quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Simplicidade

"A simplicidade é a consequência natural da elevação dos sentimentos."
Jean le Rond d' Alembert
(Paris, 16.11.1717 – Paris, 29.10.1783)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O velório do Manel

Ninguém tira selfies em velórios ou enterros. Se não envolver figuras públicas, se a morte pertencer a um simpático anónimo, não se transforma num evento, digno de partilhar nas revistas e redes sociais. Não, ninguém tira selfies na presença da morte. Ninguém quer recordar a hora do último adeus.  

Hoje assisti a um velório que me fez sentir como se tivesse sido lançada para um qualquer filme americano. Assim que chegámos, perguntaram-me:
- Meu amor, queres beber o quê? E só então reparei que, enquanto o morto aguardava na capela, cá fora, nesta noite espantosa de verão em pleno Outono, tinha sido improvisado um bar, à roda do tronco de uma grande árvore e todos bebiam, riam e conversavam. A viúva era a que falava mais alto, a que fazia as honras, como se recebesse os convidados na sua casa. Apressei-me a guardar na carteira a minha expressão triste, que não tinha lugar ali. Depois de me servir a bebida, a Maria disse, com ar sério:
- São 5 euros. 
E eu já ia tirar a nota da carteira onde guardara a expressão triste, juro, mas não, era uma piada, como se, no lugar dela, estivesse o Manel, a servir-nos copos no Cascais Jazz Club. Como sempre fazia.
Depois de um copo de vinho tinto (que se revelou um gin tónico, mas não tive coragem de dizer uma palavra e emborquei o gin), entrámos na capela. O Nanã retirou o saxofone tenor do saco. A Margarida cantava um tema de blues, maravilhosamente, acompanhada pelo Fidu. Chegou o Jean-Marc, com o trompete, e juntou-se-lhes. Por fim, o Zeca Neves, a tocar no contrabaixo que o Paulo Neves deixara na capela nessa tarde. A Maria Viana cantou, despedindo-se do seu Manel, depois de desanuviar o ambiente, enxotar a tristeza dos nossos olhos fúnebres, com a piada:
- Então, vens tocar ao vivo? Ou melhor, ao morto?
E eles tocaram. E cantaram. E nós batemos palmas ao fim de cada solo e no final de cada tema, como se estivéssemos no clube. Quase aposto que houve momentos em que o caixão foi esquecido, porque a música soou mais alto do que a morte que ali estava, em silêncio.
Ao meu lado, havia uma mesa longa com bolinhos caseiros e termos de café. Lá fora, o álcool continuava a sair. A entrar no sangue. O serão terminou no café do outro lado da rua, com mais copos, brindes à saúde do Manel e partilha de histórias.
No regresso a casa, ao pararmos na bomba de gasolina para pormos gasóleo, a menina que atendia, em horário nocturno, lançava aviões de papel: dentro do carro, pude vê-la, do outro lado do longo vidro, atirando os aviõezinhos não sei a quem, se miúdo se graúdo. Foi uma noite surrealista? Foi. Às vezes o surrealismo é bem mais simpático do que a realidade. É preciso retirar a poeira às convenções.
Aqui deixo um abraço solidário à Maria Viana, que hoje se tornou viúva. Que haja sempre boa música na sua vida. 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A espera no recolhimento

Estes dias não me apanharam fora de casa: foram feitos de leituras, de revisão de páginas e páginas e páginas, de agendamento de visitas a escolas, os livros, os autores, a escrita, esse namoro que é uma espiral sem fim.
As horas sucedem-se ao ritmo do melhor que os meus olhos e a concentração têm para dar. Este verão tardio olha-me, cheio de espanto, pelo desprezo a que o votei: nem um pé na água, nem um ombro nu, a aproveitar este calor em pleno Outono, as águas turquesas, o mar.  É assim, o corpo já desistiu, já fez a sua despedida, está pronto para a lareira, o vinho tinto, as castanhas, as leituras de inverno, o frio e o nevoeiro. Pensar no corpo agora é um desencontro. Já subi à minha árvore de folhas douradas, não quero saber de mim mas do vento, das folhas, das árvores nuas, da brisa morna que traz o inverno. Para me despir, só se as minhas vestes forem vegetais e o mar cinzento, num céu de cobre, sem turistas nem guarda-sóis. Novembro virá não tarda, trazendo morte e nascimento. Aguardo com o meu hálito de Outono, na mão a folha dourada, uma alcova a embalar um novo ser. É preciso ser mãe nas quatro estações, ainda que feita de promessas semi-cumpridas.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Alice Vieira

Em jeito de votos de bom fim de semana, deixo-vos com um poema do novo livro de Alice Vieira. Desinteressadamente, escolhi este, dedicado ao lugar onde moro, pertinho, pelo menos...Da...
ERICEIRA
«vivi muitos anos frente ao mar

