Tu interrompias-me, com um trejeito de amargura que me deixava triste. Uma amargura impossível para alguém que ainda não viveu. Porque não acreditas em nós, no futuro? Respondias-me que te magoava de mais, que, se ainda estávamos juntos, era apenas por gostares tanto de mim. Como se esse amor não tivesse nada a ver e fosse uma doença que tivesses de tratar. Não vês que éramos duas crianças? Que eu não sabia gostar melhor de ti? Mas gostava, com o corpo todo. E os corpos, esses, usámo-los bem, para contar a nossa história. Para provar um ao outro, para nos provarmos e experimentarmos tudo o que havia a experimentar com as bocas, as pernas, os braços, as mãos. Tu eras já uma mulher quando notei o volume sobre a tua t-shirt amarela, lembras-te? Escondias o corpo que se ondeava, envergonhada com as formas redondas que não tinhas como esconder, no calor do verão. Eu maltratava-te, com a minha falta de jeito, mas éramos o par de namorados mais famoso do colégio. Invejavam-nos. Suspiravam por um amor assim, tão cheio de ânsias, lágrimas e escândalos.
Já não há futuros assim. Porque eu acreditava que, por mais desajeitados que fossemos, iríamos aprender juntos a arte de viver. Porque me entraste na pele, atravessaste todas as minhas células e ficaste aqui, no núcleo de mim. Fui sendo várias pessoas, agigantando-me, aprendendo a ser o que não sabia ser contigo. Hoje a carne não é a mesma, tem história, tem tempo. Mas quando lhe pergunto se ainda te conhece, diz-me que está contigo todos os dias, sem que eu saiba, cúmplice daquele outro bocado de matéria, feito de válvulas atravessadas pelo sangue, aquele pedaço pulsante para cima do qual atiram as culpas do amor. E esse, o coração? Esse ri, espantado com a minha inocência, por ver que entreguei ao tempo a responsabilidade de te arrancar do corpo. Como se ele, o tempo, fosse aspirador que aspirasse a ficar com a nossa história, sorvendo-a, camada por camada, até conseguir ver os nossos dias numa tela de cinema, porque fomos um filme invulgar, irrepetível. Não, o tempo não conseguiu penetrar-me como tu. Continuas aqui, no núcleo do que sou, na carne, na memória. Entras-me nos sonhos com o à-vontade de quem pertence à casa, com a destreza de quem nunca chegou a sair. E a cada vez que te visito, sempre me espanto e digo para comigo: parece que foste ontem. Que faço eu com este nosso futuro mais que perfeito, que tenho dentro? Não, não te mexas. Não saias do meu corpo, por favor, mas não entres na minha vida. Deixa estar assim, este amor sublime na distância, sem a vulgaridade dos dias, como quem ama o mar ao longe. Não me digas a verdade, não me recordes. Hoje eu sei, juro-te que sei, pois o tempo, finalmente, passou por mim também. Deixa-me viver a vida dos outros, a vida que se espera de nós, e voar para dentro de ti de vez em quando, para te fazer criança outra vez. Deixa que sejamos reticências, onde tudo cabe, até o futuro que poderíamos ser, mas que não seremos nunca. Estamos presos num castelo de gestos infantis, que erigimos num tempo sem muralhas. Fui ponte levadiça e deixei-te entrar. Encerrei-te dentro de mim para sempre.Por isso deixa estar assim. Deixa que o fosso da vida corrente se afaste de nós, para continuarmos reis do nosso castelo. E serás um Passado sempre presente, pois se abalássemos dessa fortaleza elevada em direcção à planície, que faríamos nós dessa paisagem? Para quê trocar um refúgio de memórias, pelo refugo dos dias? Quando a amargura do tempo tenta arrancar-me o desejo, o desejo mais profundo, lembro-me de nós. E torno a pegar nos braços, chamando por ti, para construirmos juntos um novo castelo. Perdoa-me, sim? Por insistir em construir, dentro de mim, todos os futuros que desperdicei.
(publicado no blog “A DEVIDA COMÉDIA", por MIGUEL CARVALHO, 23 Novembro 09)
http://adevidacomedia.wordpress.com/2009/11/23/
(publicado no blog “A DEVIDA COMÉDIA", por MIGUEL CARVALHO, 23 Novembro 09)
http://adevidacomedia.wordpress.com/2009/11/23/
Divinas palavras! Parece ser impossível descrever o amor de forma diferente! Apaixonante. Apaixonado. Brilhante!
ResponderEliminar