segunda-feira, 30 de julho de 2018

O propósito das imperfeições propositadas

A minha mãe hoje telefonou-me. Eu tenho quase 50 anos, sou a mais nova de cinco irmãos, podem por isso imaginar a sua idade. Começou há pouco a ler o meu romance, acabado de sair, e ao ver a edição ficou aflita:
- Sabe, Vera, estou muito preocupada. Olhe que estou a ler o seu livro e todos os palavrões aparecem riscados! Você veja lá se é possível fazer alguma coisa!


Ri-me e achei uma ternura. Depois expliquei que era propositado, descansei-a, recordei-a do que escrevi na nota de autor, na qual refiro essas rasuras como uma piscadela de olho ao meu ofício de revisora de texto, em que muitas palavras ou frases são entregues assim, com rasuras e texto alternativo, noutra cor.
Fez-me lembrar um episódio de há três décadas, quando comprei, no Centro Comercial Fonte Nova, umas calças de ganga métallique, em voga nessa época, tinha eu cerca de vinte anos de idade. Quando pus as calças nas mãos hábeis da Idília, a empregada que me viu crescer, para que fizesse as bainhas, manifestou a sua indignação:
- Ah, isto não está capaz! A Verinha foi enganada!
E eu a dizer que não, que era mesmo assim.
- Mesmo assim?! Então não vê que isto está tudo gasto, aqui na cintura e nos bolsos? Estas calças não são novas, olhe p'ra isto, p'rá ganga toda coçada, toda gasta!  Isto já foi muito usado! E ainda por cima...14 contos?!
De nada adiantaram as minhas explicações, que eu era muito novinha, coitadinha, que ela já tinha vivido muito e visto de tudo e, comigo pela mão, entrou na loja do centro comercial, pousou as calças de ganga métallique no balcão e a cena repetiu-se:
- Aah não! Não me vai dizer que isto é mesmo assim, que a mim não me engana!
- Mas olhe que é... - insistia a empregada, a trocar olhares quase trocistas comigo - é o modelo...
A Idília:
- "É o modelo...é o modelo...". Não senhora. Venho devolver as calças, que isto não está capaz.
Entregámos o talão da compra e saímos com os 14 contos. A Idília levava um ar triunfante, de quem não se deixa enganar e acaba de resgatar uma jovem inocente das garras da vigarice.
- A Verinha é muito querida mas tem de ter cuidado! Há por aí muita malandragem.
No dia seguinte lá voltei à loja com os 14 contos e mais uns trocos. Assim que entrei, a logista perguntou:
- Vem buscar as suas calças?
- Sim, venho. E desculpe lá aquilo de ontem, mas não pude fazer nada.
- Pois, eu percebi. Pelo sim pelo não, guardei.
- Muito obrigada. E é para fazer bainha, se faz favor.

O fosso entre gerações. Ignoro o que a minha mãe pensará da minha extravagância gráfica. Palavras riscadas?? A sério...?! Pergunto-me quantos mais leitores distraídos (pois explico logo ao início, na nota de autor) irão afligir-se ou ficar desconcertados, perante rasuras e outros atrevimentos gráficos e de texto pouco usuais, nesta edição, nomeadamente um queijo "flamingo" (pois era assim que eu dizia em pequena). E aparece algures, até, a troca de um nome: Maria José, uma personagem, surge, num flashback, com o nome da vida real, a quem certas memórias foram roubadas - a minha própria mãe, a quem também roubei o nome -, como se o narrador, que escreve em tom de diário, se tivesse esquecido de ficcionar:
"Mas oh Vera, a menina só lê comunistas!"
Modernices. Defeitos propositados. Um espécie de modelo métallique, nesta edição.



segunda-feira, 16 de julho de 2018

O medo na voz

O talento do filho é um orgulho e o prolongamento da sua angústia. De que irá ele viver? Como irá pagar as suas contas? Aquele maldito talento abençoado por deuses mordazes, imprevisíveis, a lançá-lo para uma vida pendurada na corda bamba, um imenso ponto de interrogação. Antes fosse o poeta cujos pais, tendo lido os seus poemas, os rasgam no silêncio da noite, para que o filho jamais conheça o valor da sua musa - não passará fome - diria a mãe, prefiro vê-lo escrever relatórios e assinar cheques a ser cúmplice da sua ruína, a mão faminta traçando os magros arabescos de uma arte por aplaudir.
E é nesse momento que ele abre a voz e canta e a mãe tudo esquece, as contas, os medos, a fome e a interrogação. Será feliz, tem de ser por força mais feliz do que eu, acreditemos todos que este é um mundo melhor. E despede-se com um beijo. No abraço vai tudo aquilo que não consegue dar. A carga sobre os ombros transforma a mulher num ser diáfano, a pequenez do corpo em sintonia com o coração leve, por cada nota que o filho liberta na noite de verão. Para tudo se dá um jeito, por favor, suplica ela aos anjos. Não o deixem cair da voz abaixo.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Como se

Li hoje a frase "Nunca me apaixonaria por um homem que não fosse cavalheiro", como se a paixão fosse racional e respondesse a princípios e teorias, uma fórmula matemática, limpa, sem sombras nem pasmo, sem raiva nem dor, sem dilema, e permitisse pesar os prós e contras, um sentimento sob o nosso controlo absoluto, que jamais nos faria virar do avesso, a deitar por terra todas as convenções e conveniências: ok, depois de muito reflectir, não irei apaixonar-me por este homem.

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terça-feira, 3 de julho de 2018

Entre Mulheres

NAS LIVRARIAS A PARTIR DE 25 DE JULHO
Sinopse do romance:
Percorrendo um espelho de memórias, que parte das ruas de Lisboa e se ramifica na infância, nas conjecturas e dilemas, numa sofrível determinação, na incerteza e nostalgia de um homem a sós, o leitor vai descobrindo o seu próprio reflexo. A reinvenção dos laços familiares quebrados, a sua justiça ou merecimento, dificilmente serão previsíveis ou consentidos. O projecto da escrita, devorado com absurdo idealismo, vai simbolizando a metamorfose a que assistimos página a página, impulsionada pela descoberta da leitura e o erotismo de alguns encontros. Neste romance, as mulheres que flutuam na esfera de emoções do protagonista – filho, marido, irmão, pai e amante –, constituem o pilar da sua salvação. Apesar de tudo. Ou não fosse a vida.
A capa: 
Pretendia para este livro uma capa quente, que remetesse para algo sensual, embora não se trate de um romance erótico, nem nada que se pareça. Assim que decidi publicá-lo, passei os olhos pelas fotografias fine Art do meu marido, Nanã Sousa Dias, no site americano photo.net, onde ele tem quase seiscentas fotografias e, assim que me cruzei de novo com esta, a preto e branco no original, imaginei o que poderia fazer com ela: "virada a chocolate, dedicado à Antónia (personagem) e cortada, de modo a enquadrar-se no formato de livro". O designer da poética edições compreendeu bem a minha ideia, o atelier 004 deu uma pequena ajuda na fonte de letra, a minha querida editora Virgínia do Carmo teve todas as atenções para com os pormenores, fez os últimos ajustes e eis que a capa surgiu, a partir desta fotografia...

© Nanã Sousa Dias, United Tones of Black & White #7

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Entre mulheres - Diário de um lisboeta (romance)

Depois de umas semanas de silêncio, trago novidades. Aqui vos deixo a notícia do meu novo livro. Disponível em pré-venda com preço especial até dia 15, aqui.