terça-feira, 24 de março de 2015

Adeus, Herberto Helder

A Bicicleta pela Lua Dentro - Mãe, Mãe

A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe - 
ouvi dizer toda a neve. 
As árvores crescem nos satélites. 
Que hei-de fazer senão sonhar 
ao contrário quando novembro empunha - 
mãe, mãe - as tellhas dos seus frutos? 
As nuvens, aviões, mercúrio. 
Novembro - mãe - com as suas praças 
descascadas. 

A neve sobre os frutos - filho, filho. 
Janeiro com outono sonha então. 
Canta nesse espanto - meu filho - os satélites 
sonham pela lua dentro na sua bicicleta. 
Ouvi dizer novembro. 
As praças estão resplendentes. 
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto. 
Aviões passam no teu nome - 
minha mãe, minha máquina - 
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve. 

Avança, memória, com a tua bicicleta. 
Sonhando, as árvores crescem ao contrário. 
Apresento-te novembro: avião 
limpo como um alfabeto. E as praças 
dão a sua neve descascada. 
Mãe, mãe — como janeiro resplende 
nos satélites. Filho — é a tua memória. 

E as letras estão em ti, abertas 
pela neve dentro. Como árvores, aviões 
sonham ao contrário. 
As estátuas, de polvos na cabeça, 
florescem com mercúrio. 
Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro, 
é a neve avançando na sua bicicleta. 

O alfabeto, a lua. 

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem. 
Era pesada, ao colo, cheia de neve. 
la dizendo o teu nome de janeiro. 
Enxofre — mãe — era o teu nome. 
As letras cresciam em torno da terra, 
as telhas vergavam ao peso 
do que me lembro. Começo a lembrar-me: 
era o atum negro do teu nome, 
nos meus braços como neve de janeiro. 

Novembro — meu filho — quando se atira a flecha, 
e as praças se descascam, 
e os satélites avançam, 
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem 
(eu vi): era pesada. 

O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas. 
Laranjas de pedra - mãe. Resplendentes, 
estátuas negras no teu nome, 
no meu colo. 

Era a neve que nunca mais acabava. 

Começo a lembrar-me: a bicicleta 
vergava ao peso desse grande atum negro. 
A praça descascava-se. 
E eis o teu nome resplendente com as letras 
ao contrário, sonhando 
dentro de mim sem nunca mais acabar. 
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua 
batia pelo ar fora. 
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios 
do meu nome negro, e nunca mais 
acabava de nevar. 

Era novembro. 

Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio 
crescendo com toda a força em volta 
da terra. Mãe - se morreste, porque fazes 
tanta força com os pés contra o teu nome, 
no meu colo? 
Eu ia lembrar-me: os satélites todos 
resplendentes na praça. Era a neve. 
Era o tempo descascado 
sonhando com tanto peso no meu colo. 

Ó mãe, atum negro — 
ao contrário, ao contrário, com tanta força. 

Era tudo uma máquina com as letras 
lá dentro. E eu vinha cantando 
com a minha paisagem negra pela neve. 
E isso não acabava nunca mais pelo tempo 
fora. Começo a lembrar-me. 
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos 
de peixe, tua coluna 
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha 
cantando na neve que nunca mais 
acabava. 

O teu nome negro com tanta força — 
minha mãe. 
Os satélites e as praças. E novembro 
avançando em janeiro com seus frutos 
destelhados ao colo. As 
estátuas, e eu sonhando, sonhando. 
Ao contrário tão morta — minha mãe — 
com tanta força, e nunca 

— mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora. 

Herberto Helder, in 'Poemas Completos'

Funchal, 1930 - Cascais, 24 Março 2015

1 comentário:

  1. Gosto muito do poema que escolheste para lembrar Herberto Helder. Ele é eterno...
    Beijo, amiga.

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