Estou neste dilema. Sinto esta vergonha de me descrever quando escrevo. Se me coloco fora de mim mesma, o texto que aparece soa-me falso, carregado de artifício, como a maquilhagem ridícula de um palhaço pobre. Se transformo em palavras o que arranco do peito, sou plagiadora da minha própria vida, pois roubo o que sou aos dias que vivi, copiando as memórias, como menina mal comportada na escola, que copia pela vida do lado. Como se insistisse em escrever longas cábulas, que me transformam numa batoteira. Assim não vale, não brinco. Estou a brincar comigo mesma, abusando de mim. E que direito tenho eu? E se a minha vida se virar contra mim, ofendida pelo plágio? Outro remédio não terei senão pedir-lhe desculpa e explicar que estou parca de ideias, que me vi forçada a beber da minha existência, para convencer os outros, que também vivem as coisas que têm dentro e que andam à procura de espelhos nas palavras. Porque um espelho nos devolve o que somos e não sabemos dizer.
Se me resguardo, o texto não tem sabor; se me permito a sofreguidão da franqueza, nasce esta culpa de me despojar da vida, a cada vez que me conto. O plágio. A cópia de mim mesma, disfarçada de palavras. Desculpa, querida existência, mas o que vivo insinua-se à descarada. Não tenho como resistir. Não sei muito, não sei mais do que isto, pois a carne das minhas palavras é fraca. Não me ensinaste a ignorar-te. Era preciso ter vivido muitas vidas, para estar exausta de viver e dar-me ao luxo de desprezar-te; de desperdiçar emoções e pensamentos. Ir buscá-los fora de mim, como quem esquece uma camisola velha num armário e sai à rua para renovar o guarda-roupa. Tudo novo, a estrear. Impessoal, sem cheiro nem alma. Não, afinal não quero. Gosto do conforto das roupas velhas, que já têm o meu cheiro, a minha forma, a minha vida agarrada. Desculpa, vida, fizeste-me assim. Devia ter aprendido melhor a fingir que vivo. Inventar. Mas quando vivo não tenho como esquecer que vivi. E as palavras alinham-se, como comadres alcoviteiras, segredando-me a existência, sem pudor. Sou plagiadora dos meus dias e ando neste desconforto de não conseguir calar a minha voz. Desculpa, vida. Guarda-te, se quiseres. Esconde-te, e eu vou tentando fingir que vivo, prometo, mas não posso fugir à voz que te vai buscar.
Se ao escrevermos inventarmos, e tivermos o dom da criatividade, seremos autores de linhas de perfume. Se ao escrevermos relatarmos o que vivemos, e tivermos a capacidade de o fazer com emoção, seremos autores de páginas com cheiro. Por muito que a combinação das essências seja perfeita, deslumbrante, instigadora, só o cheiro é nosso, só o cheiro nos pertence, só o cheiro somos nós!
ResponderEliminarO que é belo contempla-se! O que é vivo sente-se!!!
Obrigada, caro Pas(ç)sos, pelo seu contributo tão certeiro. Concordo em pleno! Boa escolha de palavras.
ResponderEliminar