal, como o próprio me contou) e "O Priorado do Cifrão", a sua última obra publicada. Jamais esquecerei os seus livros. Irei relê-los, decerto, e descobrir os que não li. Perde-se um imenso escritor que, a meu ver, não teve o reconhecimento que merecia. Vá-se lá saber porquê...e agora é demasiado tarde. Ou não?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mia Contando

Hoje estive na companhia maravilhosa de Mia Couto e das suas "Estórias Abensonhadas", abençoadas, sonhadoras e ensonhantes. Transcrevo para aqui um excerto de uma delas, que irei usar na aula de 6ª feira:

"Novidade Castigo era filha de Verónica Manga e do mineiro Jonasse Nhamitando. Lhe apelidaram de castigo pois ela viera ao mundo como uma punição. Se adivinhou logo na nascença pelo azul que a menina trazia nos olhos. Negra, filha de negros: de onde vinha tal azul?
Iniciemos pela moça: ela era espantadamente bela, com face de invejar aos anjos. Nem água fosse mais cristalinda. O porém dela, contudo: era vagarosa de mente, o pensamento parecia nela não pernoitar. Ficara-se assim desacertada certa uma vez em que, já moça, foi atacada de convulsões. Nessa noite, Verónica estava sentada na varanda quando sentiu o aranhiçar da insónia em seu peito.
Esta noite vou contar estrelas, pressentiu-se.
A noite já roía as unhas à madrugada foi quando aconteceu. No cantinho da casa, a moça se despertou, em espasmos e esticões. Parecia a carne se queria soltar da alma. A mãe, na adivinhação das sombras, sentiu o surdo aviso: que foi? Leve como um susto, acorreu ao leito de Novidadinha. Em casa de pobre tudo está certo, conforme no arrumo ou desalinho. Verónica Manga atravessou o escuro, evitou caixotes e latões, saltou enxadas e sacos a pontos de se acercar da filha e lhe ver o braço, erguido como drapejante bandeira. Verónica nem chamou o pai, não valia a pena suspender o descanso dele.
Só na seguinte manhã ela ao homem anunciou o acontecido. Ele se preparava para despegar para o trabalho, em véspera de descida ao fundo da montanha. Parou na porta, reconsiderou intenção. Jonasse Nhamitanbo, todo pai, foi ao quarto da menina e lhe encontrou, parada, só com vontade de sossego. Sem tirar a áspera luva passou uma carícia pelo rostinho dela. Despedia-se daquela outra, a que já fora sua menina? Depois, o pai se afastou em modos da nuvem que se aparta da água"
(MIA COUTO, "As Flores de Novidade")

terça-feira, 1 de junho de 2010

Paz

Pequeno-almoço: sumo de laranja natural, torradas com manteiga - cá fora, no terraço, de frente para o verde que as vacas já devoraram em grande parte; caminhada de uma hora ao ar fresco da manhã - cruzei-me com grupos de crianças em fila, pela estrada de terra batida, sob as ordens e os gritos das professoras e auxiliares, que tentavam pô-los na ordem. Disse-lhes bom-dia, à passagem.
- A senhora disse bom-dia! E vocês não respondem, meninos?!"
- "BOOOOM DIIIIIIAAAAA!"
Foi intenso e engraçado. Segui caminho a sorrir, um sorriso longo, que não consegui desmanchar.
Resto da manhã a preparar a 2ª sessão do curso que estou a dar na Ericeira "Escrevo o Meu Primeiro Conto" - trabalhando, sim...mas de biquini, deitada numa espreguiçadeira, ao sol: vantagens das profissões liberais: ser dona do meu tempo e do meu espaço;
Almoço leve: sanduíche de pão de 8 cereais com maionese, salmão, cebolinho picado (tirado do vaso da cozinha, junto à janela azul), e alface da horta do Zé Manel e da Bé, acompanhada de limonada acabada de fazer, com muito gelo; o Gastão e o Chico aos meus pés, sonolentos e encalorados;
Mais sol, mais estudo, um iogurte natural com mel e damascos, do Algarve;
A pele a dourar, agradecida pelo sol;
Chega o fim da tarde, as sombras tornam-se esguias, oblíquas. É hora de uma nova caminhada, na frescura do poente. Levo a máquina digital, fotografo a própria sombra no alcatrão, deixo as flores em paz;
Novamente no terraço: chá de menta e torradas com doce de morango da Bé: o Gastão baba-se, ao meu lado, dando a pata, a pedir pão. O Chico rói um osso, espevitado pelo alívio do fim da tarde.
Regresso ao trabalho, termino a análise de texto; a escuridão vai invadindo os cantos; retiro objectos que levo para o interior; fecho os olhos azuis à casa, a preparar a noite, deixando abertas apenas as portadas do piso de cima; a noite chega, o campo torna-se negro, os bichos nocturnos iniciam os seus cantos. Acendem-se luzes, a iluminar as casas caiadas, as telhas, as borboletas brancas e o seu esvoaçar frenético.
Venho então para aqui, para trás do ecrã. Respondo a amigos, espreito outros no facebook, escrevo este texto. São 21.33 e ainda não jantei. É preciso tomar banho, o jantar virá depois, à hora que eu quiser: vantagens de uma solidão de alguns dias, sem horários nem caprichos, a não ser os meus.
A consciência está tranquila, foi um dia bom. Pelo menos, neste meu pequeno mundo, feito de paz. Que pena o grande mundo não ser feito de cantos de paz como o meu.