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sexta-feira, 29 de abril de 2016

Dois irmãos

Entretidos a dispersar os cardumes, eu e o meu irmão trabalhávamos os músculos das pernas, sem saber; o nosso chapéu, a sombrinha, era mantermos a cabeça molhada todo o dia e, para isso, íamos ao banho constantemente. A praia era mesmo ali, a poucas centenas de metros do cais de abrigo, o que era perfeito para desafios a nado:
– Agora até ali ao «Rosinha»!
– Esse é qual? Não estou a ver…
(O meu irmão sempre foi míope e na praia, como retirava os fundos de garrafa, não via nada).
– Ali, aquela chata encarnada e azul! – Apontava eu – o último a chegar é um peixe podre!
Escalávamos rochas à caça de caranguejos e mexilhões – com canivete e tudo –, e, volta e meia, lá tínhamos um encontro com uma alforreca, um peixe-aranha ou um casalinho de namorados que aí tinha ido para estar à vontade, antes de virem uns putos desmancha-prazeres. Com imagens adequadas a maiores de 18, os pés escaqueirados pelas rochas ou a pele a arder, com a carícia das alforrecas, nem por isso ficámos traumatizados. Agora têm um pesadelo, metem-nos logo no psicólogo. 

(excerto do próximo livro, em pré-publicação)

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Cabeças

«Fiquei de lá passar às oito. Quando cheguei a casa eram ainda cinco.
 Tinha a intenção de escrever um bocado, como tenho feito ultimamente, mas...zero. Peguei num livro interrompido do Hemingway e nem assim fui capaz de me concentrar; podia beber um whisky para descontrair, mas era demasiado cedo e ela não gosta do cheiro; acabei na minha passadeira: quatrocentas calorias. Apressei-me a cortar o cabelo no centro comercial, daquelas casas em que não vêem pessoas, só “cabeças”, tipo matadouro: cheguei a ouvi-las dizer:
– Ó Isabel, não me marques mais cabeças, que já tenho o Domingo cheio! Pra qu’é que serve a agenda, pá?!
Ou esta frase “riquinha”:
– Porra, pá, tantas cabeças por dia, uma pessoa té nem tem tempo de ir mijar! E estou cá cuma larica que nem me aguento!
Isto enquanto esfregava a minha. E com força, como se eu não a lavasse há uma semana.
– Estou a ser bruta? Você diga!
(Que sim, que estava a magoar um bocadinho).
– Ai, o senhor desculpe, mas é que aqui a gente ao fim de semana é isto.»
(ainda "em obras de (re) construção", mas para breve). 

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Autoria

Efígie de César (s/d)
O poema "Muere Lentamente", atribuído por engano a Pablo Neruda, circula há anos na Internet sem que nada nem ninguém seja capaz de deter a bola de neve, ao ponto de, em Espanha, muitas pessoas terem recebido esses versos como votos online de um feliz Ano Novo: "Morre lentamente quem não viaja, Quem não lê, Quem não ouve música, Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito, Repetindo todos os dias o mesmo trajeto..." 
Assim começa o poema que não se chama Morre Lentamente, mas A Morte Devagar, e não é do poeta chileno como assegurou a Fundação Pablo Neruda, mas da escritora e poeta brasileira. MARTHA MEDEIROS. Não é "Muere Lentamente" o único "falso Neruda" que encontram os internautas. Também costumam atribuir ao autor do Canto Geral os poemas "Queda Prohibido" (que é de Alfredo Cuervo, escritor e jornalista espanhol), e "Nunca Te Quejes", autor desconhecido para a Fundação Pablo Neruda.
Este é um dos problemas do uso indiscriminado e ingénuo da Internet: uma ferramenta maravilhosa de informação, mas também uma terrível fonte de desinformação, quando utilizada sem reservas. 
Outro boato que circula há cerca de um ano é o de que o texto "A Geração à Rasca - Por Nossa Culpa" foi escrito por Mia Couto: não é verdade. Para confirmarem o rumor, aqui fica o link do texto original, no blog ASSOBIO REBELDE

