terça-feira, 25 de abril de 2017

Na fronteira


Ninguém na minha família, que me lembre ou saiba, passou verdadeira fome. As gerações anteriores, aliás, viveram com um luxo considerável. Nasci em 1969, andava pelos cinco anos de idade quando se deu a Revolução. Não percebi nada mas, à medida que os anos foram passando, a minha vida foi sofrendo transformações. Nas estantes de casa havia de tudo, muitas das obras em francês, de autores que fizeram escola e marcaram uma época, como os filósofos Sartre e Simone de Beauvoir, os escritores Alves Redol, Fernando Namora, José Cardoso Pires. Na aparelhagem «Sharp» escutavam-se vozes francesas que cantavam o inconformismo, como Léo Ferré, mas tudo isso constituía, a meus olhos, uma extravagância, uma incongruente solidariedade para com um universo longínquo. Não éramos vítimas do Estado Novo, no máximo uma chamada de atenção num café, por parte de um agente da PIDE, como quem diz, não se expanda muito, se não quer problemas.
Na nossa casa havia um cinzeiro encarnado de metal, com o símbolo do PS, o punho fechado. E nos álbuns de fotografias páginas e páginas com a multidão nas ruas, no 1º de Maio, a minha mãe encostada a um Jeep da GNR, de cravo metido na casa de um botão do dufflecoat beje, de pura lã virgem, com etiqueta da marca francesa «Delfieu», com loja situada em Arroios. Lembro-me dos lenços de seda que vinham de Paris, de todos os requintes que se foram esfumando, enquanto se derramavam os anos feitos de liberdade. Depois entrámos na Europa, já não era preciso trabalhar os campos, todos podiam ser doutores. Subiu o número de carros de luxo a circular nas ruas, subiram os empréstimos, o consumo disparou. Já ninguém cose os buracos das meias com um ovo de madeira. Já ninguém manda arranjar um pequeno electrodoméstico. Compra-se outro. É barato. Já não é preciso ir de férias à terrinha, nas muitas estradas macias que tem agora este pequeno Portugal, não queremos que vos falte nada, assim que nos deixarem salta um TGV, e podemos hoje ir a Paris, a Roma, a Veneza, a Barcelona, sem precisarmos de levar passaporte nem nada, só os cartões de crédito e os telemóveis com as nossas câmaras sofisticadas, para as selfies, e mostrarmos no facebook que vivemos imenso. Depois há a realidade. O crédito mal parado, o desemprego, o podermos refilar à vontade sem que, na verdade, de pouco sirva para quebrarmos a corrupção e o aproveitamento, a incompetência e o oportunismo de tantos, em lugares de poder. Agora os pobres e os endividados espalham-se por todas as classes. É uma pobreza democrática.
Até hoje tenho sentimentos de contradição, encontro-me na fronteira de Abril, sem saber bem o que fazer com estes cravos que me deram. Mais me parecem rosas perfumadas e coloridas, onde vamos ferindo os dedos.

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