sexta-feira, 2 de março de 2018

Desistência

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«Cúmplice, este mundo sempre acomodou gente acomodada. Mulheres que ameaçam, ao ritmo da sua raiva, Olha que eu vou-me embora, não aguento mais isto, sempre quero ver como te safas sem mim, mas ficam, vão ficando, e os anos passam e o medo cresce, à medida que o corpo se enruga e o futuro se contrai, na flacidez dos sonhos por cumprir. Não é amor, é desistência. O rancor e o azedume a invadirem o lugar da paixão. A acusação guardada em todos os silêncios, Olha bem, lembra-te da tua fome, de como eu era bela e vê agora como estou, vê o que fizeste de mim, como se ele fosse o autor de cada oportunidade desperdiçada, cada golpe sofrido nas arestas do tempo. E também ele se reforma, ciente de que o mercado da carne mais fresca tem agora uma clientela com a idade dos seus filhos, uma outra geração amadurecida, de leitura impossível, a vibrar em festivais de música estranha, lugares e tendências que são outros, o tónus muscular excitável dos miúdos, em desafio, tanta vida por viver enquanto eles, da noite para o dia, são tratados por ‘senhor’ e o riso delas é trocista ou assim parece, como quem reage, Tenha juízo, não vê que é um velho. Não, nem sempre é amor, é sentir o pulso à hora tardia num caminho sem retorno, seguro e sem abismos, persistir na desistência, menos que renúncia, a ver se iludem a solidão, Já que aguentei até aqui, não vou sair agora, fico-me com esta, que me conhece do avesso e me atura mesmo assim, já nos sabemos de cor, não há surpresas. Nem o cansaço lhes permite a presunção. Por isso ficam. Permanecem juntos como se fosse amor, a ungir a liberdade, a fingir, a fugir à trabalheira de encaixotar os tarecos, procurar casa, fazer contratos de água, luz, gás, e comprar móveis, lençóis, frigoríficos e colheres de pau. Para escapar à incerteza que habita os recomeços tardios, no anoitecer das suas vidas.» 
(em construção) 

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