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Agustina

«Eu não me levo muito a sério. É a melhor maneira de viver. Aquele que se leva a sério está sempre numa situação de inferioridade perante a vida.»
Deve ter toda a razão. E nós estamos sempre a esquecer-nos dos seus conselhos sábios. Diz que é muito conhecida e pouco lida. Acho que, mais uma vez, tem razão. Dizemos "Agustina" e não é preciso acrescentar mais nada. Todos sabem quem é, tem artigo antes do nome, sempre, é A Agustina, apesar de ser dona de um apelido marcante - Bessa-Luís - Agustina Bessa-Luís é todo um nome literário, aconchegado em palavras, gerações, famílias, lugares nortenhos e personagens, escritos e descritos em letra miudinha, a construir e a contar esta enorme mulher pequena. 
Parabéns, Agustina, pelos seus 93 anos.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Infortúnios

"Se todos os infortúnios do mundo fossem colocados juntos e posteriormente repartidos em partes iguais por cada um de nós, ficaríamos muito felizes se pudéssemos ter apenas, de novo, só os nossos."
(filósofo Sócrates, Atenas, 469 a.C. - Atenas, 399 a.C.)
Roubei a imagem aqui
Obrigada, Ana.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Luto para sempre


As três folhas amarrotadas pelo uso das mãos, as mãos revelando os primeiros indícios da idade, a idade nas veias, pequenos riachos de águas inchadas, azuis, estendidas na planície da pele, os dedos magros, o lugar vago da aliança, para sempre vazio, uma vaga aberta e inútil, agora que ela se vestia de luto, para dizer adeus ao seu primeiro amor.Os olhos inchados lendo, a custo:
« Quando formos adultos e casarmos…
Tu interrompias-me, Sara, como quem afasta uma tragédia, a testa franzida, os olhos bem abertos:
– Casar contigo?! Nem morta!
Para nós não havia futuro, dizias. Teimavas em lembrar-me que era temporário, insistias em não acreditar em nós, neste futuro que foi chegando. Não estamos aqui? Não chegámos até aqui? Se estás a ler esta carta, sabes que já é futuro e nós continuamos aqui. O tempo não conseguiu silenciar-nos. Só a morte é capaz de calar para sempre.
(...)
Cada vez que me punhas de parte, a tua vida sem mim era para sempre. Era sempre para sempre. Mas fraquejavas sempre. E também na reconciliação eu conquistava a prova de que não podias viver sem mim.
Depois veio a vida e ensinou-me que afinal podias. Mas isso foi depois.

(romance em construção)

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Vender livros

                                           


«O negócio de vender livros é esquisito. Vendem-se livros aos milhões e a maior parte das pessoas não faz ideia do seu conteúdo, ou pelo menos, não antes de os comprar e ler. Estranho é constatar que autores, editores e livreiros, praticamente, não tenham reclamações.»
(in blogue "Pó dos livros", livreiro anónimo)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Cabeça-de-vento

Crónica: Raquel Serejo Martins
Pintura: "Cabeça de vento" de Ana Cristina Dias 
Detalhe

