segunda-feira, 16 de julho de 2018

O medo na voz

O talento do filho é um orgulho e o prolongamento da sua angústia. De que irá ele viver? Como irá pagar as suas contas? Aquele maldito talento abençoado por deuses mordazes, imprevisíveis, a lançá-lo para uma vida pendurada na corda bamba, um imenso ponto de interrogação. Antes fosse o poeta cujos pais, tendo lido os seus poemas, os rasgam no silêncio da noite, para que o filho jamais conheça o valor da sua musa - não passará fome - diria a mãe, prefiro vê-lo escrever relatórios e assinar cheques a ser cúmplice da sua ruína, a mão faminta traçando os magros arabescos de uma arte por aplaudir.
E é nesse momento que ele abre a voz e canta e a mãe tudo esquece, as contas, os medos, a fome e a interrogação. Será feliz, tem de ser por força mais feliz do que eu, acreditemos todos que este é um mundo melhor. E despede-se com um beijo. No abraço vai tudo aquilo que não consegue dar. A carga sobre os ombros transforma a mulher num ser diáfano, a pequenez do corpo em sintonia com o coração leve, por cada nota que o filho liberta na noite de verão. Para tudo se dá um jeito, por favor, suplica ela aos anjos. Não o deixem cair da voz abaixo.

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