o sol chegava sempre muito tarde
qando as mulheres já tinham regressado a casa
para o almoço e os homens falavam de marés vivas no café central
sabíamos as horas pelo uivo do farol e
havia um amigo que nos dizia que
aquela praia não tinha banhistas mas
apenas devotos e outro
encharcava-se em wisky e escrevia
romances de anjos que às vezes
vinham de avião e caíam nas rochas
para nos salvar
às vezes os barcos não voltavam e as mulheres
acabavam por adormecer na areia esperando
milagres em que já tinham aprendido a
não acreditar
e os turistas sorriam muito e
tiravam muitas fotografias
e os jornais falavam de obras que
eram urgentes e ninguém fazia
as crianças lançavam estrelas de papel
que subiam mais alto no céu que as verdadeiras
e à noite ouviam histórias de marinheiros que
erravam pelo mundo e perguntavam que
faremos se alguma noite nos baterem à porta
pedindo para entrar
mas como caíam de sono nunca
ouviam a resposta que ninguém tinha
para lhes dar
foi pela coragem desse tempo que
jurei sempre
mesmo agora em que te espero como a
um barco desaparecido embora
já nada tenha para te dar e nada
reste de mim nem da praia nem da casa
esquecida ao longe com o nevoeiro
o farol os naufrágios os marinheiros errantes
nesta fotografia a preto e branco onde me vejo
pés enterrados na areia da vazante
o meu corpo embalando o sono de 
uma criança morta
eu
há tantos anos
eu sem pensar em nada»

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Anjos

Não sei quem é o autor desta belíssima ilustração, mas tenho pena. 
Dedico este anjo à Vanessa e à Virgínia. 
Elas sabem porquê. :-)


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O teu silêncio

O teu silêncio

Uma taça onde cabem todas as palavras
que não dizes.
Nela guardas a muda censura,
A dizer o pardo infinito,
Pleno de abstracta incerteza
Tanta, que não cabe na minha mão.

De repente, falas,
E cospes e gritas.
E na tua voz se quebra
o consolo do mutismo
Onde tudo podia ser, 
Até as palavras mais doces.

E o silêncio, que era pardacento,
A abreviar as nossas mágoas,
Sem nome nem lembrança,
É agora raiva escarlate,
Embutida nos teus vocábulos.

Foi-se o silêncio.

E quando regressa

é tarde:

Na taça de ambos

Apenas cabe o arrependimento.

sábado, 11 de outubro de 2014

Carta da montanha


                                                                    © Nanã Sousa Dias
                                                                                   
De olhos cerrados, o frio lambendo-me a pele
Escuto apenas o som sibilino do vento
na carta derramei um socorro, aliado
O milhafre prendeu as minhas lágrimas
Em garras furtivas, na plumagem negra de negro destino
como a flor de Oscar Wilde, o rouxinol
oferece o tom escarlate à rosa injuriada

No peito guardo a esperança vestida
Com o adejar da minha ave
a folha nívea embalada nas asas
sombrias de um amigo alado
com mil cuidados
se ergue no abismo do meu recolhimento

Quanto tempo terei de aguardar?

O azul que me envolve o peito é cortina de gaze
um véu sobre o outro e outro
e outro ainda
tal como a noite se veste de mil véus até se entrevar

O recorte do horizonte é linha serena
desde pequena que o vejo crescer
Flutuando no desejo, neblina de tantas auroras
e só agora me tento salvar.

O milhafre descola, enfim!
É tempo de espera. É tempo de esperança.
A brisa levanta os meus suspiros, feitos de asas e orações.
(© VERA DE VILHENA, poemas inéditos)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Aventuras

Uma das maiores ironias da vida é que, se nos portarmos sempre bem e nunca quebrarmos as regras do bom-senso, pouco levamos desta vida para contar aos anjos...ou mesmo aos de cá, na terra, enquanto estamos vivos. A aventura começa precisamente aí: nas pequenas transgressões, ao passarmos para o Outro Lado do Espelho.
Dedico esta lição de vida a uma das pessoas que me ensinou isto: o meu tio Duarte: tio, tenho a certeza de que os anjos terão imenso prazer em ouvir as suas aventuras. E aqui fica um grande beijinho para o meu pai, que perdeu um irmão.
Tio Duarte com o meu irmão Eduardo, Murtal, 1963

terça-feira, 7 de outubro de 2014

passo a passo

Um passo diante do outro, a acompanhar o pulsar do sangue. Na estrada solitária apenas os ruídos da terra, o voo cruzado de um pássaro, o ladrar dos cães que guardam casas modestas, as hortas, os pomares, os galinheiros, como se fossem tesouros feitos de patos e couves e laranjas e abóboras e melões. A ansiedade dos meus dias vai-se evolando, levada pelas serpentinas de fumo das queimadas a que se entregam os homens, de mangas de camisa arregaçadas, a testa e o pescoço tisnados por tantos sóis: um perfume feito de verdores, ervas e folhagem carcomida pelos restos da estação que terminou. É Outono, enfim. A brisa ainda é morna e o céu, mesmo cinzento, oferece uma luz de líquido bronze, quebradiço como as folhas que fogem dos ramos, em busca de um novo horizonte, na esperança de reencarnar. Passo a passo.     

sábado, 4 de outubro de 2014

A fotografia

Eram ambos mestres no arte do fingimento. Enganavam até os amigos mais próximos. Ela segura a fotografia na mão, controlando a raiva que tem presa nos dedos, para não partir a moldura que os filhos deram. Ali estão eles, os pais, a sorrir. Longe, muito longe da felicidade. Ninguém diria. Ela sabe o segredo: tem um sorriso bonito e sorriu para a fotografia. Nessa tarde e em muitas outras tardes. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Dia Mundial da Música

Porque a música também é respiração e silêncio, ou inquietude, escolho estes dois temas de alguém que nos faz muita falta: Bernardo Sassetti.