«A primeira vez que lhe chamaram cabeça de vento estava na escola primária.
Talvez mesmo na primeira classe.
Os meninos de bata amarela.
Canários em linha, como molas de roupa sem roupa não numa corda mas dentro de uma gaiola.
Guarda uma memória amarela.
Os meninos sentados, plantados nas carteiras, um campo de girassóis de olhos encandeados por um sol negro de ardósia, duas dúzias de olhos cegos de espanto por perceber que os estranhos desenhos eram palavras e que as palavras eram feitas de letras, uma matrioska, parecia marosca.
P-a-t-o.
G-a-t-o.
Parecia estranho, era estranho, porque para ela, um gato, sete vidas, quatro patas, um rabo, muitos bigodes e dois olhos amarelos como os berlindes que guardava no bolso.
Olhava para o enorme quadro negro e gato nenhum, nem escondido, denunciado por um rabo de fora.
Ouvia a explicação na voz de locutor de rádio sem música do professor e perdia-se, fugia, para lá das enormes janelas, tão grandes que a deixavam ver a cidade inteira.
Mentira, sabe que é feio mentir, se a cidade uma laranja, uma tangerina porque a cidade pequena, via apenas meia tangerina, o que já é muito ver para uma janela.
E de olhos na janela, para lá do vidro, perdia-se à procura do gato, procurava ao sol à soleira das portas, à porta da peixaria, camuflado entre os cortinados de uma janela, entre dois vasos com sardinheiras, a atravessar a estrada dentro ou fora da passadeira, pelas árvores, pelos muros, pelos telhados.
Chamavam-lhe cabeça-de-vento e diziam que fazia muitas avarias.
Ou tinha muitas ideias e nem todas corriam bem.
Convém ser boa a correr.
Não era o seu caso. Corria, tropeçava, caía, como se uma sequência com lógica.
Os joelhos pele de crocodilo, crosta sobre a crosta da primeira ferida.
E a correr, entre a lebre a tartaruga, ela um peixe.
Dentro de água ninguém a apanha, ninguém lhe ganha.
Ia ao fundo como se fosse à lua.
Para mais na cidade um rio, nos seus Verões um rio.
Quando ia ao fundo deixava todos de olhos pendentes e respiração suspensa, como a sua debaixo de água, até ao seu regresso, hesitantes quanto a mergulhar também, no limite do susto, até que emergia ofegante, sorridente, e sempre com uma pedra na mão, prova oval e concreta da sua audácia.
Tinha no quarto um frasco de vidro onde em vez de bolachas ou biscoitos guardava pedras do fundo do rio. A avó sabia que tantas as pedras como as vezes que ficou com o coração nas mãos por saber como o rio é matreiro com os invasores.
Porém ela um peixe.
E apesar das pedras, a avó nunca a chamou cabeça-de-vento, talvez soubesse que ela um peixe, inconsciência, audácia, guelras e barbatanas.
De olhos tristes com um sorriso perdoava-lhe todas as asneiras.
Mesmo quando os berlindes lhe fugiram do bolso, como se tivessem pezinhos.
Fugiram, avó! – Um eufemismo.
Fugiram-me do bolso e sem querer fizeram cair o professor no corredor da escola.
Mau humor fracturado em dois sítios, fato de fazenda de três peças e braço esquerdo engessado ao peito, passou a ser conhecido entre os girassóis como o pau-de-giz.
Tem tempo para a tristeza a menina. – Ouvia-se a avó dizer como se de uma ordem se tratasse, ao tempo, à tristeza e a todos os que queriam corrigir a menina.
Pelo que em casa da avó um mundo diferente, o tempo sem sobressaltos e o seu cocuruto em sossego.
Um mundo pequeno. A avó não tinha muito. Uma casa. Um gato. Uma figueira e na figueira quando figos pássaros.
A avó não tinha muito mas tinha muitas histórias para contar.
Conta outra vez a da menina que tinha um tapete voador.
E a avó contava, a mesma história, sempre de forma diferente, como se não atinasse com a história, pelo que sempre uma surpresa, um espanto.
Era uma vez um tapete que de tanto voar, voou mais do que avião, tanto como foguetão, chegou à lua, fez da menina astronauta.
A avó nunca andou de avião.
A avó só conhece os aviões de os ver passar no céu lá longe, pequenos como pardais, lá longe, na lentidão dos caracóis deixando um rabo de fumo.
A avó nunca viu foguetões, nem mesmo na televisão, que serve para as notícias e não mais, sabe sem saber bem o que são, imagina-os como foguetes gigantes, velozes e barulhentos como os que lançam na festa de Nossa Senhora da Assunção, grandes como camionetas, capazes de levar gente dentro, capazes de aterrar na lua, pelo menos quando gorda e cheia, apesar de tudo somado lhe parecer fraca brincadeira, porque fraco passeio para piqueniques.
Porém a menina gosta de ir à lua.
Foi a primeira astronauta da turma.
Pelo que a avó, se o avô a dormir a sesta, ia ao bengaleiro buscar a boina e o chapéu de levar à missa ao Domingo, dois capacetes, enfiava a boina na cabeça da neta até às orelhas, que assim devidamente protegida, 10-8-7-4 começa de imediato a contagem decrescente, contava ao contrário sem ainda bem saber contar, estado de euforia uma única vez interrompido, não para abortar a missão lunar, nem impedir a humanidade de dar mais um salto, mas por se lembrar, em respeito pelo original, que lhes faltava uma bandeira, a avó sabia que era imprescindível levar uma bandeira.
Temos de fazer uma bandeira. – disse antes de descolar o foguetão.
Tenho uma velha almofada solteira, cortamos uma galho seco à figueira.
O que é uma bandeira? – Pergunta a menina ansiosa perante a nova palavra e a novidade.
Uma bandeira! Como te posso explicar, é como uma fotografia. Estás a ver a fotografia do avô que guardo na caixa de costura, tem o bigode do teu avô, os óculos do teu avô, o chapéu do teu avô, o sorriso do teu avô, os seus vinte anos, o bolo de chocolate de que tanto gostava, o dia em que me pediu em casamento, o dia em que nasceu a tua mãe, o dia em que tu nasceste, é um quadradinho de papel que tem dentro todas as histórias de um país e os sonhos também.
Então a minha bandeira tem de ter uma bicicleta! O pai disse que se eu me portasse bem me oferecia uma bicicleta no meu dia de anos.»
pintura em livro
(retirado integralmente do blogue Clube de Leitores)

