domingo, 27 de abril de 2014

Vasco Graça Moura

Morreu Vasco Graça Moura

"As aves migram em setembro

nem vou com elas, nem

guardo delas 

a mínima memória


escurece mais cedo,

o tempo não se rouba, 

escoa-se como o frio

por uma camisola


até dentro da pele 

as aves migram

calmamente. eu

permaneço aqui


de guarda à água lisa que viu passar seus bandos

e em que hás-de debruçar-te.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Papoilas encravadas


Escrevo para dizer que escrevo
Enquanto os cravos vermelhos são tudo
o que os olhos alcançam
por estes dias e eu
escondida em vida silvestre
continuo a abraçar papoilas
cujo tom escarlate, salpicando os prados,
sempre me lembrou a liberdade
mais verdadeira
onde a natureza escuta os nossos gritos
e nos afaga a solidão
com a doçura de um beijo molhado no vento.

Sim, são papoilas, os meus cravos.

Escrevo para dizer que escrevo.
enquanto os salgueiros compõem a manta morta
húmus, folhas secas, cadáveres e raminhos,
decomposição mal disfarçada
em festins e algazarras, encravada em ideais
dentes de leão na brisa caindo desmembrados
sobre quatro décadas de terra que era fértil

Escrevo para dizer que escrevo a liberdade
que a cada dia tentamos segurar
como quem prende nos dedos uma rosa de espinhos

nada somos no silêncio
E é por isso que existem as flores.

Roubei a aguarela aqui

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Crónica de uma tertúlia e uma morte anunciada

Uma tarde tecida em preguiça, pouco ou nada de jeito. Chegaram as oito e depois de umas massas, feitas e enfiadas na boca à pressa, empurradas com um copo de tinto, parti com a Dila Sá para Lisboa, rumo à tertúlia no Carmo, no café do Teatro Rápido. Rever a Alice foi uma festa e uma emoção, como sempre. A sala estava bastante composta e a Alice foi igual a si mesma, graças a deus, brindando-nos com o seu bom humor, a sua atitude despretensiosa e simpatia. Foi havendo leitura e declamação de versos. A Alice voltava, voltava sempre, a bem do riso, empurrando para o Samuel Pimenta "os textos sérios". Espicaçada generosamente pela Dila e por um copo de sangria de vinho branco, lá fui eu ler um texto: escolhi o conto "Língua afiada", do meu novo livro "Coisandês", baseado na personificação de uma Guilhotina, palavra que, curiosamente, a Alice acabara de referir no início da tertúlia, falando no poder sedutor das palavras, como sendo uma das preferidas da sua juventude: um acaso feliz, que fez a ponte perfeita para eu pespegar com um conto, de humor negro, no meio da seriedade dos versos. Relembrámos, graças à Dila, a actualidade da história "El rei Tadinho", e, mais uma vez, a Alice fez por deixar claro que a literatura, a escrita, a leitura, não têm de ser levadas sempre tão a sério. O Abel Dias também deu um ar de sua graça, até que o Samuel Pimenta, um dos organizadores destas tertúlias realizadas às 5ªas feiras, deu por terminada a sessão.
Quando liguei o televisor ao chegar a casa, levei com a morte de Gabriel Garcia Marquez. Todos contávamos com ela, já nos fora anunciada, mas a tristeza não quis saber e apareceu à mesma.
Deitei-me na companhia do grosso volume da Dom Quixote, "Viver para contá-la", para que Garcia Marquez me narrasse novamente a sua vida.
De certa forma, senti-me perdendo um tio-avô estrangeiro que me contava histórias. É um consolo saber, ao menos, que elas viverão por muitos anos.
Adeus, Gabito.
Disse o autor, acerca deste seu livro, que foi o que o deixou mais satisfeito como escritor. Uma história contada de forma magistral.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Vozes

Para celebrar o Dia Mundial da Voz, um dos meus meninos preferidos em gravações multitrack a capella. Aqui com uma interpretação novinha em folha: My Romance.
Dedico este tema ao meu colega Rui Pimpão, profissional de voz, uma das pessoas que animou os bonecos do Contra-Informação e do Contra-Poder, e que tão cedo escolheu deixar-nos, para choque de todos os que faziam parte da sua vida e lhe conheciam a boa disposição constante. Quanto mais desespero andará escondido por detrás de um rosto sorridente? É urgente andarmos mais atentos.
Da esquerda para a direita: Bruno Ferreira, Mila Belo, João Canto e Castro e Rui Pimpão, a equipa do Contra-Informação.



