Ninguém tira selfies em velórios ou enterros. Se não envolver figuras públicas, se a morte pertencer a um simpático anónimo, não se transforma num evento, digno de partilhar nas revistas e redes sociais. Não, ninguém tira selfies na presença da morte. Ninguém quer recordar a hora do último adeus.
Hoje assisti a um velório que me fez sentir como se tivesse sido lançada para um qualquer filme americano. Assim que chegámos, perguntaram-me:
- Meu amor, queres beber o quê? E só então reparei que, enquanto o morto aguardava na capela, cá fora, nesta noite espantosa de verão em pleno Outono, tinha sido improvisado um bar, à roda do tronco de uma grande árvore e todos bebiam, riam e conversavam. A viúva era a que falava mais alto, a que fazia as honras, como se recebesse os convidados na sua casa. Apressei-me a guardar na carteira a minha expressão triste, que não tinha lugar ali. Depois de me servir a bebida, a Maria disse, com ar sério:
- São 5 euros.
E eu já ia tirar a nota da carteira onde guardara a expressão triste, juro, mas não, era uma piada, como se, no lugar dela, estivesse o Manel, a servir-nos copos no Cascais Jazz Club. Como sempre fazia.
Depois de um copo de vinho tinto (que se revelou um gin tónico, mas não tive coragem de dizer uma palavra e emborquei o gin), entrámos na capela. O Nanã retirou o saxofone tenor do saco. A Margarida cantava um tema de blues, maravilhosamente, acompanhada pelo Fidu. Chegou o Jean-Marc, com o trompete, e juntou-se-lhes. Por fim, o Zeca Neves, a tocar no contrabaixo que o Paulo Neves deixara na capela nessa tarde. A Maria Viana cantou, despedindo-se do seu Manel, depois de desanuviar o ambiente, enxotar a tristeza dos nossos olhos fúnebres, com a piada:
- Então, vens tocar ao vivo? Ou melhor, ao morto?
E eles tocaram. E cantaram. E nós batemos palmas ao fim de cada solo e no final de cada tema, como se estivéssemos no clube. Quase aposto que houve momentos em que o caixão foi esquecido, porque a música soou mais alto do que a morte que ali estava, em silêncio.Ao meu lado, havia uma mesa longa com bolinhos caseiros e termos de café. Lá fora, o álcool continuava a sair. A entrar no sangue. O serão terminou no café do outro lado da rua, com mais copos, brindes à saúde do Manel e partilha de histórias.
No regresso a casa, ao pararmos na bomba de gasolina para pormos gasóleo, a menina que atendia, em horário nocturno, lançava aviões de papel: dentro do carro, pude vê-la, do outro lado do longo vidro, atirando os aviõezinhos não sei a quem, se miúdo se graúdo. Foi uma noite surrealista? Foi. Às vezes o surrealismo é bem mais simpático do que a realidade. É preciso retirar a poeira às convenções.
Aqui deixo um abraço solidário à Maria Viana, que hoje se tornou viúva. Que haja sempre boa música na sua vida.
Que bom que assim foi... saí de Portugal há 4 anos e nunca mais tive contacto priveligiado com eles. Hoje apercebi-me do que aconteceu. Pelo seu texto, a Maria e os amigos próximos conseguiram fazer exactamente, o que o Manel queria que tivesse sido feito. Surrealismo é a palavra. Dalí tem 1 "relógio" que ilustraria essa festa na perfeição. O seu texto está brilhante!
ResponderEliminarMuito obrigada, Paula, exagero seu :-) Apenas escrevi exactamente o que senti, ao chegar a casa. Gosto imenso de Dalí, inclusive a tela a que se refere. O meu site, aliás, tem uma quadro de Dalí, "O Contador Antropomórfico", 1936" como ilustração "oficial", aqui: http://veravilh.wix.com/gavetas-e-gavetinhas Obrigada, Paula Coelho
EliminarInteressante esse velório. Confesso que acho bem.
ResponderEliminarUm beijo, amiga.