Gosto de ir retirando a perfeição aos livros. De deixar tatuados nas páginas os grãos de areia, que trazemos nos dedos, depois de um banho de mar. De deixar que a praia aconteça no livro. De deixar que pequenos carreiros de areia se vão acumulando no centro, a rechear a lombada, a marcar a minha leitura descuidada. De deixar cair sobre as margens, escorrendo pelo rosto e cabelos encharcados, gotas de água que vão salgando as personagens, dando-lhes sede, tornando a história sedenta de outras histórias, enquanto as páginas se enchem de círculos que amolecem e amarrotam o papel, aumentando o drama daquela folha acidentada.
Gosto de ver o livro húmido e ondulado, semiaberto quando o fecho e o abandono, como uma ameijoa indecisa e cautelosa, a deixar entrever o seu interior, a convidar-nos a abri-lo de novo.
Gosto da ponta das capas partindo-se, ganhando rugas brancas que quebram a fotografia imaculada e brilhante, do cheiro a maresia que as palavras do meu livro vão inspirando, em suaves inalações de gotas minúsculas, junto à rebentação das ondas. Da toalha estendida na areia molhada, a brisa revirando as folhas, o sol a iluminar cada frase, em jogos de luz e de sombra que o meu chapéu e os meus cabelos vão cumprindo, na dança do vento.
Gosto do aroma de paz e do prazer que recupero, a cada vez que encosto o nariz às suas páginas, a recordar um certo mês de Julho ou de Agosto, um certo Setembro, uma praia, uma certa vida que levava por esses dias. No verão em que esse livro entrou nos poros salgados da minha pele.
Pintura a óleo, Maré baixa, praia de Villeria
Paul-Michel Dupuy ( França 1864-1949)
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