sexta-feira, 11 de abril de 2014

Verbo

E pronto, ontem lá chegou mais um filho de folhas. Desta vez pela Verbo/Babel. Como escreveu a minha querida editora Maria José Pereira, "o seu menino chegou. Consta que cheira imenso a papel impresso, pesa cerca de 150 gramas e tem uma corzita um tanto ou quanto pálida. Vamos lá ver se não temos de o levar à praia, a estender ao sol!"
Quando cheguei à Babel, tinha uma pequena caixa de cartão à minha espera, com os quinze exemplares a que o autor tem direito. Ao pegar ao colo no meu novo filho achei-o pequenino. Pudera! O primogénito, de fantasia, tem 508 páginas, é um matulão. Mas este também está lindo. As ilustrações a carvão, da Vanessa Bettencourt, são um verdadeiro mimo. 
O contrato ficou entregue. Catoze páginas com cláusulas e muitas assinaturas. 
Fomos ficando à mesa do escritório onde trabalhava a Mónica e ela já não conseguiu trabalhar mais. Trouxeram-me um cafezinho e ficámos à conversa comendo pasteis de nata O Sebastião Sena juntou-se a nós; falámos de futebol sem percebermos raspas de futebol, de livros, do facebook, de filhos, de vidas, de transformações, do futuro. Até que chegou a senhora da limpeza. Saímos todos juntos, incluindo a senhora da limpeza e, em final de conversa, fiquei a saber que o meu filho estará nas livrarias daqui a uma semana. Espanto. Uma semana, já??? E que estava tudo tratado para uma ida ao Colégio Valsassina. "Tudo tratado", uma expressão que nunca oiço e que me sabe tão bem.
O jantar fez-se no Golfinho Azul, em S. Lourenço, para matar saudades da Mena e daquela casa que há muito é, para ambos, muito mais do que um restaurante. A Duilsa e a Mena jantaram connosco. A Duilsa chama "avó" à Mena, tem 9 anos e desenhou números e letras na toalha de papel, com um traço que promete, transformando o nosso jantar de sopa de peixe e caril de gambas numa minúscula sala de aula, em que todos participámos, atrapalhados com os novos métodos, tão diferentes dos tempos em que também fomos crianças.
- O que é o jantar, vó?
- Raspas de alguidar.
Não foi fácil explicar à Duilsa o que eram raspas, o que era um alguidar, e por que razão essa expressão tinha graça. A nossa inaptidão acabou por nos fazer rir e a Duilsa só punha as mãos na cabeça, revirando os olhos, como quem diz, Aiaiai, o que é que eu faço com esta gente. Depois concentrou-se na primeira palavra da capa do livro e seguiu com o indicador cor de chocolate:
- Veer - bó. Ver-bo. Ó vó, o que é esta palavra, verbo?
- Perguntas aqui à Vera, que ela é que sabe bem português e explica-te.
E eu, feita parva:
- É uma acção.
- O que é uma acção?
-Uma coisa que fazemos: brincar, escrever, falar, comer...
- Comer bife com batatas!
(era uma indirecta para a avó)
(risos)
- Sim, mas só a palavra "comer" é um verbo.
- Ai, não percebo nada!
Então eu concluí que não era fácil explicar à Duilsa o que era um verbo.
E apontando para a capa do livro novamente, ela perguntou:
- E o que é "Coi....san...dês"?
E então rimos com mais vontade, porque para quem pouco sabia de português ainda, explicar-lhe uma não-palavra era, no mínimo, impossível.
Quando a Ana, filha da Mena, pegou nela ao colo, sobre os ombros largos, a magricela da Duilsa exclamou, contente:
- Sou um saco de arroz!
Só mesmo as Duilsas deste mundo para se lembrarem de dizer, Sou um saco de arroz.
A Mena não nos deixou pagar o jantar. E foi a pessoa a quem ofereci o primeiro livro, a quem escrevi a primeira dedicatória deste pequenino Coisandês. Não poderia ter ficado em melhores mãos.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Umberto Eco

Umberto Eco completou 80 anos. Aqui deixo, na íntegra, a entrevista que deu à revista brasileira "Época":

ÉPOCA - Como o senhor se sente, completando 80 anos?

