segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O chão pode esperar

Regressa à vida pé ante pé, a cabeça forçosamente erguida, mesmo que não sinta altivez no coração ou pensamento, são as ordens dos médicos. Sorrindo, ocorre-lhe que é estranha terapia, aquilo de não a deixarem pousar os olhos no chão, como quem exclama, de mão no ombro do outro

Não desanime! Cabeça erguida, sempre!

Aos poucos vai recuperando alguns gestos - aqueles que todos realizam na certeza inconsciente  de serem gestos assegurados na eternidade - caminhar, ler, escrever, cozinhar. Até o que ela odeia já pode fazer: passar  a ferro. Imagina ela, não perguntou, mas se há vapores culinários, decerto lhe será possível pôr os trapos enrugados em dia. Esforços não. Gestos bruscos também não. E a cabeça erguida, sempre! Desanimar é que também não.
Ela sente o consolo de ver uma tímida agenda formando-se com visitas às escolas, em sessões de autor com um dos seus livros. O trabalho aguarda, em documentos Word, salivando, o motor libertando uma voz rouca, de animal, com ganas de investir com o corpo inteiro; e ela ansiando por ver, esperando pela revelação do seu próprio investimento, que não seria fácil contabilizar, de entre os dez anos que lhe foram roubados. Quer libertar o seu peso, tornar-se mais  leve, mais livre para si e para os que estão perto. Quer ir mais longe.
Por hoje, foi celebrar com uma caminhada. O corpo da estrada em obras também, em bizarra sintonia, a fazer-se macio e a ganhar um pouco mais de vida. Ela recupera o aroma das queimadas, do sol na pele. As pernas deslocando-se, pé ante pé, para não assustarem a terra. De cabeça erguida, quase sempre, avança, apesar do medo. O céu não é o limite, pois lá em cima moram as estrelas, as nuvens e os anjos. Entretanto o chão pode esperar.

Sem comentários:

Enviar um comentário