segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Gavetas

Para ilustrar a palavra de ordem entre os escribas (eles sabem quem são), trago um texto que tenho em gaveta, porque somos assim, como o quadro de Dalí, compostos por gavetas irregulares e semi-abertas (ou semi-fechadas?) na solidão de um quarto, pedindo uma espécie de socorro ao mundo que vive lá fora, sob a luz, num gesto de mão que não sabemos bem se representa aceno e convite, medo ou proibição. E o corpo assim, descarnado, o esqueleto quase em exposição, cada gaveta uma costela.

Quando era pequena, tinha a mania de bafejar os vidros das janelas e fazer desenhos. Era uma maneira de matar as horas de inverno e fazer alguma coisa alegre daquela condensação fria e triste, enquanto se ia revelando o mundo lá fora, à medida que o desejo avançava. Recordando isso, saíu-me isto...
Hálito

Sou criança sem recreio
Atrás de um vidro de inverno

Lanço pequenas nuvens brancas
Sobre os olhos desta casa

Na tela limpa, sem receio
Transformo os dedos em pintores
No hálito morno das minhas asas
Desenho amores que desprezei
No longo inferno das minhas dores.

Em dias maltratados
Limpá-los, é tudo o que sei
Com aerossóis e jornais do dia
Onde letras miúdas de injuriados
Contam a ofensa das fortunas
Dos submarinos e foguetões
Pontes e estradas e até carris
E fecho a janela, com débil prudência
Ao mundo de bandidos e ladrões
E temo escapar por um triz

Já não traço sóis nem tantas meninas
Não trago amores nem luas frias
Não espreito as abelhas nas flores do jardim
Escondida à janela cristalina
Escondida do mundo, perdida em mim

A pureza teimosa do vidro
Que os meus dedos já não embalam
Quer ser jardim, menina, cupido
Mas ao olhar as lágrimas frias
Escorrendo em gelo derretido
Só vejo ruas, olho os candeeiros
E a cinza invernosa, sem abrigo
E, ai de mim! Terei de os limpar
Quando a janela deixar de chorar

Os olhos da minha meninice
Não são anseios, não são retiros
Nas mãos confirmo um novo pesar
As sombras risíveis da velhice
E guardo o meu hálito já crescido
Para a amargura dos meus suspiros

(Poema meu, Setembro 2010, imagem: "O Contador Antropomórfico", 1936, SALVADOR DALÍ)

4 comentários:

  1. Fantástico! Sobretudo porque em ti, se me permites a ousadia, a fase dos poemas continua e aquece o coração ler-te neste dia de Inverno de vidros e olhos embaciados.

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  2. Obrigada, querida Rute :-)
    Claro que não me importo, como adivinhas, moram as duas em mim, a dos poemas como este (tenho outros, do Lado Negro...) e a outra, que os limpa com papel de jornal, pagando impostos, a brincar ao faz-de-conta que vive no mundo dos crescidos. (Con)vivem as duas pacificamente ;)

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  3. Oh Vera,
    Mas que surpresa, que maneira bonita de falar do imaterial, do frágil e do risível.
    Felizmente é capaz de transmitir ao papel estes sentimentos. Cá estão as recordações de infância a comandar-nos a cabeça no presente. E que bom que assim seja porque assim, sabemos de onde vimos, porque estamos, e porque sentimos…
    Vera, e acerca da tal gaveta… é muito grande? está meio aberta ou meio fechada? está meio cheia, meio vazia?
    Esteja como esteja, e que tal começar a tirar o que está no fundo e publicar?
    Fico à espera!

    Com amizade
    Mário de Sousa

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  4. Querido Mário,
    Que bom sabê-lo aí em Dakar, a fazer-me companhia ao longo deste blog!
    Pois é...a infância, o Presente adulto, o eterno dilema, tantas formas há de o dizer... esta foi apenas a minha.
    Quanto à gaveta, está meio cheia, claro! No dia em que começar a publicar ficará meio vazia, o que parece uma forma contraditória de olhar a famosa expressão, não é? Melhor será dizer, como a Patrícia Reis me confessou há dias: "já me sinto grata por ter o próprio do copo...", ou, neste caso, a própria da gaveta. O resto, será o fado a ditar. Até lá, vou escrevendo...
    E o Mário também, espero!

    Com amizade,
    Vera

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