Umberto Eco - Bem mais velho! (Risos.) Vamos nos tornando importantes com a idade, mas não me sinto importante nem velho. Não posso reclamar de rotina. Minha vida é agitada. Ainda mantenho uma cátedra no Departamento de Semiótica e Comunicação da Universidade de Bolonha e continuo orientando doutorandos e pós-doutorandos. Dou muita palestra pelo mundo afora. E tenho feito turnês de lançamento de O cemitério de Praga. Acabo de voltar de uma megaexcursão pelos Estados Unidos. Ela quase me custou o braço. Estou com tendinite de tanto dar autógrafos em livros. 

ÉPOCA - O senhor tem sido um dos mais ferrenhos defensores do livro em papel. Sua tese é de que o livro não vai acabar. Mesmo assim, estamos assistindo à popularização dos leitores digitais e tablets. O livro em papel ainda tem sentido?

Eco - Sou colecionador de livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás, achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet. 

ÉPOCA - Apesar dessas melhorias, o senhor ainda vê a internet como um perigo para o saber?

Eco - A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele. Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância. Ora, isso não é conhecimento. 

ÉPOCA - Mas o conhecimento está se tornando cada vez mais acessível via computadores e internet. O senhor não acha que o acesso a bancos de dados de universidades e instituições confiáveis estão alterando nossa noção de cultura?

Eco - Sim, é verdade. Se você sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes. 

ÉPOCA - Há uma solução para o problema do excesso de informação?

Eco - Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.

ÉPOCA - O senhor já está pensando em um novo romance depois de O cemitério de Praga?

Eco - Vamos com calma. Mal publiquei um e você já quer outro. Estou sem tempo para ficção no momento. Na verdade, vou me ocupar agora de minha autobiografia intelectual. Fui convidado por uma instituição americana, Library of Living Philosophers, para elaborar meu percurso filosófico. Fiquei contente com o convite, porque passo a fazer parte de um projeto que inclui John Dewey, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty - embora eu não seja filósofo. Desde 1939, o instituto convida um pensador vivo para narrar seu percurso intelectual em um livro. O volume traz então ensaios de vários especialistas sobre os diversos aspectos da obra do convidado. No final, o convidado responde às dúvidas e críticas levantadas. O desafio é sistematizar de uma forma lógica tudo o que já fiz...

ÉPOCA - Como lidar com tamanha variedade de caminhos?

Eco - Estou começando com meu interesse constante desde o começo da carreira pela Idade Média e pelos romances de Alessandro Manzoni. Depois vieram a Semiótica, a teoria da comunicação, a filosofia da linguagem. E há o lado banido, o da teoria ocultista, que sempre me fascinou. Tanto que tenho uma biblioteca só do assunto. Adoro a questão do falso. E foi recolhendo montes de teorias esquisitas que cheguei à ideia de escrever O cemitériode Praga.

ÉPOCA - Entre essas teorias, destaca-se a mais célebre das falsificações, O protocolo dos sábios de Sião. Por que o senhor se debruçou sobre um documento tão revoltante para fazer ficção?

Eco - Eu queria investigar como os europeus civilizados se esforçaram em construir inimigos invisíveis no século XIX. E o inimigo sempre figura como uma espécie de monstro: tem de ser repugnante, feio e malcheiroso. De alguma forma, o que causa repulsa no inimigo é algo que faz parte de nós. Foi essa ambivalência que persegui em O cemitério de Praga. Nada mais exemplar que a elaboração das teorias antissemitas, que viriam a desembocar no nazismo do século XX. Em pesquisas, em arquivos e na internet, constatei que o antissemitismo tem origem religiosa, deriva para o discurso de esquerda e, finalmente, dá uma guinada à direita para se tornar a prioridade da ideologia nacional-socialista. Começou na Idade Média a partir de uma visão cristã e religiosa. Os judeus eram estigmatizados como os assassinos de Jesus. Essa visão chegou ao ápice com Lutero. Ele pregava que os judeus fossem banidos. Os jesuítas também tiveram seu papel. No século XIX, os judeus, aparentemente integrados à Europa, começaram a ser satanizados por sua riqueza. A família de banqueiros Rotschild, estabelecida em Paris, virou um alvo do rancor social e dos pregadores socialistas. Descobri os textos de Léo Taxil, discípulo do socialista utópico Fourier. Ele inaugurou uma série de teorias sobre a conspiração judaica e capitalista internacional que resultaria em Os protocolos dos sábios do Sião, texto forjado em 1897 pela polícia secreta do czar Nicolau II.