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Simplicidade

"A simplicidade é a consequência natural da elevação dos sentimentos."
Jean le Rond d' Alembert
(Paris, 16.11.1717 – Paris, 29.10.1783)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Maria do Rosário Pedreira

O tom e a voz
«Diz-se muitas vezes que o verdadeiro escritor tem de ter uma voz, ou seja, tem de ser reconhecível em tudo o que escreve através de um estilo que lhe pertence e não é de mais ninguém (mesmo que nele se notem influências de autores queridos e amados, o que nada tem que ver com copiar a forma de esses escreveram). Quando estão a começar livros novos, também os escritores dizem frequentemente que têm tudo na cabeça mas ainda não encontraram o tom. Ora, é no mínimo engraçado que se usem dois termos – voz e tom – quando se está a falar de escrita, pois seriam, digo eu, mais imediatamente associados à oralidade. Mas também eu tenho tendência para pensar, quando ouço um dos meus poemas dito por outra pessoa, que aquela não é a música com que o escrevi. Por falar em música, leio numa entrevista a Annie Clark (artista pop) uma belíssima citação da biografia de Miles Davis, na qual se diz que a coisa mais difícil para um músico é «soar a si mesmo», expressão que, no fundo, equivale a «ter uma voz» em termos literários (isto anda tudo ligado). Ter várias vozes, como Pessoa & heterónimos, não deve ser, mesmo assim, confundido com não ter nenhuma, que é o que acontece quando deixamos um recado à senhora que nos dá uma ajuda na limpeza da casa e que, seja ou não um escritor a redigi-lo, deve ser sempre mais ou menos a mesma coisa. Já me aconteceu, porém, ser jurada num prémio de poesia e ter seleccionado dois livros completamente distintos que eram, afinal, da mesma pessoa. Não sei, mesmo assim, qual deles, para o seu autor, soaria melhor a si mesmo.»
(MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, no seu blogue Horas Extraordinárias, 18 Março 2014)

sexta-feira, 7 de março de 2014

Rainer Maria Rilke

“Be patient toward all that is unsolved in your heart and try to love the questions themselves, like locked rooms and like books that are now written in a very foreign tongue. Do not now seek the answers, which cannot be given you because you would not be able to live them. And the point is, to live everything. Live the questions now. Perhaps you will then gradually, without noticing it, live along some distant day into the answer.”
(Rainer Maria Rilke)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Fazendo pão...

