sábado, 23 de abril de 2011

Lídia Jorge

Como só me aconteceu com poucos livros, li "O Dia dos Prodígios" duas vezes seguidas. Porque fiquei assim, com uma vontade urgente de regressar a Vilamaninhos e à Carminha limpando a sua janela, na primeira página. Deixo aqui uma fatia de prosa sem diálogo, em jeito de amostra de uma escrita singular, de um livro assombroso. José Pássaro Volante, Branca, José Jorge Júnior, Jesuína Palha, Macário, Manuel Gertrudes e outros personagens inesquecíveis, no prodígio das palavras que trocam uns com os outros, movimentando-se num cenário descrito em pormenor, num jeito que espicaça a nossa imaginação e os nossos sentidos. Livro maravilhoso e muito, muito português, terminado em 1978, em Boliqueime, no Algarve, de onde a autora é natural.

"Já pela tarde Carminha abriu a janela do quarto para olhar verdadeiramente a rua, e pensou. O futuro é o presente a andar lentamente para trás. Na verdade abafava-se dentro de casa ou à janela, e mesmo sobre a calçada se ouvia o sussurro dos gafanhotos pedalando de pasto em pasto. Os telhados ondulavam sobre as paredes como se fossem cair e as paredes das casas abriam bocas como se fossem romper-se. Desabar no chão. As caiações eram tão últimas que já resplandeciam de amarelo e se listavam de ocre definitivo. As lagartixas postavam-se esgalgadas como se fossem donas de todos os muros. Pelos quintais as piteiras de folhas e espinhos estavam espetadas e ferozes como se fossem unhas. Aceradas. Atrás das casas as oliveiras  estavam cinzentas como se fossem mariolão do mato. Mas sem flores. O rio em baixo tão seco como se fosse uma estrada de pó, o mar distante como se fosse uma fotografia. E do outro lado, a linha da terra esbatia-se cinzenta na luz como se fosse deserto. Carminha recolheu o olhar sobre os pés. Os ladrilhos tão fendidos como se fossem mosaico, o algermolho de vinagre como se fosse purgante, o orégão cheiroso como se fosse incenso. E as paredes. Levantadas como se fossem prisão de todos os móveis. Carminha desviou o cortinado. Pelas ruas as sombras nítidas como se fossem pintadas. Independentes dos seres. As gateiras tão largas como se fossem para bácoros. E as cavalariças. Sabia-se. Tão cheias de palha como se fossem só para galinhas. Pelas cozinhas, espirros tão fortes como detonações de cuspo e ar. Pelos postigos, cabeças pretas espreitando como se fossem vigias,  e no largo homens suando como se fossem de sal. E o sol tão rubro como um forno incendiado. Um afrontamento na alma. A tarde inteira a cair como se fosse uma porta. E Carminha pensou. O pó desta casa. Pode-se pegar pelas pontas e dobrá-lo. Fazer com ele um embrulho como papel de jornal."
(LÍDIA JORGE, 1º romance, 1980)

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