ÉPOCA - O senhor considera os Procotolos uma das fontes do nazismo?

Eco - Sem dúvida. Adolf Hitler, em sua autobiografia, Minha luta, dava como legítimo o texto dos Protocolos. Hitler tomou como verdadeira uma falsificação das mais grosseiras, e essa mentira constitui um dos fundamentos do nazismo. A raiz do antissemitismo vem de muito antes, de uma construção do inimigo, que partiu de delírios e paranoias.

ÉPOCA - O personagem de O cemitério de Praga, Simone Simonini, parece concentrar todos os preconceitos e delírios europeus do século XIX. Ele é ao mesmo tempo antissemita, anticlerical, anticapitalicas e antissocialista. Como surgiu na sua mente alguém tão abominável?

Eco - Os críticos disseram que Simonini é o personagem mais horroroso da literatura de todos os tempos, e devo concordar com eles. Ele também é muito divertido. Seus excessos estão ali para provocar riso e revolta. No romance, Simonini é a única figura fictícia. Guarda todos os preconceitos e fantasias sobre um inimigo que jamais conhece. E se desdobra em várias personalidades: durante o dia, atua como tabelião falsificador de documentos; à noite, traveste-se em falso padre jesuíta e sai atrás de aventuras sinistras. Acaba virando joguete dos monarquistas, que se opõem à unificação da Itália, e, por fim, dos russos. Imaginei Simonini como um dos autores de Os protocolos dos sábios do Sião.

ÉPOCA - A falsificação sobre falsificações permitida pela ficção tornou o livro controverso. Ele tem provocado reações negativas. O senhor gosta de lidar com polêmicas?

Eco - A recepção tem sido positiva. O livro tem feito sucesso sem precisar de polêmicas. Quando foi lançado na Itália, ele gerou alguma discussão. O L'osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, publicou um artigo condenando os ataques do livro aos jesuítas. Não respondi, porque sou conhecido como um intelectual anticlerical - e já havia discutido com a igreja católica no tempo de O nome da rosa, quando me acusaram de atacar a igreja. O rabino de Roma leu O cemitério de Praga e advertiu em um pronunciamento que as teorias contidas no livro poderiam se tornar novamente populares a partir da obra. Respondi a ele que não havia esse perigo. Ao contrário, se Simonini serve para alguma coisa, é para provocar nossa indignação.

ÉPOCA - Além de falsário, Simonini se revela um gourmet. Ao longo do livro, o senhor joga listas e listas de receitas as mais extravagantes, que Simonini comenta com volúpia. O senhor gosta de gastronomia?

Eco - Eu sou MacDonald's! Nunca me incomodei com detalhes de comida. Pesquisei receitas antigas com um objetivo preciso: causar repugnância no leitor. A gastronomia é um dado negativo na composição do personagem. Quando Simonini discorre sobre pratos esquisitos, o leitor deve sentir o estômago revirado.

ÉPOCA - Qual o sentido de escrever romances hoje em dia? O que o atrai no gênero?

Eco - Faz todo o sentido escrever ficção. Não vejo como fazer hoje narrativa experimental, como James Joyce fez com Finnegan's Wake, para mim a fronteira final da experimentação. Houve um recuo para a narrativa linear e clássica. Comecei a escrever ficção nesse contexto de restauração da narratividade, chamado de pós-modernismo. Sou considerado um autor pós-moderno, e concordo com isso. Vasculho as formas e artifícios do romance tradicional. Só que procuro introduzir temas que possam intrigar o leitor: a teoria da comédia perdida de Aristóteles em O nome da rosa; as conspirações maçônicas em O pêndulo de Foucault; a imaginação medieval em Baudolino; a memória e os quadrinhos em A misteriosa chama; a construção do antissemitismo em O cemitério de Praga. O romance é a realização maior da narratividade. E a narratividade conserva o mito arcaico, base de nossa cultura. Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais efetiva do que qualquer tecnologia.

