terça-feira, 26 de abril de 2011

Navegando...

"Uma manhã, pelas três horas, enquanto eles sonhavam tranquilamente sob a sua mortalha de nevoeiro, ouviram como que um ruído de vozes, cujo timbre lhes pareceu estranho e desconhecido. Olhavam uns para os outros, os que estavam no tombadilho, interrogando-se num relance dos olhos:
- Quem é que falou?
Não, ninguém; ninguém dissera nada.
E, efectivamente, aquilo tinha toda a aparência de vir de fora.
Então o que estava encarregado da trompa, e que a pusera de parte desde a véspera, correu acima, soprando com toda a sua força para soltar o longo mugido de alarme.
Só aquilo já fazia estremecer, no silêncio. E depois, como se, pelo contrário, houvesse sido convocada uma aparição por esse som vibrante, uma coisa grande, imprevista se desenhara em pardacento, se erguera ameaçadora, muito alta, ao pé deles: mastros, vergas, cordame, um desenho de navio, que se esboçara no ar, por toda a parte ao mesmo tempo e de um só traço, como fantasmagorias para assustar, que, de um só jacto de luz, são criadas sobre velas pandas. E outros homens apareciam ali, a tocar-lhes, debruçados na amurada, mirando-os com os olhos muito abertos, num despertar de surpresa e de espanto.
Atiraram-se aos remos, aos mastros de sobressalente, aos croques, tudo quanto se lhes deparou de comprido e de sólido, - e apontavam-nos para fora, para manter a distância daquela coisa e dos visitantes que lhes chegavam. E os outros também assustados, estendiam para eles paus enormes para os repelir.
Mas houve apenas um ligeiríssimo estalido nas vergas, por cima das cabeças, e as mastreações, por um momento enganchadas, logo se desembaraçaram sem avaria alguma; o choque, muito suave, por aquela calma, estava completamente amortecido; fora mesmo tão fraco, que realmente parecia que o outro navio não tinha massa, que era uma coisa mole, quase sem peso...
Então, passada a surpresa, os homens puseram-se a rir; reconheciam-se uns aos outros:
- Ó gente do Maria!
- Eh! Gaos, Laumec, Guermeur!
A aparição era o Raínha Bertha, capitão Larvoer, também de Paimpol; aqueles marinheiros eram das aldeias dos arredores; o alto, de barba preta cerrada, mostrando os dentes quando se ria, era Kerjegou, um de Ploudaniel; e os outros vinham de Plounés ou de Plounerin,
- Porque é que vocês não tocaram a trompa, bando de selvagens?"
("O Pescador da Islândia", de PIERRE LOTI)
Obrigada, Bé, por não deitar fora os livros velhos do seu pai e se lembrar desta sua vizinha meia louca, que sente um prazer imenso em desfolhar as páginas bafientas e amarelecidas de edições a 6$00, forradas a papel vegetal. Neste caso, trata-se de uma obra de Pierre Loti, oficial de Marinha e escritor, que, entre outros autores, influenciou Marcel Proust na forma magistral de construir uma descrição narrativa. Sendo eu filha de oficial, sinto especial comoção em descobrir livros que me fazem recordar os tempos da minha infância. Ando a roubar dias solarengos desta Primavera, escapando-me para os mares gelados da Bretanha e da Islândia, no conforto preguiçoso da minha casa, semeada em terra firme.
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