terça-feira, 28 de junho de 2011

Cinco

Chegaram com mochilas e sacos. Foram farejando os cantos, instalando-se, a encontrar o seu lugar na casa. Sempre juntos. Mesmo na diferença. Agarraram com mãos e bocas ávidas a liberdade que lhes foi dada. Uma bandeja feita de transgressões de que por vezes é feita a felicidade. E no auge do sangue juvenil que lhes corria nas veias, admiraram um céu cheio de estrelas, coreografaram as águas numa dança agitada e algo perigosa, mimaram os sentidos, riram, disparataram, beberam clandestinamente as horas nocturnas. Até que os olhos os venceram e a madrugada os rendeu. Inventaram recordações e sonhos, inspirados pela surpresa desses dias cúmplices. As manhãs encontraram-nos a dormir, exaustos, de barriga cheia, como gatos ao sol. Surgiam pela hora do almoço, sonolentos, espantados com aquele corpo de semi-criança, que não conseguira enganar a vastidão da noite. Colavam-se à casa, recusando-se a sair para lá dos montes verdes e dos pinheiros. Nem sequer para irem ao encontro do mar. Nem tampouco em busca do ruído das multidões, de que eram feitos os seus breves anos. Juntos. Diferentes, mas sempre juntos. Os cães à roda deles, felizes com tantos braços e pernas, tantos cheiros e vozes para explorar com a sua lealdade canina. Os cinco rapazes ficaram, para prolongar a cumplicidade das horas e adiar o adeus. Até que à mulher, grata e cansada, nada mais restou do que sentir o alívio e a tristeza de os ver partir.
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3 comentários:

  1. Olá Amiga Vera!

    Sem dúvida que foi uma alegria voltar a ver o seu blogue mexer ao cabo de dez dias de imobilidade. Os seus posts diários ou quase isso, são para quem o segue, uma espécie de tokens que ajudam a estabelecer uma corrente de amizade e quiçá, sem criarem dependência, são de certeza elementos vitais para que nos sintamos uns aos outros.
    Quando um post é deixado no seu blogue e nós o aceitamos, essa ‘prenda’ imaterial segura a nossa amizade, talvez de uma maneira um pouco interesseira ou pelo menos injusta, porque se não o comentamos, a Vera não tem noção do quanto esse post nos afectou de forma positiva ou negativa.
    Mas uma coisa é certa, essa sementinha será sempre essencial ao fortalecimento do elo invisível que a todos nos liga e nos conduz ao seu blogue.
    E foi precisamente a necessidade da sementinha que me fez recordar o episódio que lhe vou contar. Passou-se há cerca de doze anos; começou em Bissau e terminou há poucos meses em Lisboa. Foi assim:

    Domingas Seidi, ‘Mingas’, vendia fruta, mango di faca. Magrinha e espigadota, carita muito serena e ‘africanamente bela’ dizia-me sempre: ‘Pai, me compra mangos, são bons; vai vê qui vai gostá’.
    Eu enxotava-a” … Não amiga, não quero mango. Depois talvez, mas agora não. Olha amanhã!

    A cidade está cheia de crianças que vendem qualquer coisa. Não se pode ceder. E ela lá ia, rua fora bamboleando um rabo encarrapitado em duas pernas magras e compridas. Não tinha mais de 8 ou 9 anos; uma vez perguntei-lhe, ‘ …já fiz dez…’ e espetou-me 8 dedos no ar. Contou-me que vivia no bairro do Cuntum mesmo à beirinha da banca de Samba Djaló.
    Um dia à hora de almoço, na esquina do restaurante, lá estava a Mingas carregando uma cabaça cheia de mangos. Sussurrou-me como que num lamento: Pai, compra um mango, Mingas precisa de dinhero piquenino pra comprá caderno. Escola vai começá.
    Disse-lhe que não, que não queria e que não era bonito ela estar a mentir. Arregalou muito os olhos; … Pai, preciso mesmo di caderno, é memo verdade… Não Mingas agora não. E voltei-lhe costas.
    Mas fiquei aborrecido comigo próprio e no dia a seguir, sábado, resolvi procurar Mingas. Manhã cedo, rumei ao Cuntum e depois de muito porfiar lá encontrei a banca de Samba Djaló, muçulmano encarquilhado que, a troco de uma nota, decidiu-se a contar-me onde morava Mingas.
    ‘Mingasssssssssss … stá qui branco pra falá cum bo’

    Sempre era verdade o caderno! A escola ia começar. Enchi-me de brios e, passado um par de horas estava de volta a casa de Mingas com uma mochila carregada com cadernos, livro da 1ª. Classe e um estojo com régua, lápis, borracha e afia. Bem à vista, uma linda caixa de lápis de cor compunha o ramalhete. Prometi à mãe de Mingas uma mesada mensal para ajudar na escola. E assim cumpri enquanto permaneci por aquelas paragens.

