quinta-feira, 8 de março de 2018

Mulher

© Nanã Sousa Dias
Abriu a torneira, despiu-se, deitou-se na água quente e fechou os olhos. Afundou o rosto, deixando que os cabelos se colassem à pele. Tomou consciência de cada poro, de cada fio de cabelo. O mundo desapareceu. O coração batia, fazendo-se escutar no silêncio da tarde, no mutismo da casa vazia. Estava sozinha, não só. Apenas a sós. A Beatriz de Chico Buarque dançava na sua memória, as notas da melodia que amava boiavam no banho, encostando-se às suas coxas, ao cotovelo, entre os dedos da mão. Em breve eles iriam voltar, trazendo o ruído e o caos, a inundar o resto das horas com perguntas e apelos, com a arrogância da sua fome, o narcisismo das suas vontades.
A água agora morna lembrou-lhe o passar do tempo. Escutou a chave na porta, os risos abafados do marido e dos filhos. Chegavam com casacos e mochilas, botas, gorros, luvas e sacos. Chegavam com muitas coisas penduradas de todos os lados: da boca palavras, das mãos objectos, dos olhos o dia, do coração a saudade.
Da cozinha, empurrados pela corrente de ar, vieram os vapores do guisado já pronto. Sobre a mesa esperavam pratos, talheres, guardanapos, copos, a cesta do pão, o jarro com água. O gato de barriga cheia enroscado na poltrona de veludo, inútil e decorativo como todos os gatos.
Abandonou o banho, interrompendo a sua paz. Vinte e três minutos bem contados.
- Chegámos! - Disseram.
- O que é o jantar?
- Mãe, posso jantar a ver o Dexter?
- Mãe, posso ir a casa da Mafalda depois?
- Mamã, dás colinho, pois dás?
- Amor, compraste-me o que te pedi?
Ela sorriu e disse que sim a todos, como se, com essa afirmativa, reafirmasse a sua vida de mulher.

1 comentário:

  1. Gostei muito, senti-me logo transportado e torci para que cada minuto no universo paralelo subaquático se alargasse mais um pouquinho.

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