Não se podia dizer que o futuro morto fosse figura popular na aldeia, pois até se preparava já um festim para comemorar o feliz acontecimento. Sentia-se um clima de alívio no ar – as senhoras bamboleavam-se mais à vontade pelas ruas, os cavalheiros passeavam agora de peito inchado e cabeça erguida, as crianças arriscavam trazer os seus brinquedos favoritos para a calçada e até os cães pareciam zombar dele, passando defronte à pequena janela de grades, a ladrar e a abanar as caudas, como quem diz, Anda vá, tenta dar-me agora um pontapé a ver se consegues!
O carrasco é que não estava feliz com o trabalho. Encontrava-se num terrível dilema, desde que fora chamado para a tarefa – é que o malandrim em questão estava enamorado da sua filha – e essa era talvez a única coisa pura que conseguira construir no seu coração de pedra. Desgraçadamente, também esta se deixara seduzir por aqueles doces olhos de gazela, e pelas palavras de poeta que haviam arrancado moedas de prata às damas mais abastadas e carentes de afectos. Até que num dia como outro qualquer, fora apanhado e condenado por mil pequenos crimes que tantos haviam ofendido. E agora não havia como fugir à fatalidade. Fernando Casco, um dos mais conceituados carrascos do país, tinha que dar uma ajuda técnica e moral na hora do enforcamento do hipotético genro. Enquanto pendurava, com a ajuda de um colega, as braçadas da densa corda que iria apertar o gargalo do homem, desabafava com os seus botões, Dava dez mil réis para poder estar, a esta hora, sentado à sombra do meu alpendre, em Coimbra, a beber uma caneca de sidra!
Mas ninguém lhe adivinhava os pensamentos. Dele nada mais se esperava do que um coração engelhado por todas as vezes que o sino tocara pelos condenados. Fernando Casco não passava de um instrumento de morte. Na sua cegueira, o povo não se via como o verdadeiro carrasco: homens, mulheres, crianças e velhos que, indignados com o engano de uns olhos negros e mil palavras de açúcar, torciam as mãos impacientes, à espera que se fizesse justiça.
Fernando Casco nem sequer odiava o homem. E esse ódio daria imenso jeito, para mitigar a sua culpa. Mas não. Suspirava por terminar a tarefa e voltar para a sua casita, encontrar o ombro maciço da mulher e pousar nele o rosto estrangulado de tristeza:
– Pronto, Nandinho, foi só mais um dia de trabalho. Deixa-te estar aí sossegado, que eu preparo-te um grogue bem forte e umas fatias de broa, para te regalares, anda!
No quarto, a filha iria chorar, revoltada, enquanto a mãe a tentaria consolar:
– Tens de compreender, filha, que é o trabalho do pai… se ele se recusasse, como iríamos nós pagar as contas? A vida está tão cara…
imagem: http://alertaamarelo.blogs.sapo.pt/arquivo/670161.html
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