    Dos encontros com Mingas pela cidade, acontecia sempre a recusa. …Não Mingas, não quero mangos, obrigado…’ E logo lhe perguntava pela escola, como iam as coisas. Mingas então ficava vaidosa da sua sabedoria e um dia até me exibiu com orgulho um papel com o seu nome. …’Escrevi tudo sozinha!’ e o seu peito inchava de vaidade.

    Os meses foram correndo e um dia já perto da minha partida cruzei-me com Mingas;
    …‘Pai mi compra mango hoje; Pai nunca me compra nada, vai … se nunca comprá como podemos ficá amigos? ‘
    …Não quero Mingas; nem tenho como levar os mangos. Mas olha, amigos podemos ser e ficar... e pus-lhe uma moeda de 100 francos na mão.
    Correu atrás de mim: Então leva um, eu ti dou, num precisa nim pagá; vai vê qui gosta, é muito bom;
    E estendeu-me um mango que lhe enchia a mãozita magra de dedos compridos que evidenciavam já as asperezas da vida. Olhei naqueles olhos enormes, brancos amarelados e senti uma ternura enorme por aquela criança. Fiz-lhe uma festa na cabeça e aceitei o mango.
    …Sim claro Mingas, obrigado!... vamos ser amigos tenho a certeza.
    E nunca mais a vi.

    ... \ ...

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  2. Os anos passaram. Há um par de meses atrás em Lisboa resolvi almoçar num restaurante que costumava frequentar na Rua dos Correeiros, quando nos anos 80 trabalhava na Baixa lisboeta; chama-se ‘A Covelense’ e é a cozinha mais parecida que conheço, com a da minha mãe. Entrei, procurei uma mesa e sentei-me. De trás do balcão, a empregada, ementa de baixo do braço, dirigiu-se para a mesa, pão e manteiga na mão. Fiquei de boca aberta, na minha frente uma figura esguia, magra mas elegante no seu avental branco a contrastar com a sua pela negra aveludada e brilhante, largo sorriso exibindo uns dentes bonitos, simétricos de cor marfinada, olhava-me com uns olhos grandes de expressão ladina. Estendeu-me a ementa e com uma voz que me pareceu vinda de longe disse: Pai, o que vai querer almoçar?
    Senti um nó na garganta, e foi com comoção que me levantei e abracei Mingas, agora já uma mulher. Olhei-a enquanto lhe segurava as mãos e vi duas lágrimas a riscarem as suas faces. Pela minha parte, engolia furiosamente em seco para que o mesmo não me acontecesse.
    Mingas tinha acabado o 11º. ano na Escola Portuguesa de Bissau e com o auxílio de uma bolsa de estudo tinha rumado a Lisboa para se matricular em Gestão de Empresas no ISCTE. Mas o Governo da Guiné-Bissau atrasava-se sempre com o pagamento da bolsa e ela, como outros estudantes guineenses tinha-se socorrido de um emprego em part-time para arranjar algum dinheiro que apagasse os tropeções dos dinheiros que teimavam em não chegar de Bissau.

    Almocei com gosto e se eu fui um cliente atento, Mingas foi de um zelo excepcional na refeição que me serviu. Já passava das três da tarde quando bebi o café, e como o restaurante estava vazio sentou-se um pouco na minha mesa; recordámos os nossos encontros em Bissau, os mangos que não lhe comprei, a primeira mochila que lhe dei, enfim, desfiámos as nossas memórias drenando ternura entre os nossos corações. O tempo voou.
    Pedi a conta, paguei e chegou a hora da despedida. Mingas com um esgar malandro disse: …spera Pai, volto já…; e desapareceu na cozinha. Minutos depois voltou com as mãos dentro dos bolsos do avental e uma cara muito séria; dirigimo-nos para a porta e lá com um beijo húmido de uma lágrima teimosa Mingas tirou do bolso um mango, estendeu-me a mão e com a voz a tremer disse: Pai é pra ti, é pra podermos continuá a ser amigos! Aceita, vai vê qui vai gostá!

    Está a ver Vera, como são importantes os pequenos / grandes posts do seu Blogue? Citando o poeta, só lhe posso dizer: Venham mais cinco …

    Um grande, grande abraço do seu amigo Mário.

    Salgados, 5 de Julho deste ano 11

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  3. Amigo Mário! :)

    Que saudades!

    Mais uma história maravilhosa sua, que tão gentilmente me oferece e partilha com quem nos lê. Não pode deixar de tentar publicar essas suas recordações, que conta tão bem. São irresistíveis e de uma imensa humanidade.

    Um enorme abraço,

    Vera

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