«São onze horas da manhã. Cheira a pão quente, acabado de cozer. As grandes cestas de verga foram dispostas para as provas de queijos e outros acepipes, com pão de cerveja, broas de mel, pão de especiarias, michas perfumadas com anis e manjerona, pãezinhos com cardamomo. Rosalina labutou arduamente nos últimos dias, preparando e acondicionando os ingredientes. Elaborou os fermentos e leveduras, trabalhando nas primeiras horas da madrugada, no amassadouro do pátio; alimentou o forno de lenha com nogueira e castanheiro. Furfuris deixou Grotti a sós no moinho, para ajudar a padeira:
     — A partir de amanhã, até ao dia do Festival, vais lá para baixo —, dissera-lhe o moleiro — a minha mulher precisa mais de ajuda do que eu. Por hoje estás dispensado, vai descansar, para te habituares ao novo horário, anda!
  Constrangido, o duende passara mal as horas de descanso, pensando na mudança inesperada. Já se habituara à vida na colina, junto à montanha. No dia seguinte de madrugada, contrafeito e cabisbaixo, dirigira-se ao pátio situado nas traseiras da casa, e batera à porta timidamente. Rosalina veio abri-la. Quando afastou a pesada porta de madeira, observou o homenzinho cuja estatura não ultrapassava o nível da sua própria barriga: olhos enormes e castanhos, orelhas pontiagudas; as mãos e os pés eram desproporcionados em relação ao resto do corpo; usava um barrete encimado por um grande guizo de ouro, que tilintava à medida que Furfuris caminhava. A pele apresentava um tom amarelado e o nariz era grande e torto. Não era bonito, mas a figura inspirava afecto. Entrou na grande cozinha e retirou o barrete, mostrando os escassos cabelos ruivos na cabeça despida. Olhou em volta: o recinto agradou-lhe, pois o forno quente e o cheiro da massa cozida adoçavam o ar e convidavam à preguiça.
   — Anda, meu querido, não tenhas vergonha! Vou mostrar-te como as coisas funcionam por aqui. Furfuris sorriu, animado. Era simpática, a Rosalina.
      A cidade dormia ainda. Rosalina passou-lhe um pano-cru, a fazer as vezes de avental e uma pega em forma de luva, para a cabeça. O duende descobriu como se fazia levedura fresca e acostumou-se ao cheiro azedo; aprendeu que o fermento era feito a partir do sumo de meia dúzia de maçãs velhas misturado com água e farinha, e que se fazia pão diferente com farinhas iguais, devido às misturas. Compreendeu que tudo se aproveitava naquela cozinha, até as cinzas, as côdeas e o pão duro, num empadão de legumes, uma tarte de cebola, açordas ou fatias douradas.
   Dividiram a massa em pedaços e trabalharam no amassadouro: com mão leve, Rosalina projectava a massa de um lado para o outro da grande escudela. O duende ajudava, adicionando sal fino. Era preciso reter o ar à massa, para lhe conferir corpo e elasticidade. A mulher estendia-a com as duas mãos, dobrava-a sobre si mesma, num gesto rápido e vivo e recomeçava o processo, de modo a libertar a massa das bolhas de ar. Elástica, lisa e brilhante, descolando-se da superfície onde fora trabalhada, a massa ficou, enfim, pronta a levedar. O duende pôde então meter mãos ao novo ofício: formaram bolas, polvilharam-nas com farinha, colocaram-nas nos cestos de vime. Furfuris agia com a lentidão e a falta de jeito de quem aprende uma arte, mas Rosalina não pareceu importar-se. Cobriram-nos com um pano, e deixaram a massa entregue à levedura. A combustão do forno, que cozia o pão já preparado na véspera, formava a crosta dourada e estaladiça, com o calor forte da sua garganta. 
      Os braços e as palmas das mãos estavam doridos e os músculos e tendões pediam descanso. Era tempo de parar. Rosalina abriu a porta do forno e retirou os pães acabados de cozer. Deu uma pancada seca por cima de dois ou três e o som oco disse que estavam prontos.      
     — Isto de fazer pão é serviço que pede muito ao corpo! — Comentou a padeira, ao ver o ajudante derreado, de traseiro no chão, ao fundo da cozinha. — Isso, meu querido, deixa-te ficar aí à vontade, descansa um pouco, que eu vou num instante ao aliviadouro, como diz o meu marido!
   A sós, Furfuris deu mais uma olhadela em redor: regressou ao pátio interior, a sentir o calor do forno. Como a padeira se demorava, abeirou-se de uma enorme saca de farinha de trigo. Colocando-se na ponta dos pés, cheirou-a, a tentar descobrir indícios da sua velha rotina, pensando no vento que fazia girar os búzios, no velame que dançava no alto da colina, no mastro, no assobio majestoso e grave que acariciava as velas...de repente… atchiiiim! Um forte espirro fê-lo desequilibrar-se. Cambaleou, girou os braços a tentar endireitar-se, mas... tarde de mais! Caiu dentro da saca de farinha de arroz, que se encontrava atrás de si. Quando Rosalina chegou veio encontrá-lo ali, dormindo o sono dos inocentes. Sorriu à figurinha mergulhada no conforto branco e fofo, como passarito num ninho de algodão:
“Não há dúvida, há farelo e farelo!”, pensou, com carinho.