ÉPOCA - Philip Roth disse que a literatura morreu. Qual a sua opinião sobre os apocalípticos que preveem a morte da literatura?

Eco - Philip Roth é um grande escritor. A contar com ele, a literatura não vai morrer tão cedo. Ele publica um romance por ano, e sempre de boa qualidade. Não me parece que nem o romance nem ele pretendem interromper a carreira (risos).

ÉPOCA - Mas por que hoje não aparecem romancistas do porte de Liev Tolstói e Gustave Flaubert?

Eco - Talvez porque ainda não os descobrimos. Nada acontece imediatamente na literatura. É preciso esperar um pouco. Devem certamente existir Tolstóis e Flauberts por aí. E têm surgido ótimos ficcionistas em toda parte.

ÉPOCA - Como o senhor analisa a literatura contemporânea?

Eco - Há bons autores medianos na Itália. Nada de genial, mas têm saído livros interessantes de autores bastante promissores. Hoje existe o thriller italiano, com os romances de suspense de Andrea Camilleri e seus discípulos. No entanto, um signo do abalo econômico italiano é que não é mais possível um romancista viver de sua obra literária, como fazia (Alberto) Moravia. Hoje romance virou uma atividade diletante. É diferente do que ocorre nos Estados Unidos, aindaum polo emissor de ótima ficção e da profissionalização dos escritores. Além dos livros de Roth, adorei ler Liberdade, de Jonathan Franzen, um romance de corte clássico e repleto de referências culturais. A França, infelizmente, experimenta uma certa decadência literária, e nada de bom apareceu nos últimos tempos. O mesmo parece se passar com a América Latina. Já vão longe os tempos do realismo fantástico de García Márquez e Jorge Luis Borges. Nada tem vindo de lá que me pareça digno de nota.

ÉPOCA - E a literatura brasileira? Que impressões o senhor tem do Brasil? O país lhe parece mais interessante hoje do que há 30 anos?

Eco - O Brasil é um país incrivelmente dinâmico. Visitei o Brasil há muito tempo, agora acompanho de longe as notícias sobre o país. A primeira vez foi em 1966. Foi quando visitei terreiros de umbanda e candomblé - e mais tarde usei essa experiência em um capítulo de O pêndulo de Foucault para descrever um ritual de candomblé. Quando voltei em 1978, tudo já havia mudado, as cidades já não pareciam as mesmas. Imagino que hoje em dia o Brasil esteja completamente transformado. Não tenho acompanhado nada do que se faz por lá em literatura. Eu era amigo do poeta Haroldo de Campos, um grande erudito e tradutor. Gostaria de voltar, tenho muitos convites, mas agora ando muito ocupado... comigo mesmo.

ÉPOCA - O senhor foi o criador do suspense erudito. O modelo é ainda válido?

Eco - Em O nome da Rosa, consegui juntar erudição e romance de suspense. Inventei o investigador-frade William de Baskerville, baseado em Sherlock Holmes de Conan Dolyle, um bibliotecário cego inspirado em Jorge Luis Borges, e fui muito criticado porque Jorge de Burgos, o personagem, revela-se um vilão. De qualquer forma, o livro foi um sucesso e ajudou a criar um tipo de literatura que vejo com bons olhos Sim, há muita coisa boa sendo feita. Gosto de (Arturo) Pérez-Reverte, com seus livros de fantasia que lembram os romances de aventura de Alexandre Dumas e Emilio Salgari que eu lia quando menino.

ÉPOCA - Lendo seus seguidores, como Dan Brown, o senhor às vezes não se arrepende de ter criado o suspense erudito?

Eco - Às vezes, sim! (risos) O Dan Brown me irrita porque ele parece um personagem inventado por mim. Em vez de ele compreender que as teorias conspiratórias são falsas, Brown as assume como verdadeiras, ficando ao lado do personagem, sem questionar nada. É o que ele faz em O Código DaVinci. É o mesmo contexto de O pêndulo de Foucault. Mas ele parece ter adotado a história para simplificá-la. Isso provoca ondas de mistificação. Há leitores que acreditam em tudo o que Dan Brown escreve - e não posso condená-los.

ÉPOCA - O que vem antes na sua obra, a teoria ou a ficção?

