sábado, 28 de novembro de 2009

A dor e a insónia


2.58. A dor não me deixa dormir. Não, não é uma dor metafórica, uma figura de estilo, é uma dor real, física. A mão esquerda sobre labaredas, que me comem a carne. Os ovos verdes que fazia para o almoço saíram-me da pele: ao retirar o óleo não aproveitável da fritadeira, encontro o corpanzil do cão, encostado aos meus pés e, num movimento brusco para não me desequilibrar...o desastre. O óleo a ferver cai sobre a mão esquerda. Água fria abundante, clara de ovo. Almoço numa aflição constrangedora, as lágrimas correm, ofendidas com este fogo que me consume os dedos. O meu marido transformado em enfermeiro de serviço. Farmácia, pomada, compressas esterilizadas, ligadura. Nome de índio: pata branca. Pouco depois da meia-noite tentei dormir, depois de umas páginas da escrita maravilhosamente triste de Clarice Lispector. Impossível. Os analgésicos proporcionam-me um alívio momentâneo, mas horas depois volta o ardor na pele e a pulsação fervilhante da carne que queima. Não pude tomar nova dose e assim me obriguei a amigar-me desta dor nocturna e insone. Levanto-me, desisto do sono, e instalo-me no escritório, com o ventilador ligado, pijama, casaco de lã, roupão e manta sobre as pernas. Sim, o frio do inverno transforma-nos em velhos mendigos, que imploram um pouco de calor. 3.34 e eu aqui, entregue a esta dor ridícula, em vez de estar no conforto do edredão. O coração na ponta dos dedos, a pulsar. Uma dor que não é figura de estilo. A dor real não serve a literatura. Nenhum dos males do corpo é literário. Como cultivar a mente, quando o corpo domina? Quero escrever e tudo o que sinto é este sofrimento de chama, como se me derretessem os dedos com um maçarico. 3.48. Escrevo com o indicador direito. A mão esquerda aguarda que a dor se acalme. Caprichosa, ordena que lhe dê alívio, com nova quantidade de químicos. Não lhe faço a vontade. Oito em oito horas, dizem. O sono apodera-se de mim, o corpo implora-me que o leve para o aconchego da cama e eis que a dor retorna…4.01…4.07…4.14…

Roubei a imagem aqui:
http://olhardireito.blogspot.com/2009/01/fogo.html

2 comentários:

  1. Então Verinha...julga-se a Joana D'Arc desta terra?
    Eu já deitei fogo à cozinha! Mas graças a Deus só queimei os armários....
    Para a sua escrita , a esquerda é mau, mas já imaginou se era a direita?
    Bom, eu sou mesmo assim, acho sempre que podia ser pior....
    Espero que já esteja melhor, e que hoje já possa dormir com o seu edredão...mas é melhor pôr a mão de fora, pois deve dar-se melhor com o frio....
    Beijocas

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  2. Querida Bé...!
    Pronto, já me fez rir com a sua boa disposição! Sim, podia ter sido bem pior e ainda hoje disse isso ao jantar: é que podia ter caído por cima do Gastão, com a fritadeira em peso e aí teria sido uma desgraça MESMO! Assim, foi só um azar. A pomada é maravilhosa, já estou pronta para outra!
    Um grande beijinho e obrigada pelo apoio moral!

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