terça-feira, 30 de outubro de 2018

A mala encarnada

Retiro o pó à mala encarnada, esquecida debaixo da cama. Lembro-me da frase de Helen Hunt em As Good As It Gets, ao retirar a sua do cimo de um armário: a mala chocada por ser usada, enfim, saindo quase a medo, pouco audaz, habituada à previsibilidade segura daquele recanto escuro, sem vida.
A lista mental: pijama, roupa interior quente, camisolas, escova de dentes, cenas de toilette, botas, perfume, gotas dos olhos, anti-alérgico, livro, caderno, canetas, óculos vários, telemóvel, carregador e, à última hora, cachecol, gorro, luvas. Afinal, é a Serra da Estrela, usar uma t-shirt enquanto preparo a modesta bagagem, para uma só noite, não impede que me aguarde o Inverno, em Manteigas. 
À noite, no quarto de hotel, assisto, sem surpresa, ao discurso de vitória de Jair Bolsonaro. Utiliza a palavra Liberdade. Mudo de canal, para ver qualquer outra coisa.
Na manhã seguinte, é aproveitar a distância percorrida para passear: uma visita a cães serra-da-estrela bebés (e a vontade de trazer todos), uma prova de licor de mirtilo, a compra de chinelos e um casaco de lã, típicos da serra. E um queijo. Não podia faltar o queijo.



O carro a serpentear montanha acima, o frio a subir connosco. 0º. -1º. -2º. Uma fotografia junto à pequena lagoa. O frio, o frio na pele, na carne, nos ossos. Ainda ontem era Verão. 
Um almoço de truta grelhada junto à janela. O aconchego da encosta verde e de um céu bem azul, salpicado de ovelhas. O sol a bater na vidraça.
No regresso, a chuva. A tarde agora mais curta, a luz a sumir tão antes da hora, triste, a acompanhar o desalento deste fim prematuro. 
Chego a casa e sinto que o Inverno também chegou aqui. E é logo na manhã seguinte que estreio as peças trazidas da serra.
Conformada, a mala voltou para debaixo da cama, sem expectativas.

sábado, 27 de outubro de 2018

Ao menos

Um dia de vento em rompantes de fúria, que não chega a ser temporal; uma casa de janelas fechadas, tão ao contrário do costume; a casa sem poder respirar, a conter o fôlego, inspirando, ainda, a presença de um bolo de iogurte acabado de cozer. Horas que poderia ter desperdiçado, não fossem gravadas em longos diálogos com pessoas que amo há décadas; a mudança da hora iminente, a dar entrada ao horário de inverno; o silêncio, apenas o arquejar dos cães, a meu lado. Tento não pensar na vitória inevitável e incompreensível de Bolsonaro, amanhã, e calar os meus queixumes que, ao lado da humanidade mais carente, nada valem. Enquanto faço por me auto-realizar, embora tantas vezes pague as contas com dificuldade - dois extremos sem meio, na corda bamba dos dias -, outros passam fome verdadeira, sem a falsidade dos sonhos. Ao menos a liberdade de nos podermos queixar. Ao menos.
Resta-me o vento agreste do lado de fora do vidro e a textura de flores bordadas, em luz quente e aconchego, do lado de cá. O silêncio, o vento em fúria que não me atinge e um chá verde com gengibre e mel, para adoçar a liberdade.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Trabalho e uma cabana

Temos demasiadas distracções, no momento em que nos sentamos para trabalhar. Escritores como o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, com a sua minúscula cabana (era mais um barracão) de base rotativa, à caça da luz natural, ou Henry David Thoreau, no seu longo e espartano retiro, a fim de se isolar da civilização, é que sabiam: quando é para trabalhar, nada como reduzir ao mínimo as ferramentas, de modo a que o autor seja ele e o seu pensamento, rodeado de solidão e silêncio. Apenas os sons bem-vindos da natureza.

George Bernard Shaw na sua cabana, instalada na sua casa em Hertfordshire,
com plataforma rotativa. Aqui trabalhou nos últimos 20 anos da sua vida.

Garagem convertida de Dylan Thomas, País de Gales.

