sábado, 19 de setembro de 2015

Nua

Nua

Tudo ela despiu:
O laço e a luva,
O casaco, o vestido;
E despiu a nuvem,
Despiu a chuva;
E, mau grado o vento,
Com passos pequenos,
Desarmou o sentido.

Pôs de lado a lágrima,
A fresta fechada;
Quis ser criatura
De entre todas a mais nua.
Desfolhada da pele,
Desnudou-se do chão;
Despiu-se da fenda
E da porta da rua.

Tudo ela despiu:
A velhice dos móveis,
O pó das memórias
Que o tempo riscou;
Arrumou recatos,
Dores, vergonhas,
Na crença dos cegos,
Em sombra muda, avançou.

Despiu o almoço
O moço, o cão;
Deu corda ao relógio,
Desarmou o grito
E a mansidão.

Despiu com atraso,
Do avesso, a alma
Gretada de há tanto
Andar enlameada.

Despida da fome,
E das suas muralhas,
Liberta da sede,
Cobriu-se de nada.
Nua e leve,
Desnudou o cansaço
Do corpo que soa,
Num lento compasso.

E com mãos vazias,
Num gesto inteiro,
Despiu a mortalha
Do seu cativeiro.

Despojou o medo,
Buscou o martelo
Que quebrasse a pedra
Entorpecida.
Trajada a preceito,
De corpo apenas,
Desarmou receios e até suas penas,
Em busca de um dia mais-que-perfeito

E na estrada branca
Viajou no ventre
Que em tardio repente
Em si mesma gerou;
E sempre que um “se”
Invadiu suas veias,
De sangue novo se alimentou.

Jamais tornaria ao doce vazio:
Porquanto,
Intimamente,
Tudo ela despiu

(in «Fora do Mundo», pp.20-21 (Poética Edições, 2014)

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