    Levou a candeia de azeite e fechou a porta da cozinha: despertá-lo-ia mais tarde. Era uma mulher paciente e costumava dizer, “a massa leveda, a gente descansa, com paciência tudo se alcança”.»
(excerto do livro «A ILHA DE MELQUISEDECH», 1ª parte, Cap. 19, págs.107-110)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Fontes do imaginário

Mergulhada na escrita do segundo volume d'A Ilha de Melquisedech, torno a abrir o livro "Deuses, Mitos e Lendas", da autoria de Jorge Campos Tavares e edição da Lello & Irmão Editores, que comprei em 1992 (escrevo sempre o nome e a data nos livros, uma mania minha) e que tão útil me foi em 2004, quando andava na fase de pesquisa para o primeiro volume desta trilogia.
Partilho convosco o início do prefácio, que ilustra bem a importância de uma temática que me apaixonou desde então, inspirando-me uma boa parte deste meu trabalho:

«Todas as Civilizações, mesmo as mais primitivas, têm as suas lendas, os seus deuses e os seus mitos, pois o Homem parece não poder viver sem o suporte de crenças e das mitologias que se criam à volta dessas crenças.
A nossa Civilização, a chamada Civilização Cristã Ocidental herdeira das Civilizações Clássicas, e da Judaico-Cristã (e de certo modo da Fenícia, da Etrusca, da Celta e da Germânica) tem um fabulário muito rico em histórias e personalidades fantásticas. Se algumas delas são originais, outras assemelham-se às concebidas por povos diferentes ou por culturas distantes que viveram noutros tempos, confirmando de certa forma o aforismo de que nada há de novo sobre a Terra.
As mitologias dos Povos de que a nossa Civilização é a continuidade, estão povoadas por personalidades fortemente caracterizadas, que se enredam em aventuras prodigiosas, e depois se debatem em situações que aparentam ser fruto de devaneios, de sonhos ou até de pesadelos - num mundo de fantasias muitas vezes sem nexo.
Esta aparência é porém ilusória.
Todos os elementos destes mitos reflectem uma concepção da Vida, uma maneira de entender e lidar com o Mundo, uma forma de transmitir conhecimento, uma maneira de enfrentar as realidades, já que certos valores universais se expressam muito melhor e mais claramente sob a forma de lendas mitológicas do que doutro modo. Por outro lado, estão implícitos nessas fábulas processos que têm que ver com o psiquismo dos indivíduos e o sentir colectivo das comunidades, processos que têm incidência no foro íntimo de cada um.
Sucede que artistas plásticos, poetas e dramaturgos, têm recorrido, ao longo dos séculos, ao acervo legado pelas mitologias do passado a fim de tirarem daí matéria-prima para se exprimirem, para conceberem e construírem as suas obras - fenómeno que, em vez de esgotar a força anímica desses mitos, lhes renova a vitalidade e a importância.»

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Dentro de nós

Autor da fotografia: LINO MATOS
"Dentro de cada um de nós existem sombras, murmúrios, presenças. Carregamos uma casa às costas, uma casa assombrada onde replicamos divisões, mobílias e tudo o resto. Não há maior assombração do que uma viagem ao interior do que somos. Os fantasmas não se escondem da luz, alguns arrumam-nos, outros deixam-nos de rastos. Não há tratadores de almas que nos possam salvar, não é coisa sequer que valha a pena desejar. Viver em paz significa aceitar que a nossa casa assombrada é uma jóia preciosa. A única que temos, a única que levaremos connosco."
(LUÍS OSÓRIO, Dez 2013)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Valter Hugo Mãe

"Pensava que quando se sonha tão grande  a realidade aprende"

(VALTER HUGO MÃE, in "O filho de mil homens")

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Urbano Tavares Rodrigues

Porque já tenho saudades da revista Egoísta e do Urbano...

Texto de Urbano Tavares Rodrigues, in Egoísta Natureza.

