quarta-feira, 19 de março de 2014

Os pais também choram

"— Trouxeste o que eu te pedi?
— Sim, toma.
Lúcia entregou à irmã, grávida do segundo filho, o grosso volume de histórias encadernadas em pele, que a avó dera a Francisca no Natal, havia vinte anos. Para espanto de Lúcia, que julgava dever-se o pedido de devolução ao facto de a irmã ter uma filha na escola e ir a caminho do segundo filho, Francisca abriu o livro quase a meio, arrancou a sua história preferida: «Um Olhinho, Dois Olhinhos, Três Olhinhos», e pousou as folhas sobre o peito da avó morta, antes de fecharem o caixão. Lúcia olhou para o pai: nunca o tinha visto chorar, a não ser quando morrera o cão. A jovem mulher lembrava-se do suor escorrendo pela testa do pai, enquanto este abria a cova sob os pinheiros bravos, as costas da mão a passar nos olhos (suor ou lágrimas?), o saco preto do lixo, a mancha de sangue na estrada.
— Teve uma vida feliz, não foi, pai?
E ela, que pensava com essas palavras dar conforto ao seu herói, que parecia, estranhamente, conter o choro, fez com que o pai expelisse, de uma vez, todo o ar dos pulmões, para se entregar a um choro desalmado, com direito a gemidos quase infantis, a cabeça baixa, o corpo curvado, ambas as mãos sobre a enxada apoiada na terra. Lúcia espantou-se. Afinal, os pais também choravam, não eram só as mães."
(excerto de um futuro livro em que estou a trabalhar) 

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