terça-feira, 8 de julho de 2014

A pele e o horizonte

M. acordou a meio da noite sem saber o que fazer ao corpo. Era como se a alma lhe quisesse sair de dentro, romper-lhe a pele. O corpo um cárcere, encerrando gritos que era incapaz de dar na escuridão do quarto, enquanto o marido dormia ao seu lado, tentando enroscar-se naquele corpo inquieto, que lhe fugia.
M. saiu da cama. Na mente dançavam infinitas frases que deveria escrever. O computador desligado dormia, sensato. O dia rompendo, tão cedo, pensou ela, julgando, na preguiça das suas manhãs bem dormidas, que o sol comparecia mais tarde ao encontro com o horizonte. Que sorte, pensou M., invejando aquela certeza de o sol contar com um horizonte a cada novo dia.
M. interrogava-se por onde andariam os seus próprios horizontes. E talvez por isso a alma andasse a querer sair-lhe do corpo, na certeza de ali não ter como ser sol, iluminar a pulsação do habitáculo que a prendia. A pele ainda grita, hesitante entre a ofensa e a tristeza de ver aquela alma oprimida, a querer fugir. Vai, gritou-lhe, vai ser horizonte fora de mim, que aqui apenas podes ser pernas e braços e pés e mãos...de um corpo paralisado.
E a alma foi, despida.

1 comentário:

  1. Uma escrita excelente. Gostei deste devaneio da alma em confronto com o corpo... Isso era mesmo necessidade de escrever...
    Um beijo.

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