Com apenas cinco horas de sono, acordei de um salto, às oito, como criança na manhã de Natal. Era o dia da minha primeira aula de desenho com a Ana Salta, minha aluna no curso de Escrita Criativa. A partir deste dia, serei também eu sua aluna, numa curiosa troca de papéis, no gosto de quem partilha a sua arte e sabedoria. Acabámos num café em Ribamar, postámo-nos com os nossos muitos tarecos junto à janela, para usufruirmos da luz solar, e juntámos duas mesas. Veio Coca-cola, café, pastel de nata. A conversa foi boa, muito boa, pois não era só desenho que a Ana tinha para me ensinar. Senti a paixão com que falava dos tempos antigos na cidade de Lisboa, desde a ocupação árabe à vida quotidiana no bairro da Mouraria, no Martim Moniz, no bairro de Sant’ Ana. Pediu-me para pôr as mãos em concha e colocou-me, à vez, preciosidades nas mãos.
– Não olhe, Vera. Sem ver, diga-me o que lhe parece que tem aí.
Recorri ao tacto para descobrir o peso, a forma, a textura, a temperatura. No primeiro caso, tratava-se de uma pedra do período Neolítico; no segundo, de uma lapiseira em prata lavrada, talvez do séc. XIX, ou mesmo mais antiga. Como fizera na infância, desenhei a minha mão – não espalmada, de dedos abertos – mas com a pose de quem segura um instrumento de escrita. Perguntou-me se tinha irmãos, se eles sabiam desenhar, tentando entender esta minha frustração. Confirmei as suas suspeitas: sou a enjeitada, no meio de vários irmãos com um imenso talento para desenhar. Cada um com as suas artes, cada um com as suas bênçãos. Cada um com o seu fardo. O meu é o de não ver e o de ter mãos que não me obedecem. Aprendi tanto nesta primeira aula. Aprendi a textura e a intensidade de vários lápis de grafite e carvão. Aprendi os diferentes modos de segurá-los, consoante o que desejamos fazer com eles. Antes, a meu ver, um lápis era um lápis e segurava-o como quem escreve. Engano meu. Existe todo um universo de traços, de força, de tensão, de técnicas. Pus os lápis “a patinar”, rodopiando deitados, erguendo-se, até à ponta dos patins. Aprendi que o verde daquela chávena estava a absorver todas as cores excepto a sua e que o azul dos meus olhos se reflectia nela, alterando-a. Aprendi que tudo está em diálogo com tudo, numa interacção constante, que vai transformando as coisas. Tive consciência de que acontecem milhares de encontros entre seres, objectos e elementos naturais, todos os dias, enquanto existe a luz para os captar. Fui avisada de que, de agora em diante, irei começar a olhar para o que me rodeia de uma forma diferente. O tempo voou, de tão bem passado.
Depois do almoço, fui fazer a minha caminhada habitual. Dei por mim a admirar formas e cores com outros olhos, sim, com os olhos de quem tem já esperança de um dia conseguir captar formas e cores com traços estilizados e seguros. Suspirei de ansiedade, na antecipação da próxima aula.
Obrigada, Ana: pelos presentes, pelo seu tempo investido em mim, pela sua generosidade. Espero vir a tornar-me numa boa aprendiza e merecer a sua dedicação...e o meu primeiro Moleskine.
NOTA - roubei a imagem do diário gráfico aqui
NOTA - roubei a imagem do diário gráfico aqui
Parabéns Vera!
ResponderEliminarQuem é o anónimo a quem devo agradecer?
ResponderEliminarÉ um gosto e um previlégio partilhar o que vamos sabendo e experimentando com quem quer saber e experimentar, com quem corre o risco da mudança e se põe a caminho.Parabéns Vera!
ResponderEliminarBj Ana Salta
Muito obrigada, querida Ana, por me ir dando a mão ao longo desse caminho!´
ResponderEliminarUm anónimo que aprecia bastante todos os seus trabalhos.
ResponderEliminarAndo muito intrigada a pensar de onde caiu este diário gráfico que a Vera postou aqui. Parece bem recheado de histórias surpreendentes, como qualquer diário gráfico que se preze... Vou ter de esperar por sábado...
ResponderEliminarBj Ana Salta
Ana, não seja por isso: mea culpa! mea maxima culpa! Eu é que devia ter posto a fonte de onde retirei a imagem. Desta vez esqueci-me, o que é imperdoável. Já me redimi, como poderá ver.
ResponderEliminarBeijos, Vera
lindo :D
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