Nasci muito míope. O universo das distâncias foi sempre uma paisagem difusa, impossível de alcançar. Criei uma relação de gratidão e intimidade com tudo em que sou capaz de tocar. O que é longínquo é para mim um mistério e o pormenor quase tem de pousar-me no colo, para que eu o consiga agarrar. Vejo o mundo com os olhos que tenho, inundados de fantasmas translúcidos, manchas, sombras, cenários como que mergulhados em azeite. Na infância, roçava ao de leve a bochecha na folha de papel e fazia desenhos com todas as cores das minhas canetas de feltro Carioca ou Molin: montes verdes e floridos, meninas com roupas coloridas, cães, moinhos, árvores, grandes borboletas, uma fita de céu azul-turquesa com nuvens de algodão doce, muitos pássaros e sóis sempre sorridentes. À falta de canetas, recorria ao lápis de carvão. Caras de palhaços, sapos, rostos sardentos, automóveis, cidades modestas e muitos canteiros de flores.
O tempo obrigou-me a crescer e a manter-me as mãos limpas. Deixei de andar com elas constantemente manchadas de tinta colorida. Fui guardando as canetas de feltro na gaveta, substituindo-as por régua, compasso, esquadro, tira-linhas, canetas Rotring, como se o mundo me obrigasse a parar de desenhá-lo com linhas hesitantes e livres, em troca de traços em linha recta e ponto de fuga. Então fugi. Recordo umas férias do verão – em que ensaiei ainda recuperar a liberdade de um tempo que me escapava – com a ajuda de folhas grossas A3, onde reproduzia os quadros de casa com as minhas aguarelas: retratos, paisagens outonais, vales verdejantes, jarras de flores, poentes tocando as águas do mar. Eram esforços sofríveis, patéticos, que me mantinham num universo ingénuo e anacrónico, na tentativa inconsciente de não crescer.
Até que desisti, crescendo. E ao fazê-lo, guardei para sempre os lápis de cor, as canetas ed feltro, os lápis de cera e as aguarelas. O mundo ilustrou-se com caneta esferográfica, sem bonecos. Algumas das disciplinas do curso da faculdade obrigaram-me a desenhar um pouco: ogivas, colunas, frontões, igrejas, ameias e merlões de castelos, parras e folhas de oliveira. Comprovei que não sabia desenhar. Jogando “Pictionary”, já adulta, constatei que as ideias eram válidas, mas que os meus parceiros de jogo tinham dificuldade em descodificar os meus traços desajeitados.
Desde então que suspiro pela mão capaz de contar uma história sem palavras. Tal como na música, em que senti a urgência de aprender harmonia para poder comunicar com os músicos e falar com eles a mesma linguagem, também na escrita de histórias infantis lamento agora não poder desenhar, com o mínimo de dignidade, aquilo que serão um dia as ilustrações.
Esse é um sonho, talvez um projecto: poder transmitir, a um ilustrador, aquilo que pretendo. Um dia até (quem sabe?) talvez consiga dar vida aos universos que tenho dentro de mim. Nesse dia, os meus desenhos irão caminhar de mãos dadas com as minhas palavras, numa fraternidade feliz.
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