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«Cúmplice, este mundo sempre acomodou gente acomodada. Mulheres que ameaçam, ao ritmo da
sua raiva, Olha que eu vou-me embora, não aguento mais isto, sempre quero ver
como te safas sem mim, mas ficam, vão ficando, e os anos passam e o medo
cresce, à medida que o corpo se enruga e o futuro se contrai, na flacidez dos
sonhos por cumprir. Não é amor, é desistência. O rancor e o azedume a invadirem
o lugar da paixão. A acusação guardada em todos os silêncios, Olha bem,
lembra-te da tua fome, de como eu era bela e vê agora como estou, vê o que
fizeste de mim, como se ele fosse o autor de cada oportunidade desperdiçada,
cada golpe sofrido nas arestas do tempo. E também ele se reforma, ciente de que o mercado da carne mais fresca
tem agora uma clientela com a idade dos seus filhos, uma outra geração
amadurecida, de leitura impossível, a vibrar em festivais de música estranha, lugares
e tendências que são outros, o tónus muscular excitável dos miúdos, em desafio,
tanta vida por viver enquanto eles, da noite para o dia, são tratados por ‘senhor’
e o riso delas é trocista ou assim parece, como quem reage, Tenha juízo, não vê
que é um velho. Não, nem sempre é amor, é sentir o pulso à hora tardia num caminho
sem retorno, seguro e sem abismos, persistir na desistência, menos que renúncia,
a ver se iludem a solidão, Já que aguentei até aqui, não vou sair agora, fico-me
com esta, que me conhece do avesso e me atura mesmo assim, já nos sabemos de
cor, não há surpresas. Nem o cansaço lhes permite a presunção. Por isso ficam. Permanecem
juntos como se fosse amor, a ungir a liberdade, a fingir, a fugir à trabalheira
de encaixotar os tarecos, procurar casa, fazer contratos de água, luz, gás, e
comprar móveis, lençóis, frigoríficos e colheres de pau. Para escapar à
incerteza que habita os recomeços tardios, no anoitecer das suas vidas.»
(em construção)
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