quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Chuva

Nove horas da manhã. Instalada no sofá, lendo "As velas ardem até ao fim", de Sandór Marai, vejo a luz esmorecer, como se o relógio tivesse avançado várias horas e o tempo saltado para o fim da tarde. O ar tornou-se espesso, a página amarela, de papel antigo. A chuva abateu-se, aliviando o peso excessivo do céu, para devolver a luminosidade e a brancura ao papel. Entreabri a janela para sentir o cheiro da terra húmida. A tijoleira mais escura, as folhas verdes pingando, gota a gota, sobre os pés de plantas e flores enterrados em grãos cor de café. Torno a fechar a janela e regresso ao meu livro. O serra da estrela olha-me pela vidraça, arfando sem sentido, graças ao seu eterno casaco de pelo generoso, tricotado para paisagens feitas de neve. Sacode o corpanzil inteiro, de vez em quando, indiferente ao desconforto. Quer entrar, não para fugir da chuva, mas para se deitar aos meus pés, armado em bicho fiel. Não deixo. Está de castigo, como o sol, encerrado num quarto escuro feito de nuvens de antracite, que sufocam o seu calor. O musgo cresce, cobrindo a pedra, avançando sobre as ranhuras do muro. Tudo se transforma em água, tudo imerge sob a chuva sem fim, até que me sinto cavalo-marinho dentro da minha própria casa e avanço entre páginas feitas de algas e corais.

2 comentários:

  1. Vera,

    ..." Tudo se transforma em água, tudo imerge sob a chuva sem fim, até que me sinto cavalo-marinho dentro da minha própria casa e avanço entre páginas feitas de algas e corais."

    Eu sou tua fã!

    Escreves muito bem.


    Ana Simões

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  2. Linda,
    É surpreendente e bom saber que tenho uma "fã" no Recife! Muito obrigada pelo seu carinho :)

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