Eco - Não há um caminho único. Eu tanto posso escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio que eu tenha feito. Foi o caso de O pêndulo de Foucault, que nasceu de uma teoria. Baudolino resultou de ideias que elaborei em torno da falsificação. Ou vice-versa. Depois de escrever Ocemitério de Praga, me veio a ideia de elaborar uma teoria, que resultou no livro Costruire il Nemico (Construir o Inimigo, lançado em maio de 2011). E nada impede que uma teoria nascida de uma obra de ficção redunde em outra ficção.

ÉPOCA - Quando escreve, o senhor tem um método ou uma superstição?

Eco - Não tenho nenhum método. Não sou com Alberto Moravia, que acordava às 8h, trabalhava até o meio-dia, almoçava, e depois voltava para a escrivaninha. Escrevo ficção sempre que me dá prazer, sem observar horários e metodologias. Adoro escrever por escrever, em qualquer meio, do lápis ao computador. Quando elaboro textos acadêmicos ou ensaio, preciso me concentrar, mas não o faço por método.

ÉPOCA - Como o senhor analisa a crise econômica italiana? Existe uma crise moral que acompanha o processo de decadência cultural? A Itália vai acabar?

Eco - Não sou economista para responder à pergunta. Não sei por que vocês jornalistas estão sempre fazendo perguntas (risos). Talvez porque eu tenha sido um crítico do governo Silvio Berlusconi nesses anos todos, nos meus artigos de jornal, não é mesmo? Bom, a Itália vive uma crise econômica sem precedentes. Nos anos Berlusconi, desde 2001, os italianos viveram uma fantasia, que conduziu à decadência moral. Os pais sonhavam com que as filhas frequentassem as orgias de Berlusconi para assim se tornarem estrela da televisão. Isso tinha de parar, acho que agora todos se deram conta dos excessos. A Itália continua a existir, apesar de Berlusconi.

ÉPOCA - O senhor está confiante com a junção Merkozy (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel) e a ascensão dos tecnocratas, como Mario Monti como primeiro ministro da Itália?

Eco - Se não há outra forma de governar a zona do Euro, o que fazer? Merkel tem o encargo, mas também sofre pressões em seu país, para que deixe de apoiar países em dificuldades. A ascensão de Monti marca a chegada dos tecnocratas ao poder. E de fato é hora de tomar medidas duras e impopulares que só tecnocratas como Monti, que não se preocupa com eleição, podem tomar, como o corte nas aposentadorias e outros privilégios.

ÉPOCA - O que o senhor faz no tempo livre?

Eco - Coleciono livros e ouço música pela internet. Tenho encontrado ótimas rádios virtuais. Estou encantado com uma emissora que só transmite música coral. Eu toco flauta doce (mostra cinco flautas de variados tamanhos), mas não tenho tido tempo para praticar. Gosto de brincar com meus netos, uma menina e um menino.

ÉPOCA - Os 80 anos também são uma ocasião para pensar na cidade natal. Como é sua ligação com Alessandria?

Eco - Não é difícil voltar para lá, porque Alessandria fica a uns 100 quilômetros de Milão. Aliás foi um dos motivos que escolhi morar por aqui: é perto de Bolonha e de Alessandria. Quando volto, sou recebido como uma celebridade. Eu e o chapéu Borsalino, somos produção de Alessandria! Reencontro velhos amigos no clube da cidade, sou homenageado, bato muito papo. Não tenho mais parentes próximos. É sempre emocionante.
(in revista "Época", 26 Fevereiro 2014)

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Valsa

Para nos surpreender e deslumbrar, nesta tarde que ameaça trovoada. Um discurso de apresentação que aguça a nossa curiosidade; o espanto no momento em que, por fim, o Maestro quebra o suspense e diz o nome da "Hollywood star". São compassos três por quatro de pura magia, com muita emoção e uma sala glamorosa a condizer. Obrigada, Nanã, por esta descoberta.
Nota - escolhi o link em vez do código incorporado, para não quebrar a surpresa :-) (pois a imagem em stand by assume o rosto do actor...que compôs a valsa! Enfim, não o arranjo, maravilhoso, but still, belíssima na essência).