Retiro de Virginia Woolf, instalado
no jardim da sua casa, no East Sussex.
Também Mark Twin se isolava, mas com maior luxo. Numa carta a um amigo seu, William Dean Howells, datada de 1874, o autor de Huckleberry Finn descreveu a sua "cabana" deste modo: é o mais charmoso estúdio que se possa imaginar. octagonal, com telhado em bico, cada uma das faces cobertas por uma janela generosa ... instalado em completo isolamento no topo de uma elevação, que preside a léguas de vale e cidade e serras ao fundo, com distantes morros azuis (...) É um ninho acolhedor e tem espaço suficiente para um sofá, mesa e três ou quatro cadeiras. E quando as tempestades varrem o vale remoto e os raios piscam entre as colinas e além, e a chuva atinge o tecto sobre a minha cabeça? Imagine a sua sumptuosidade.
Retiro de Mark Twain
Com ou sem barracão, cabana ou chalet, importa cortar com os fios que nos prendem ao mundo, para que possamos reencontrar uma qualquer verdade em nós, buscar um pensamento puro. Quem poderá descobrir o rumo de uma história, cumprir a angústia de uma personagem ou seguir os labirintos de uma ideia, se tão facilmente permitimos que os dedos saltem para o mural do facebook, o dicionário de sinónimos online, a caixa de correio eletrónico ou os ruídos da casa, com vizinhos, familiares, telefones, cães, noticiários, anúncios, campainhas...? Cada vez nos é mais difícil estar por inteiro, como se a mente fragmentada fosse agora peça de cristal em pedaços, jamais tornando a ser una. Quantas cicatrizes e remendos haverá, na transparência do que vamos construindo?

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Bibliotecas municipais

Por mais anos que decorram desde que foi criada a rede de bibliotecas municipais, não deixo de me espantar com os luxos que oferece. É verdade, luxos. Porque se há muita gente que não pode comprar todos os livros que deseja ler ou possuir, é também um imenso privilégio ouvir falar pela primeira vez de um certo autor, ficar interessada em duas ou três obras suas e, de imediato, poder requisitá-lo numa biblioteca perto de casa. Neste caso, "O Filho do Desconhecido", de Alan Hollinghurst, tradução da maravilhosa Tânia Ganho, Dom Quixote, 2011, 1ª edição, 683 pp. Segundo a minha querida amiga Patrícia Reis, uma outra obra do mesmo autor merecia uma busca: "A Linha da Beleza": a biblioteca do meu modesto concelho também o tem.
Poucos minutos após ter enviado e-mail com a requisição, obtenho a resposta da Teresa Rodrigues, responsável pela biblioteca de Mafra (sede), com a qual tenho as mais amistosas relações:

"Olá Vera, espero que esteja tudo bem.

O livro que pediu está disponível, mas é da biblioteca da Póvoa da Galega, já o pedi para vir para Mafra, quando chegar, aviso.
Bjinhos"

Caímos no erro de baixar as expectativas, fazendo esgares à forma como o nosso País (não) funciona, mas depois temos coisas destas: um livro de Alan Hollinghurst existe na Biblioteca Municipal da Póvoa da Galega e é entregue na nossa biblioteca habitual, sendo que avisam para o telemóvel, da sua chegada. O único contra: uma vez que se trata de um empréstimo, não é possível manuseá-lo como se fosse nosso, rabiscá-lo, sublinhá-lo, tal como aconteceria com o exemplar de um familiar ou de um amigo. Não se pode ter tudo por pouco dinheiro. Pouco...? Nenhum! É, ou não, um imenso luxo?
Recado à editora (a todas, aliás, à excepção da Sibila, de Inês Pedrosa, que acarinha os tradutores): na capa devia constar o nome de quem traduziu a obra. Na capa, sim. Não apenas no frontispício. E já agora, pagar uma percentagem dos direitos de autor (não retirados aos direitos do próprio autor, é evidente).
Afinal, uma boa tradução pode salvar um livro ou matá-lo.
O José Fanha, que já baptizou umas quantas, tem toda a razão: queridas bibliotecas.