"As vozes da Natureza

A transparência do orvalho gemia no meu esquecimento de mim, tornava-me todo eu atenção ao saltitar das rãs amanhecendo na clara alegria do tanque grande.
O meu sangue cantava na ondulação das folhas da figueira.
Agora estou nascendo a toda a volta de mim no riso verde das searas, na brisa que se quebra contra a rude atalaia, sobranceira ao rio com seu açude e seu moinho árabe, e sacode as franjas de silêncio nos altos choupos onde as cegonhas fazem ninho, nos pegos de eu nadar quando a Páscoa aquece as águas.
E ouço os meus segredos mais secretos no gemer das oliveiras e chaparros, meus tão íntimos parentes. E a ternura das sombras estende-se, para lá do rio e das suas narcejas, pelos ermos da Deveza de São Brás até ao Guadiana.
A frescura do silêncio cai um instante sobre as lavradas e as folhas onde o meu ser se recria.
Comecei muito cedo a ouvi-las, as vozes da natureza.
Conheço-as desde que tenho memória de mim. Depois houve a doença, que me impedia de sair do «monte» e, quando melhorei um pouco, conseguiram que eu fizesse a primeira comunhão, mas nunca acreditei naquele inferno que me pintavam e continuei a fugir de casa e embriagar-me de luz, a correr ao lado dos rebanhos de vacas e ovelhas nesse meu regresso à natureza, de que me sentia pertença.
Foram o azul profundo das noites estreladas e o que o vento e as nuvens diziam aos meus ouvidos que fizeram nascer em mim palavras que depois naturalmente começaram a escrever-se.
Da pobreza e do sofrimento dos trabalhadores que me rodeavam só mais tarde me apercebi e senti a necessidade de lhes dar voz por entre as vozes da natureza e pela estrada da vida fui andando com eles no pensamento e nos actos.
Nas ruas de Lisboa e de outras cidades onde não entra o sol de Inverno, tapado por altos edifícios, experimentei a saudade profunda dos descampados alentejanos, das vozes do rio e da tristeza dos homens, dos seus cantares. Levei-os comigo para França e para o mundo, para as aulas que dei e até para as prisões onde os meus ossos enregelaram.
O livro é palavra de combate, mesmo quando não parece sê-lo, se apenas nos mostra os homens nas suas fainas e penas.
Assim continuarei sempre a escutar as vozes da natureza e a dar delas notícia."

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Zafón

Aos olhos de um dos melhores contadores de histórias...

"I have written for young readers, for the movies, for so-called adults; but mostly for people who like to read and to plunge into a good story. I do not write for myself, but for other people. Real people. For you. I believe it was Umberto Eco who said that writers who say they write for themselves and do not care about having an audience are full of shit, and that the only thing you write for yourself is your grocery shopping list. I couldn't agree more. 
As I said, I am in the business of storytelling. This is an art, a craft and a business, and I thank the Gods of Literature for that. I believe that when you pick up something I've written and pay for it, both in terms of your money and something much more valuable, your time, you are entitled to get the best I can produce. I believe this is not a hobby, it is a profession. If you're pretentious enough to believe that what you write might be worth other people's time (as I am), you should work hard enough to earn that privilege (as I do)."
(Carlos Ruiz Zafón, in "Why I Write", site oficial)