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Líquenes

Por vezes a beleza escapa-nos. Quando anda escondida em submundos tornados para nós invisíveis, numa escala que somos incapazes de ver, na pressa dos dias. E nestas horas feitas de chuva, se servir de conforto sofrível a quem anda cansado de ver encharcados os seus dias, deixo-vos com o que nasce da humidade: seres vivos minúsculos como estranhas fadas da sombra. Na verdade, são quase fungos. Mas até os fungos podem ser belos.
"Lichenes" de Ernst HaeckelArtforms of Nature, 1904

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Livros infantis

E porque hoje é Dia Internacional do Livro Infantil, aqui fica a minha gratidão para com três dos principais responsáveis pela minha infância feliz, recheada de boa leituras:
Hans Christian Andersen
Irmãos Grimm
Enid Blytton
Obrigada pelos mundos que me deram.


terça-feira, 1 de abril de 2014

1 de Abril


Quero a mentira a que tenho direito!

por Catarina Fonseca, em 01.04.14


Tentei cumprir o ritual de Dia 1 de Abril que era correr os jornais à procura da dita mentira. Pormenor: pelo menos nos jornais portugueses, tirando o abençoado JL e a sua declaração que a Porto e a Leya tinham decidido impor um limite de páginas aos autores (até que não era mal pensado), e a Activa (que obviamente não vos vou dizer qual é) não encontrei nada.
Nos últimos anos tem sido assim. Adeus tradição. Houve anos em que fui tão feliz. Ainda por cima eu sou a pessoa ideal para petas: acredito em tudo. Já acreditei nas coisas mais estranhas do Dia 1. Que o Festival da Canção ia ser transmitido sem som. Que os autocarros iam passar a ter 3 andares. Que Portugal tinha vendido Cristiano Ronaldo à Espanha. Que uma árvore suíça dava esparguete. Que o Burger King ia passar a fabricar um hambúrguer para canhotos. Que um atleta japonês confundiu uma maratona de 42 quilómetros com 42 dias e nunca mais ninguém o viu.
Fartei-me de rir e não veio mal ao mundo por causa disso. A mentira jornalística servia para isso mesmo (além de nos fazer rir): para, por contraste, lembrar que o resto era verdade. Para lembrar o absurdo do mundo. Para nos alertar para a nossa própria credibilidade enquanto leitores.
O facto de a mentira jornalística do 1 de Abril quase ter desaparecido levou-me a conversar com outros jornalistas aqui do quartel.
De facto, disseram-me eles, a mentira do 1 de Abril deixou de fazer sentido. O mundo deixou de ser inocente. As pessoas já não acham graça a serem ‘enganadas’. Perdemos a capacidade de rir de nós próprios. Ficámos sérios, hirtos e burros.  
E depois, o próprio mundo se tornou tão absurdo que desafia qualquer mentiroso.
Qual é a graça de inventar uma mentira, dizia-me um deles, se todas as notícias são mais incríveis do que tudo o que eu poderia inventar? As pensões vão sofrer ainda mais cortes? A Gwyneth vai-se separar? A extrema direita subiu astronomicamente em França? O governo francês demitiu-se? Caiu o maior avião do mundo e até agora ninguém o viu? Um jornalista escreveu Dark Vador em vez de Darth Vader? E Vanessa Paradise em vez de Paradis? Tudo o que eu possa inventar hoje fica aquém da realidade...
Ponto 3,  hoje em dia, acreditamos em tudo. Precisamente por isso. A realidade é tão extraordinária que acreditamos em tudo.
E ponto 4, a verdade é que jornalistas e leitores perderam a imaginação, a criatividade e o tempo para pensar. Passam-nos pelas mãos milhares de informações todos os dias. Já não há espaço para a imaginação. Falamos das crianças, mas também nós estamos reféns de tecnologias, ipads e nets e sites que não nos tornam mais criativos, apenas nos entopem de informação inútil e mal digerida, que lemos na diagonal e engolimos sem tirar caroço nem pensar se será verdade.
Aliás, a mentira era extremamente educativa: no dia 1 de Abril por uma vez, eramos leitores atentos e desconfiados. Punhamos tudo em causa...
Conclusão: apesar de tudo, continuo a achar que é preguiça.
Eu, pelo menos, ainda tenho saudades de uma boa peta. Com ou sem inocência perdida.
Contem-me lá uma. Eu prometo que acredito. 
(in "Fonsecaville blog" - ACTIVA.sapo.pt)