Meu pai, 1972 |
O meu pai é marinheiro. Oficial da Marinha. Reformou-se como comandante, desembarcou de vez e foi morar com a minha mãe para a grande casa de férias, que alberga uma enorme parte das minhas recordações. Na casa, espalhado pelas paredes toscas, pintadas de branco-espuma, em armários e gavetas, sobre os móveis, sempre houve um rol de objectos que contam histórias do mar antigo e recente: astrolábios, sextantes, compassos, bússolas, cartas e triângulos náuticos, lemes, nós, pequenas réplicas de embarcações, bandeiras náuticas, altímetros... mas também cintos de chumbo, barbatanas, óculos de mergulho, rações de emergência para náufragos, dentaduras de tubarão e até um pequeno crocodilo embalsamado, em cuja bocarra aberta surgiam teias que ninguém queria retirar.
Uma amiga, que há treze anos acompanha o que vou escrevendo, disse-me um dia que eu tenho "essa coisa do mar, por causa do teu pai". Deve ser a tal história, quem sai aos seus. Haverá coisa mais literária do que um farol, sempre de sentinela, num cabo ou promontório batido pelas ondas? Pronto. Parece que os meus textos estão cheios de coisas marítimas, metáforas, lembranças, alusões a cheiros e texturas, inclusive o perfume que se escapava, em serpentinas, dos vários cachimbos do pai João Manuel. Há muito tempo que deixou de fumar. Mas ainda cuida do jardim, que pede ao meu pai esforços que me custa imaginar, além dos muitos gatos que vão tendo desde que lhes ofereci o primeiro - Fellini - ao engravidar do meu filho.
O meu pai, em terra firme desde que se reformou das viagens que o levavam para longe de casa durante meses, permanece, de uma forma ou de outra, ligado ao mar que lhe está no sangue. Um dos seus hobbies é a construção de barcos, a partir de kits sofisticadíssimos, cuja perícia e paciência implicam anos de trabalho. Tem cinco filhos e já construiu vários, entre os quais o Bismark, um imponente couraçado da II Guerra Mundial. Para mim, escolheu uma réplica bem diferente, que aguardo com impaciência. O meu filho também: é o Soleil Royal, um galeão lindo de Luís XIV. Já estou a vê-lo, partindo do porto de Havre ou de Brest, envolto em brumas.
Hoje, que sinto na pele a impiedade do tempo que nunca deixa de navegar connosco, levando-nos para um alto-mar de onde, um dia, jamais regressaremos, só desejo que Deus lhe dê saúde, que o meu pai continue, por mais algumas marés, a fechar e a abrir as escotilhas da casa enorme, a cuidar da sua tripulação de gatos junto da minha mãe, e a construir a sua frota num mar de faz-de-conta, enquanto eu, na ferrugem das palavras salgadas pela memória, vou tecendo uma rede de páginas de espuma, como quem apanha conchas à beira-mar, para que o passado não fuja.
Dedico este texto ao meu pai.
Os cinco filhos e a mãe dos mesmos (Vera Mãe), Agosto 1969 |
Eu, Eduardo, Sofia, Mariana, Pedro
Os cinco filhos, que é raro ver reunidos numa fotografia, porque a vida não deixa
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O universo era um vasto oceano onde nós, pequenos corsários, poderíamos avistar a qualquer momento uma vela no horizonte, um navio cheio de riquezas para tomarmos de assalto; sabre na mão, como no livro do guarda-marinha Howard Flynn que a Sofia segura. Dias felizes onde tudo era possível.
ResponderEliminarOs nossos pais esperavam que fossemos melhores; que não caíssemos nos mesmos erros das suas vidas de adulto. Peço desculpa. Caímos. Já não velejamos em elegantes fragatas mas em salva-vidas procurando no horizonte uma embarcação que nos salve (ahahahha ). Mas tivemos uma infância feliz. Podemos estar a meter água por todos o lados… mas esta imagem que guardamos no coração verá sempre “velas no horizonte”, o resgate.
O meu Pai, o fotógrafo, pode não estar na fotografia, mas estará sempre visível, presente nas nossas vidas.
Obrigado (Mãe e Pai).
Pedro Vilhena
Querido mano, não resisti a trazer para aqui estas palavras que escreveste no facebook, a propósito da velha e famosa fotografia, que o nosso pai tirou poucos dias depois de eu nascer: a família completa, ele, pai, quase sempre, atrás da lente de uma máquina, a agarrar as nossas memórias para sempre. Obrigada, Sofia, pelas fotografias. :-)
ResponderEliminarAdorei Vera achei assim... Uma ternura e essa dos farois tem graca nunca me lembrei donde viria a minha adoracao por farois toda a vida e do barulho da ronca a tocar sempre me fez lembrar murches... Mas tambem adoro moinhos. Um grande beijinho ao nosso pai :
ResponderEliminar:) Mariana