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Saudade

José Luís Peixoto
"Tenho saudades da minha madrinha a queixar-se de alguma coisa enquanto lavava a loiça num alguidar. Não se queixava da loiça, apesar do muito que lhe custava manter-se de pé, queixava-se do inverno, maldito inverno, ou queixava-se da morte, esta vida não presta para nada, porque tinha morrido algum homem, que era tão novo, pouco mais de oitenta anos. Tenho saudades do toque de finados da igreja da minha terra. Ecoava no adro, espalhava-se por cima de todos os telhados e chegava até ao campo, onde se dissolvia na aragem.
Tenho saudades do meu padrinho a carregar bolsos cheios de moedas de cinco escudos, que trocava por copos de vinho tinto nas tabernas. Até a dizer bom dia ou quaisquer palavras simples, era capaz de escolher expressões que acrescentavam humor e que nunca agrediam. As portas das tabernas eram sempre um buraco de sombra na cal. O cheiro do vinho estava entranhado nas paredes. Tenho saudades do barulho que fazia o vidro grosso dos copos vazios a bater no mármore. Às vezes, quando se chegava a essas vendas, não estava ninguém. Então, era preciso bater com a palma da mão no balcão e chamar.
Tenho saudades de ver a minha madrinha a pentear os cabelos fracos ao espelho do lavatório. Molhava os dentes do pente na água da bacia. Tenho saudades de caminhar ao lado do meu padrinho nas manhãs de verão, ao rés da parede, os dois cobertos pela sombra. Fazia-me perguntas engraçadas acerca das hortas onde eu e os outros rapazes sabíamos que havia boa fruta para roubar.
Através da distância do tempo, sou ainda capaz de ouvir as suas vozes. Enquanto escrevo estas palavras, ouço-os a repetirem frases que me disseram antes, quando estávamos no mesmo lugar, talvez sem entendermos completamente o enorme valor de estarmos juntos. Ouço o meu nome dito pelas suas vozes, pela maneira especial como cada um deles o dizia. Essa lembrança aumenta ainda mais as saudades. E, no entanto, espero que o futuro nunca me tire essa memória. Prefiro esquecer episódios, histórias, dias inteiros de cismas, do que deixar de ser capaz de ouvir a voz dos meus padrinhos.
A minha madrinha a chamar-me, o meu padrinho a chamar-me.
Hoje, ter saudades desse tempo é espécie de uma felicidade enorme por tê-lo vivido, por saber como foi. Sinto falta dos meus padrinhos porque os tive, foram meus e, através das saudades que sinto em dias como hoje, continuam a ser meus padrinhos, mesmo que os sinos da minha terra já tenham tocado por eles há tantos anos.
Mesmo que fosse possível, nunca quereria deixar de sentir saudades dos meus padrinhos, esses velhos que me encheram a vida inteira com as suas certezas, com as suas dúvidas também, com a sabedoria e com os erros que fui capaz de aprender.
A saudade não é tristeza, é comoção.
A saudade é o que fica do amor quando perdemos todo o seu lado físico, deixámos de estar, deixámos de tocar, há uma barreira inultrapassável de espaço ou de tempo, mas o amor continua, permanece. A saudade é esse tipo de amor.
A saudade é o amor."
(in UP Magazine, revista de bordo da TAP, 1 maio 2013)

terça-feira, 9 de abril de 2013

Carlos Ruiz Zafón


Why I Write

Authors are often asked why they do what they do. Often by themselves, as they sit wondering why they didn't become corporate lawyers or dentists or arms dealers. Why do we choose this strange profession that would rank right below the vocational do-gooder in a list of the least-likely-to-bring-success occupations in the world? I can't speak for my colleagues, but as far as I am concerned, I write because I really have no other choice. This is what I do. This is what I am. 

I am in the business of storytelling. I always have been, always will be. It is what I've been doing since I was a kid. Telling stories, making up tales, bringing life to characters, devising plots, visualizing scenes and staging sequences of events, images, words and sounds that tell a story. All in exchange for a penny, a smile or a tear, and a little of your time and attention. 

I write for a living. I¥ve been writing and making stuff up to make ends meet since I left school. It is my way of surviving, of earning a living and of navigating this world. It is my way of bringing something to the table, contributing what I believe is the best thing I have to offer for others to enjoy. 

I have written for young readers, for the movies, for so-called adults; but mostly for people who like to read and to plunge into a good story. I do not write for myself, but for other people. Real people. For you. I believe it was Umberto Eco who said that writers who say they write for themselves and do not care about having an audience are full of shit, and that the only thing you write for yourself is your grocery shopping list. I couldn't agree more. 

As I said, I am in the business of storytelling. This is an art, a craft and a business, and I thank the Gods of Literature for that. I believe that when you pick up something I've written and pay for it, both in terms of your money and something much more valuable, your time, you are entitled to get the best I can produce. I believe this is not a hobby, it is a profession. If you're pretentious enough to believe that what you write might be worth other people's time (as I am), you should work hard enough to earn that privilege (as I do). Which brings me back to the question of why I write. Sometimes people ask me what piece of advice I would give to an aspiring author. I'd tell them that you should only become a writer if the possibility of not becoming one would kill you. Otherwise, you'd be better off doing something else. I became a writer, a teller of tales, because otherwise I would have died, or worse. 

I am happy I survived, and I am happy we met along the way. I plan to keep on doing this until they shoot me down. I hope you have enjoyed the things I've made up for you. If you didn¥t, give me another chance. I'm always working on something new, and hopefully better. What can I do? Make-believe is my business.